quinta-feira, 29 de março de 2012

DOSSIÊ AMAZÔNIA BRASILEIRA

ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 5
Dossiê Amazônia brasileira I
6 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
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M NOME da revista ESTUDOS AVANÇADOS, gostaria de saudar a presença do
professor Aziz Ab’Sáber, que acaba de acrescentar mais um tento à sua
brilhante carreira de pesquisador publicando, pela Editora da USP, São Paulo,
Ensaios, entreveros, um livro fartamente ilustrado, de mais de quinhentas páginas,
com vinte e um textos, além de extensa bibliografia complementar, centrados
em uma das maiores metrópoles do planeta, a nossa capital paulista. Ao professor
Aziz os nossos cumprimentos.
Também gostaria de agradecer a presença do geólogo Gerôncio Rocha, a
quem ESTUDOS AVANÇADOS deve o seu mais lúcido ensaio publicado sobre o Aqüífero
Guarani, e dos jornalistas Ulisses Cappozoli, Mauro Bellesa e Ana Maria Fiori,
que gentilmente aceitaram nosso convite para estarem presentes nesta entrevista.
Nunca é demais dizer que, no Brasil e fora dele, poucas pessoas conhecem


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tão bem os problemas da Amazônia brasileira como o nosso professor Aziz
Ab’Sáber. Suas pesquisas foram fundamentais para o que se convencionou chamar
de a Teoria dos Refúgios e Redutos. Segundo essa teoria, durante a última
glaciação, a Amazônia ter-se-ia reduzido a pequenas reservas. Seu livro Amazônia:
do discurso à práxis, também publicado pela Edusp, acaba de ganhar uma
nova edição, pois desperta constantemente um grande interesse entre leigos e
especialistas.
A pedido da revista, o nosso entrevistado apresentou inicialmente alguns
tópicos que podem nortear as discussões de hoje sobre o tema. (Dario Luis Borelli)
A ordem da grandeza espacial da Amazônia
Aziz Ab’Sáber – Em primeiro lugar, é preciso relembrar que a Amazônia
brasileira é um conjunto de paisagens e ecologias da América do Sul setentrional.
Possuímos a maior parcela territorial dentro da Amazônia pan-americana.
Em segundo lugar, gostaria de destacar um fato relacionado aos diferentes
domínios de natureza no Brasil. Depois de muita bibliografia, muita pesquisa,
todo mundo chega à conclusão de que nós temos seis principais domínios de
natureza no Brasil. Os geógrafos preferem domínios morfoclimáticos e fitogeográficos,
os quais os biólogos chamam apenas de biomas – deveriam chamar de
biomas continentais, mesmo porque existem zonobiomas, que são biomas que
atravessam áreas muito grandes de um continente a outro e que reaparecem em
continentes vizinhos. Então fica estabelecido, diante dos domínios de natureza,
Aziz Ab’Sáber: problemas
da Amazônia brasileira
ENTREVISTA A DARIO LUIS BORELLLI ET AL.
E
8 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
biomas continentais e zonobiomas, dos quais a Amazônia é uma parte de notável
originalidade e extensão.
O problema de escala para a região amazônica é essencial: são quatro milhões
e duzentos mil km2 de área, dezesseis a dezessete vezes o estado de São
Paulo, com 95% do espaço total florestado. São florestas tropicais biodiversas de
grande extensão, com alguns redutos de vegetação do passado – sobretudo redutos
do cerrado, em Monte Alegre (PA), Amapá, miniredutos de cerrado no meio
das campestres de Roraima. Na periferia das florestas amazônicas biodiversas
ocorrem transições complicadas tanto ao sul quanto ao norte do corpo principal
da grande floresta.
