sexta-feira, 23 de março de 2012

CONSTRUÇÕES RETÓRICAS NOS ANAIS DE TÁCITO: A OPOSIÇÃO SÊNECA/TIGELINO

CONSTRUÇÕES RETÓRICAS NOS ANAIS DE TÁCITO:
A OPOSIÇÃO SÊNECA/TIGELINO.
Fábio Oliveira Araújo1
Introdução
Esta comunicação faz parte da nossa de iniciação científica, que vem sendo desenvolvida
desde agosto de 2003 e é financiada pelo programa de bolsa de pesquisa PIBIC/CNPq/UFOP.
Em nossa comunicação, pretendemos, tendo como base um estudo quantitativo,
compreender e analisar o artifício narrativo que Tácito constrói em torno do principado de Nero,
utilizando como personagens centrais Sêneca e Tigelino. Nossa hipótese é que Tácito utiliza
esses dois personagens para convencer o leitor de que a influência que eles exerciam sobre Nero
foi preponderante para o desenvolvimento do governo do jovem Imperador, passando de um
governo moderado com Sêneca a um governo desregrado com Tigelino. A partir daí, a
necessidade da leitura da obra taciteana ser feita tendo em mente a existência desse “filtro”, que
pode levar a uma interpretação enviesada da participação de Sêneca e Tigelino no consilium
princepis.
A importância dada a essas pessoas que ficam próximas ao Imperador se mostra
imprescindível para nossa análise. As teorias envolvendo as interações sociais vem se destacando
já há algum tempo como um dos mais importantes ramos da tradição sociológica e um dos
paradigmas para o estudo da Antigüidade Clássica. Um dos exemplos maiores dessa perspectiva
é a Escola de Cambrigde2 que com os seus pesquisadores, como Andrew Wallace-Hadrill,
Charles Whitaker, Peter Garnsey, e Richard Saller, entre outros, vem já há algum tempo utilizado
amplamente a idéia de relações interpessoais em seus estudos.
Começaremos nossa comunicação fazendo uma apresentação da obra de Tácito e do
nossos dois personagens principais Sêneca e Tigelino. Por último passaremos a uma análise dos
dados coletado em nossa fonte.
Tácito e os Anais
O nome de Tácito está inserido em um hall onde se encontram vários outros nomes
importantes dentre os que se aventuraram a discorrer sobre a história de Roma. Entre eles,
podemos citar Tito Lívio e Salústio, que em muito influenciaram na forma de escrever taciteana.
Escrever sobre a história política de Roma torna-se quase que inevitavelmente também escrever
sobre a história de intrigas que são tanto o prazer quanto o desespero dos leitores de Tácito.
1 Graduando em História (ICHS – UFOP) e bolsista do PIBIC/CNPQ - UFOP
2 Esse termo “Escola de Cambrigde” foi criado por Faversani em sua tese de doutorado para tentar “categorizar” o
grupo de estudiosos ingleses que são adeptos as proposições interpessoais representadas por Moses I. Finley em seu
artigo “Entre a escravidão e a liberdade” em Economia e Sociedade na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes,
1989. pp.123-41.Cf. FAVERSANI, Fábio. 2001. Tese (Doutorado em História econômica) - FFLCH/USP, São
Paulo, 2001.
As obras de Tácito são uma das principais fontes sobre os períodos Júlio-Cláudio e
Flávio. Estas começaram a ser escritas nos marcos do principado de Trajano. É regra geral entre
as suas obras, independente do assunto que elas tratem, a observação e crítica sobre a conduta
moral e política no Principado baseado em seus severos critérios de moralidade.
Tácito deixa claro qual o objetivo da sua obra ao nos dar a seguinte declaração:
Não é meu intento referir senão as opiniões que se fizeram mais notáveis ou pela sua decência ou pela
sua insigne baixeza: porque creio ser o principal objeto dos Anais pôr em evidência as grandes
virtudes, assim como revelar todos os discursos e ações vergonhosas, para que ao menos, o receio da
posteridade acautele os outros de caírem nas mesmas infâmia. (Anais, III, 65)
Tácito nos deixa claro no decorrer de sua obra que a principal dessas “ações vergonhosas”
é a subserviência e a adulação desenfreada de vários membros do Senado para com o Imperador
e, como reflexo, um número cada vez maior delatores fazendo parte da corte neroniana.