Na minha história de pesquisas, foi a região entre o Maranhão oriental, o
Maranhão central e sudeste que possibilitou entender as chamadas faixas de transição
e de contato. A Amazônia faz contatos muito fortes e transicionais com os
cerrados e com os chapadões ocidentais do Maranhão, de modo que mais para o
norte há um decréscimo de continuidade florestal. À parte disso, há um aspecto
fundamental na Amazônia: todo o conjunto que fica entre a região cisandina
(região interna dos Andes), até o golfão Marajoara, apresenta uma só e mesma
drenagem, o que indica que a homogeneidade não está unicamente relacionada
à presença de grandes extensões de florestas, mas também de uma drenagem que
é como se fosse um leque, muito amplo, que fica entre a região cisandina e o começo
do estrangulamento por terrenos cristalinos do planalto das Guianas e do
planalto brasileiro setentrional, dando a impressão errônea de que é tudo muito
homogêneo.
Então acontece um primeiro fato no qual a drenagem é sobreposta à bacia
sedimentar amazônica, recebendo rios que vêm dos cerrados e altiplanos do centro
do Planalto Brasileiro e rios menores que vêm do Planalto das Guianas: conjunto
esse que, por muito tempo, constituiu os únicos caminhos de circulação,
para homens e mercadorias.
A extensão da bacia hidrográfica favoreceu penetrações muito grandes e é
provável que a colonização portuguesa que rompeu a linha de Tordesilhas norte-
sul pôde penetrar pelo rio principal, o baixo Amazonas, o médio Amazonas,
chegando ao Solimões, subindo até o rio Branco, impedindo a penetração dos
colonizadores espanhóis que vinham pelo norte, sudoeste etc. Paradoxalmente,
a drenagem foi fundamental como alongado eixo de penetração dos portugueses
e isto resultou em grandes conflitos com os habitantes indígenas regionais, o que
representou uma história bastante trágica.
Um outro problema é que a drenagem, em seu conjunto, é uma só, mas as
águas dos rios afluentes são diferenciadas, e, às vezes, com diferenças gritantes.
Existem rios brancos, com grande carga de sedimentos argilosos; há os negros,
com quase nenhuma carga de sedimentos argilosos em solução, e também os
brancos, em cima de areais transportados a partir da bacia sedimentar de Boa
Vista, em Roraima, percorrendo grande trecho do chamado “lavrado” – que é o
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nome que se dá para esta área dos campestres de Roraima, com os arenosos
campestres sobre areias. Conheço isso duplamente porque estive lá num período
de grandes queimadas e o rio ficou muito baixo, e apareceram montes fantásticos
de areias no leito seco do rio com dois canaletes laterais.
Isto posto, interessa-nos falar um pouquinho da nomenclatura que o povo
dá para esse conjunto de regiões. Na Amazônia predominam dois termos genéricos
de aplicação de corrente popular e cotidiana: a “terra firme” e a “várzea”.
Do ponto de vista científico, a terra firme não é igual em toda parte, tendo
grande continuidade e homogeneidade nos tabuleiros ondulados da Amazônia e
modificações setoriais em diversos pontos devido ao contraste nos solos aflorantes.
Às vezes, aparecem pequenos setores onde se verifica a existência de muita areia
e onde a floresta não entra: campinas, campinaranas e réstias de cerrado em terraços
arenosos.
O fato de que a floresta tem um pano de fundo geral e que localmente possa
ter algumas espécies e subespécies diferenciadas levou o professor Jürgen Haffer
(um geólogo alemão categorizado que percorreu várias partes da Amazônia sulamericana,
fazendo estudos geofísicos para uma possível descoberta de petróleo)
a realizar estudos complementares nas clareiras da floresta. Haffer, em todas as
clareiras nas quais parou na Amazônia sul-americana, anotou todos os pássaros
que aparecem na Amazônia ombrofílica (floresta de sombra), que é a principal
do conjunto das matas tropicais biodiversas da Amazônia, chegando à conclusão
de que em vários lugares havia algumas espécies diferentes do conjunto amazônico
e que, para ser explicado, ele teria que utilizar a interpretação de que o
manto florestal não foi totalmente contínuo em certos momentos do período
quaternário, e que eventualmente houve predominância maior de cerrados, separando
em malha complicada os restantes setores de florestas. Com isso, ele chegou
à Teoria dos Refúgios (1969), enquanto eu e Vanzolini, por outros caminhos
da ciência, chegamos à Teoria dos Redutos e Refúgios (1960-1970). A
observação do professor Haffer partiu do conhecimento da distribuição dos pássaros
dentro do gigantesco espaço territorial da Amazônia. As observações feitas
em São Paulo partiram do fato de que nós já conhecíamos bem os problemas do
quaternário terminal entre o Pleistoceno superior e o Holoceno. Sabíamos que
entre 23 mil e doze mil anos, tendo como ponto de partida observações fundamentais
de Jean Tricart e André Cailleux, houve num certo momento a penetração
de caatingas em muitas depressões interplanáuticas do centro-sul do território
brasileiro; de forma que, em algum período do quaternário, o domínio das
caatingas deve ter se estendido por muitos setores do planalto brasileiro, talvez
envolvendo o planalto central, até provavelmente a região do Pantanal e descendo
para vários outros pontos. Nós ajudamos o professor Tricart a percorrer áreas
aqui, e, em 1957, ele me disse: “Aziz, essa linha de pedras que está abaixo do
solo representa provavelmente um chão pedregoso do passado, você conhece o
sertão nordestino e sabe que há toalhas de cascalho no meio das caatingas”.