Anneu Lúcio Sêneca junto com Afrânio Burrus nos é caracterizado por Tácito como os
controladores, até onde era possível, dos ímpetos do Imperador e de sua mãe Agripina. Segundo
Tácito, Sêneca foi escolhido como preceptor de Nero graças “a sua arte de ensinar a eloquência, e
pelas graças e honesta amenidade de caráter” (Anais, XIII, 2)
Como nos mostra Tácito, desde o início do governo de Nero, Sêneca ajudou o Imperador
a encobrir os seus vícios e maldades, a começar por encobrir o romance do Imperador com Acte
(uma liberta) e por fim ajudando Nero a resolver junto ao Senado a impressão que dele ficou
sobre o assassinato de sua mãe Agripina. É importante ressaltar que após a morte de Agripina, é
Sêneca quem ganha e aumenta ainda mais seu poder de influência sobre Nero.
Com a morte de Burrus e a ascensão de Tigelino, Sêneca vê o seu poder ir minguando
cada vez mais e com isso tenta se afastar das querelas do Império. Além de não conseguir o seu
objetivo, ainda é acusado de participar da conspiração pisoniana (Anais XV, 47-74) e acaba
morto em 65 (Anais XV, 60).
Sofrônio Tigelino é nomeado por Nero junto com Fênio Rufus – este foi antes prefeito da
anona, graças a Agripina – para ser prefeito da guarda pretoriana. Tácito os retrata, marcando
suas diferentes características em termos morais. Tigelino é apresentado como sendo sempre de
caráter infame e dissoluto como forma de demonstrar a propensão de Nero a se aliar a pessoas de
má conduta para os padrões morais defendido por ele. Fênio Rufus ganhou, por suas qualidades,
a admiração das tropas e o favor popular. Isto foi motivo para que caísse em desgraça junto a
Nero.
Um dos maiores exemplos do poder de influência de Tigelino sobre Nero foi o assassinato
de Rubélio Plauto e Cornélio Sula. Esses dois foram aconselhados por Nero a saírem de Roma,
partindo Plauto para a Ásia e Sula para as Gálias. Foram assassinados, segundo Tácito, graças à
influência de Tigelino. Além dessas mortes, Tigelino participa junto com Nero de várias outras
atrocidades cometidas pelo jovem Imperador. O resultado final dessa aliança é a traição de
Tigelino – essa parte é uma das que foi perdida nos dois anos finais do governo de Nero – as em
razão da qual Nero perde o trono e a vida.
Um ponto que nos chamou atenção sobre o aparecimento de Tigelino na trama taciteana
foi o fato de que, ao contrário de Fênio Rufus e outros personagens envolvidos nas querelas do
governo de Nero, Sofrônio Tigelino só vai aparecer no capítulo 48 do livro décimo quarto.
Tigelino era sogro de Cossuciano Cápiton, junto com Suilius Rufus, um dos grandes delatores do
período neroniano. Menções anteriores são feitas a Cápiton, mas a Tigelino, não. Isto nos parece
muito oportuno para Tácito uma vez que o autor utilizara este personagem como símbolo da
hegemonia dos aduladores / delatores e, consequentemente, das mortes que se sucedem sob tal
regime. Nos relatos de Suetônio, note-se, o nome de Tigelino não é citado uma só vez.
Conclui-se, portanto, que no relato de Tácito Tigelino é o personagem que marca o mau
governo. O mau governo de Nero produziu muitas vítimas por estar baseado em ações de
aduladores e delatores. Como testar esta hipótese? Quantificamos as mortes violentas com
motivação política ao longo de reinado de Nero, separando-as em dois sub-grupos. O primeiro se
refere ao período anterior a Tigelino, ou seja, de 54 a 61 d. C., perfazendo oito anos. O segundo é
relativo ao tempo que Tigelino está presente no relato de Tácito, ou seja, 62 a 66 d.C., compondo
cinco anos.
Períodos
8 19,5%
33 80,5%
41 100,0%
Tigelino ausente
Tigelino presente
Total
Casos %
Períodos
Fonte: Tácito. Anais
Comparando o número de mortes violentas por motivações políticas nos dois períodos se
apresenta um claro crescimento destas ocorrências nos anos em que Tácito expôs a figura de
Tigelino frente as que aconteceram quando ele estava ausente das páginas dos Anais. Temos um
número de mortes cerca de quatro vezes maior. Quando comparamos um período com o outro.
Em termos relativos, ou seja, mortes por ano para cada período, a desproporção é ainda mais
acentuada. Para o período sem Tigelino temos uma taxa de 1 morte por ano contra 6,6 mortes/ano
no período em que Tigelino está presente. Ou seja, o número de mortes relatadas é mais de 6
vezes superior em um período do que em outro.
O aumento expressivo do número de mortes violentas podem ser compreendidos ao
levarmos em conta o uso da violência como o principal argumento de Tácito para caracterizar um
Estado tirânico e principalmente marcar a transição de um bom para um mau governo. Tal fato
pode ser explicado pelo aparecimento de um número cada vez maior de aduladores do Imperador.
A questão da adulação é tratada por Tácito como sendo um dos principais motivos da decadência
moral do Império. São duas as principais formas de disputa por poder e por ascensão social. A
primeira delas seria a disputa por mérito tão defendida por Tácito e que segundo o autor estava se
tornado cada vez mais escassa. A segunda seria através da adulação, desempenhada de forma
desmedida pela elite do período. Para entendermos como o aumento dos aduladores
influenciaram no aumento da violência basta termos consciência de que um adulador é um
potencial delator e vice-versa e as delações eram os principais motivos dos assassinato e suicídio
segundo Tácito.
Passemos agora para uma análise mais detalhada dos casos.
Anos de atuação: Sêneca/Tigelino por Assassinato
3 30,0% 1 10,0%
7 70,0% 9 90,0%
10 100,0% 10 100,0%
Período
54 a 61
62 a 66
Total
Casos %
Assassinato preventivo
Casos %
Assassinato por "culpa"
Motivo da morte
Fonte: Tácito. Anais
Como pode ser observado na tabela acima categorizamos os assassinatos dividindo-os em
duas variáveis. A primeira delas é o assassinato preventivo, sendo entendido como aquele
executado pelo governante ou seus aliados com o intuito de eliminar possíveis candidatos ao
lugar do princeps. O segundo, assassinato por “culpa”, são entendidos como aqueles executados
quando algum indivíduo era acusado por algum crime, como o de conspirar, por exemplo.
Vemos no que diz respeito aos assassinatos preventivos que o número de ocorrências no
primeiro período, 3 casos, mais que dobra, passando para 7 casos no período posterior. Mas o
maior crescimento é percebido nos assassinatos por “culpa”. Em outras palavras, passa-se de um
momento em que se temia conspirações para um outro onde se fez necessário combatê-las. O fato
de ter havido a conspiração Pisoniana em 65, cuja repressão serviu para a eliminação de diversos
pessoas, explica este acréscimo. Todos os assassinatos por culpa são relatados no ano da
conspiração.
O suicídio era uma prática relativamente comum no cenário político do mundo romano.
Tratava-se de uma alternativa aberta àqueles que se viam envolvidos em atividades conspiratórias
contra a autoridade imperial. O suicídio garantia que não recairiam penas sobre parentes, em
especial isentava-os do confisco dos bens. Qualificamos os suicídios em duas categorias:
prevenção e ordem. O suicídio por prevenção ocorria quando o indivíduo, ao ter notícias que seu
nome estaria envolvido em alguma acusação de conspiração, antes de ser notificado pelas
autoridades, pratica o suicídio. O suicídio por ordem ocorre quando o indivíduo, por algum crime
que tenha cometido (ou não), é notificado pelo governante para que “abra suas veias”.3 O motivo
de termos separado suicídio de assassinato se deve ao fato ele ainda é dotado de um certo
voluntarismo se comparado à prática dos assassinatos. Em outras palavras, o suicida, malgrado
sua vontade, necessariamente precisa agir no sentido de sua própria eliminação.
3 A título de exemplo podemos ver o caso de Julio Montano cf. Anais XIII, 25.
Anos de atuação: Sêneca/Tigelino por Suicídio
2 18,2% 2 20,0%
9 81,8% 8 80,0%
11 100,0% 10 100,0%
Período
54 a 61
62 a 66
Total
Casos %
Suicídio por ordem
Casos %
Suicídio por prevenção
Motivo da morte
Fonte: Tácito. Anais
Analisando a tabela de suicídios podemos observar que tanto no caso de suicídio por
ordem quanto por prevenção vemos os casos quadruplicarem na passagem do primeiro para o
segundo período. Sendo assim, se a conspiração pisoniana impactou o número de assassinatos,
não gerou o mesmo efeito para os suicídios. Deste modo, Tácito explicita ainda mais o caráter
violento do período de influência de Tigelino ao fazer aumentar o número de mortes de forma
diferenciada nas sub-categorias de morte violenta. Enquanto tanto assassinatos quanto suicídios
cresceram cerca de quatro vezes de um para outro período e, ainda, as variações nas
modadlidades de suicídio flutuaram de forma equivalente, os assassinatos por “culpa” crescem
em nove vezes, enquanto os preventivos “apenas” dobram.
Conclusão
Sendo assim, Tácito cria no leitor um impacto que o leva a crer que o governo de Nero em
65 d.C. era tirânico e sofria uma oposição forte e generalizada.
* * *
Fonte
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