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Quando ele falou sobre a paleoecologia, afirmou que provavelmente houve a
chegada de cerradinhos ou caatingas – mas, na realidade, são diversos tipos de
caatingas, como pudemos estabelecer posteriormente.
Em um trabalho recente (São Paulo: Ensaios, entreveros, 2005), fizemos referência
sintética à importância dos estudos pioneiros de Cailleux e Tricart, nos
seguintes termos:
A grande lição que fica desses fatos todos – em uma homenagem para Tricart
e Cailleux – é a de que a ciência começa sempre com a descoberta,
baseada em observações detalhadas e cuidadosas; enquanto a interpretação
dos fatos observados, para ser válida, depende de conhecimentos comparativos
de áreas diversas e de tempos diferentes, assim como do uso de eventuais
instrumentos registradores ou amplificadores. Do cuidado nas observações
e da multiplicação de trabalhos analíticos pode-se chegar a teorias
sedutoras. E das teorias pioneiras e corretamente elaboradas é que foi possível
atingir inesperados conhecimentos. Sobre os ombros das interpretações
de Cailleux e Tricart atingiu-se, pelo estudo de áreas-chave, o conhecimento
dos palimpsestos paisagísticos de ordem regional ou sub-regional.
É interessante lembrar que, para restaurar parte da sucessão de quadros
ecológicos no quaternário do Brasil oriental, Tricart baseou-se fundamentalmente
na ocorrência de stone lines em diferentes locais das subáreas regionais. No caso
da Amazônia, porém, onde por grandes espaços predominam rochas sedimentares
(Formação Barreiras e Alter do Chão) não ocorriam sinais de chão pedregoso do
passado tão visíveis quanto aqueles encontrados nas depressões intermontanas e
interplanálticas do leste-sudeste e sul do país. No entanto, a presença de crostas
limoníticas eventuais na estrutura superficial de alguns setores da Amazônia, segundo
pudemos constatar, revelava um outro padrão de linhas de fragmentos de
tempos mais secos localizados. Por outro lado, nos morros florestados do Amapá
foram encontradas fragmentárias linhas de pedras que exigiam interpretações
mais seguras; além disso, foi possível entender os enclaves de cerrados existentes
em Porto Alegre, no Amapá, e em terraços arenosos eventuais numa categoria
similar à de redutos recentes envolvidos por uma floresta que se estendeu qualescentemente
por grandes espaços dos tabuleiros e baixos platôs da Amazônia.
Afora isso, muitas campinas parecem ter se implantado a partir de antigas veredas
arenosas (ariscos); e o mesmo parece ter acontecido também com alguns setores
das chamadas campinaranas que hoje invadiram terraços arenosos. E, por fim,
existem sérias questões na transição dos campestres do lavrado com as primeiras
grandes matas no centro-sul da Roraima, onde baixos pontões rochosos apresentam
rupestre-biomas de cactáceas de múltiplas espécies. Nessas áreas, talvez se possam
identificar um dia as etapas dos paleoclimas e paleoecologias que se processaram
a partir de climas secos para cerrados e campestres e, por fim, grandes matas.
Na Amazônia, o problema dessas stone lines foi intensivamente estudado
por mim. Encontrei algumas na região centro-ocidental de Roraima, mas não
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tinham muita continuidade e dentro das colinas da Formação Barreiras, a que se
chama Formação Alter do Chão, existem sinais de que algumas crostas mais
duras também participaram do chão pedregoso do passado na Amazônia.
De qualquer maneira, não houve um clima tropical constantemente úmido
na Amazônia durante este último período glacial, então eu sugeriria atenção
para um mapa que fiz há muito tempo, em que os cerrados predominaram e as
florestas se reduziram, mas não em manchas pequenas como aqui no sudeste. É
nesse ponto que entra a questão da Teoria dos Refúgios. É claro que a floresta se
reduziu enquanto os cerrados se ampliaram, mas, como disse Vanzolini: “na medida
em que se tem certeza na redução das florestas, pode-se entender que as
matas se reduzem e uma parte da fauna se refugia”. Eu acho fantástico isso, foi a
nossa contribuição para a Teoria dos Refúgios; eu trabalhei com a questão dos
redutos e o professor Vanzolini com a parte dos refúgios. Faço questão de destacar
isso porque muita gente acha que eu sou autor da Teoria dos Refúgios mas,
pelo contrário, foi somente utilizando o conhecimento de alguns pensadores
pioneiros que se dedicaram ao estudo dos paleoclimas inter e subtropicais brasileiro
que eu pude estabelecer essa questão da fragmentação da tropicalidade,
com diminuição das florestas e ampliação dos cerrados ao norte e caatingas em
vastas áreas do Brasil Tropical Atlântico.
É necessário dizer que 95% das terras amazônicas são terras baixas, ora
semiplanas, ora semi-onduladas, formando um vastíssimo conjunto de colinas.
O Amazonas começa no encontro das águas e vai até o golfão Marajoara; o Solimões
à montante, até a fronteira com outros países. A somatória de todas as
planícies aluviais embutidas nas colinas abrange de 3 a 5% do espaço total amazônico.
Isso quer dizer que 95% dos espaços regionais ou são colinas ou – no caso
do planalto das Guianas e do planalto brasileiro setentrional (área designada pelo
professor Keneth Kaster como Austro-Brasília) – são de baixos platôs, morros e
cerranias interfluviais extensivamente recobertas por densas florestas biodiversas,
onde ocorrem maciços bem individualizados, com florestas no entorno e cimeiras
campestres localizadas (caso da Serra dos Carajás), áreas mais enrugadas,
regiões de morros e pequenas serras interfluviais, em geral florestadas.
Dentro desse conjunto de colinas, morros florestados em rochas cristalinas
decompostas e de eventuais serras com topo plano, às vezes, como é o caso dos
Carajás, representam uma velhíssima superfície de aplainamento, onde ocorrem
redutos de campestres como: catassias, bromélias e vegetação campestre metalogênica.
Por que metalogênica? Porque ali a crosta superficial de mineral de ferro
é tão espessa que impediu a penetração das florestas tropicais.
Quando um rio qualquer sai da serra e consegue escavar essas crostas, acontecem
duas coisas: ou se formam pequenos lagos de cimeira, por causa da dificuldade
de trânsito das águas, ou florestas de galerias que, lateralmente, parecem
com as do Brasil central porque também têm veredas de campestres. As florestas
de galerias caminham no meio dos campestres até chegar no bordo da serra,
onde a floresta está presente em todas as encostas.
12 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
O problema da fertilidade dos solos
As planícies regionais do Solimões e do Amazonas possuem um dédalo de
lagos, diques marginais, velhas restingas, velhos meandros com um pouco de
areia em forma de restingas alongadas. Trata-se de um dédalo de lagos de diferentes
tipos, alguns meio redondos e outros meio paralelos aos volteios de antigas
restingas que ficam no centro da planície. O povo há muito tempo descobriu
a fertilidade dos solos dessas planícies, assim como a constante possibilidade de
pesca no rio Amazonas, nos riozinhos, igarapés e lagos.
Os informes sobre a Amazônia na década de 1940 possibilitavam avaliar
uns quatro milhões de pessoas, dos quais dois milhões e meio moravam ao longo
da planície por causa da fertilidade e da oferta de recursos. Isso me agradou profundamente
saber, mesmo porque o quadro de hoje é extremamente mais complexo
depois da invasão capitalista da Amazônia, a qual não foi bem estudada
geograficamente, mas que a gente pode rever.
Também queria dizer que a razão de ser dessa fertilidade excepcional da
planície, apesar dos dédalos dos lagos, está relacionada com o trânsito dos sedimentos
que vêm desde os Andes ou pré-Andes, atravessando várias regiões de
formações geológicas, sedimentares etc., e depois vão correndo e acrescentando
os sedimentos de formação, retirados das pequenas barreiras, que, no caso, seriam
falésias fluviais, de onde eram retiradas argilas e areias, que vão se misturando aos
sedimentos que vêm de longe através de um complexo processo de comércio de
sedimentação aluvial. Isso foi bem estudado e bem exposto pelo professor
Wolfgang Junk, que é um dos grandes estudiosos da Amazônia.
Existe uma grande diferença entre os solos das planícies de rios afluentes e o
conjunto de solos da faixa aluvial Solimões-Amazonas. Na realidade, os mais ricos
solos de toda a Amazônia, que se destacam em relação aos imensos setores de
solos mais pobres, constituem uma grande exceção. Convém lembrar que, apesar
O campo de extração de minério de ferro em Carajás.
Cristina Villares/Angular
ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 13
dos mosaicos de lagos, furos, igarapés e paranás-mirins, foi essa planície aluvial
extensa o primeiro conjunto de solos úteis para as populações amazônidas tradicionais,
por meio de cultivo tipo vazante, criação de gado bovino e pesca em todas as
correntes e massas fluviais. Lembro que alguns técnicos mal preparados para entender
a importância popular das chamadas várzeas amazônicas, em termos de
sobrevivência de populações ribeirinhas, pressionavam empresários e governantes
para fazer grandiosas plantações de arroz no espaço total das planícies. Uma proposta
que demonstra uma lamentável falta de compromisso com o social regional.
Embutido em vastas áreas de tabuleiros ondulados e baixos platôs, o curso
d’água do Solimões-Amazonas, através de seus transbordes atuais e subatuais,
conforma uma planície aluvial de 15 a 20 km de largura, em média, sendo que o
grande rio apresenta, ele próprio, uma largura de 4 a 5 km, de forma que entre a
largura do rio e a extensão lateral das planícies existe uma relação de apenas um
para quatro, ou, eventualmente, um para seis. Portanto, aquilo que o povo da
Amazônia chama de várzea, não é tão largo e tampouco homogêneo devido ao
dédalo de lagoas, furos, igarapés e paranás-mirins.
Paisagem criada com a cheia das águas do rio Amazonas.
Foto Arthur Omar
14 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
A partir do encontro das águas entre os rios Negro e Solimões, a sudeste de
Manaus, pode-se ter uma idéia precisa da massa de argila carregada pelo Solimões-
Amazonas. Trata-se, evidentemente, do curso d’água que transporta o maior volume
de argilas dissolvidas em suas águas lodosas, conhecidas no mundo inteiro.
Causa estupefação a dinâmica do atrito das águas do rio Negro, completamente
destituído de sedimentos argilosos em dissolução. Muita coisa ainda precisa ser
estudada no que tange à limpeza das águas escuras do rio Negro, sendo de se
notar os componentes biogênicos e bioquímicos, que têm até hoje um papel importante
na eliminação da poluição hídrica derivada da cidade de Manaus.
Enquanto o rio Solimões-Amazonas desce da região pré-andina até o golfão
Marajoara sem qualquer acidente em seu leito, muitos dos rios afluentes apresentam
alinhamento de quedas entre o seu largo-baixo vale e o seu médio curso.
Pedro Moura, geólogo que trabalhou por dois anos no baixo Amazonas, foi o
primeiro pesquisador a identificar uma linha de quedas (fall line) entre o baixo e
o médio vale dos rios Tocantins, Xingu e Tapajós. Hoje sabemos que existem
quadros similares de cachoeiras e corredeiras nos afluentes da margem esquerda
do Amazonas, assim como após extensos setores de alguns rios da Amazônia
ocidental. A gênese da fall line nesses diferentes setores, mais próximos ou mais
distantes do grande rio, dependeu de flutuações no nível do mar por movimentos
ditos glácio-eustáticos ocorridos nos fins do quaternário e início do holoceno.
Enquanto os mares perdiam nível, rebaixando-se e descendo pela plataforma
continental, o paleo-rio Amazonas da época foi forçado a realizar uma erosão regressiva
que entalhou colinas e baixos platôs, mas não conseguiu estender-se
pelo contato dos terrenos cristalinos resistentes, que bordejavam a bacia sedimentar
amazônica. A erosão remontante de talvegue, por seu turno, deve ter sido realizada
em um contexto de menor pluviosidade relativa devido à implantação natural
de climas tropicais, a duas estações, conforme se deduz pela Teoria dos Redutos
e Refúgios. De tal forma que, quando o rio se estendia na plataforma e adentrava
no talvegue, deveria ter existido um outro quadro hidro-geomorfológico que
restou tamponado e escondido pelo volume e extensão das planícies aluviais. O
adentramento lateral de tais processos de erosão regressiva foi bloqueado no contato
de rochas cristalinas e rochas sedimentares, onde se formaram as cachoeiras e
corredeiras das chamadas fall lines sul-amazônicas. À medida que o nível do mar
subiu muito e ficou a mais de três metros de seu nível médio atual, e que as
precipitações amazônicas se tornaram maiores e mais extensivas, águas do Amazonas
e Solimões afogaram o baixo vale de inúmeros rios da Amazônia, criando
baías de ingressão fluvial parecidas com estuários, às quais Francis Ruellan, em
uma interpretação pioneira e muito adequada, designou por “rias de água doce”.
Convém registrar que a existência dos setores de cachoeiras e corredeiras
da fall line conduziu a uma tentativa de solução para o transporte fluvial dos rios
regionais por meio de um transbordo por pequenas ferrovias contornantes. Tais
pequenos projetos rasgando trechos das selvas foram introduzidos por engeESTUDOS
AVANÇADOS 19 (53), 2005 15
nheiros ingleses que, nos fins do século XIX, já haviam tentado implantá-los em
alguns setores da África. Sabe-se que esse tipo de projeto foi tentado na região de
Tucuruvi e muito além, no rio Madeira, para tornar possíveis relações de transporte
entre o Mamoré e o próprio grande rio Madeira (a famosa Mad Mamoré).
Convém registrar que a cachoeira de Santo Antônio, entre o baixo e o
médio Jarí, é um ponto de uma fall line menos visível em rios afluentes provindos
do Planalto das Guianas. E, além disso, que São Gabriel da Cachoeira, no
médio-alto vale do rio Negro, constituiu outro ponto de fall lines dos rios afluentes
da margem esquerda do Solimões-Amazonas.
No que concerne às terras firmes, a qualidade do solo para fins de atividades
agrárias e agropecuárias é muito diferente. O solo foi formado por uma evolução
integrada da floresta e de todos os seus componentes: os herbáceos, os
subarbustivos e as grandes árvores etc. De tal maneira que o solo que a floresta
engendrou não tem nada a ver com o solo que os agricultores pensam que vão
encontrar quando devastam as florestas e queimam as toras para tentar fazer
alguma agricultura. Nunca deu certo a agricultura extensiva, então os proprietários
de terra entraram no domínio da agropecuária e, sobretudo, da pecuária
mesmo. E isso é um problema muito sério porque os proprietários que compraram
terras por preços aviltadíssimos na Amazônia dizem sempre: “agora a terra é
minha e eu faço com ela o que quiser e quando quiser”. Esse é o grande dilema
da Amazônia em relação à destruição da cobertura vegetal para atividades ditas
agropecuárias.
A devastação da mata
Com base nos registros existentes nas imagens de satélite tomadas sobre a
Amazônia brasileira, pode-se detectar os diferentes caminhos de devastação que
estão ocorrendo em alguns quadrantes de nossa grande região equatorial. A importância
de se entender os eixos principais de degradação forçada por atividades
antrópicas reside no fato de que, em certas áreas, existe uma interconexão dos
processos de devastação. Por outro lado, as observações dessa intrincada malha
de devastação que atinge setores da Amazônia oriental podem nos alertar sobre
as conseqüências que tais processos possam acarretar, entre elas, novos caminhos
de devastação provocados por especuladores insensíveis.
A região sul do Pará, entre as cidades de Marabá e a Serra dos Carajás e
Serra Pelada, foi certamente a área que sofreu a maior devastação de matas tropicais
em toda a Amazônia brasileira. Observações de campo realizadas na região
por diversos pesquisadores, ao par com análise de imagens de satélite, podem
nos oferecer um quadro lamentável da fragmentação florestal nos últimos vinte
anos. Os caminhos de devastação que ali se interconectaram constituem um alerta
permanente para administradores e governantes a fim de inibir a sua repetição
para áreas da Amazônia onde existem ainda grandes contínuos florestais. Foi
relativamente fácil a alguns de nós interpretar a conexão desastrosa das ações
antrópicas incontroladas que aconteceram na região a partir da implantação da
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rodovia PA-150. Por grandes extensões do rasgão inicial produzido para a instalação
da estrada que liga o sul do Pará à região de Belém, houve apropriação de
terras nas duas bandas do eixo viário com retângulos de devastação de um a
cinco quilômetros. O mesmo estilo de devastação, porém, ocorre ao longo dos
chamados ramais, que são caminhos perpendiculares à rodovia. Os ramais tangentes,
ou oblíquos, criam o primeiro tipo de conexão entre os espaços devastados
situados entre a rodovia e o ramal. Existe, porém, um terceiro tipo de devastação
nos sub-ramais, que, por sua vez, se projetam perpendicularmente aos
ramais pré-implantados. Nos intervalos entre ramais, sub-ramais e rodovias foram
estabelecidos espaços na forma de grandes quarteirões para serem parcelados
e vendidos para quem quer que seja no Brasil. Esses quarteirões enormes
rasgados por um reticulado de trilhas – designadas, devido ao seu formato, por
espinhelas-de-peixe – constituíram os subespaços de mais difícil acesso no coração
das matas amazônicas. Os incautos que adquiriram pedaços de terras no
entorno dos ditos quarteirões raramente tiveram sucesso agrário na região, sendo
obrigados a vender por preços irrisórios as madeiras nobres existentes na
biodiversidade regional das florestas. Essas ditas espinhelas-de-peixe, devido à
ocupação inicial predatória dos entornos dos quarteirões, acabaram por receber
devastação progressiva e caótica, vindo a constituir o mais lamentável exemplo
de fragmentação dos antigos espaços florestados sul-amazônicos.
Afora esses quatro tipos devastadores, ocorre a abertura de grandes espaços
retangulares distantes das rodovias e ramais através de trilhas chamadas linhões,
mantidas sob controle pelos proprietários devastadores. Esses produtores de
“pseudo-fazendas” interiorizadas não podiam imaginar que as imagens de satélite
tomadas em nível regional pudessem denunciar suas interferências incontroladas
no miolo das selvas. A esses cinco caminhos de devastação sujeitos a uma
interconexão progressiva, somam-se os que acontecem ao longo dos rios, riozinhos
e igarapés do alto rio Guamá, que paraleliza o eixo viário sul-norte a algumas
dezenas de quilômetros para leste. De passagem, diga-se que tanto os espaços de
colonização oficial semiplanejados como as espinhelas-de-peixe produzidas
por especuladores social e ambientalmente insensíveis conduzem ao mesmo
resultado devastador atrás detalhado. O último caminho de devastação em
uma faixa periférica da Amazônia é aquele evoluído desde o contato dos cerrados,
cerradões e florestas pré-amazônicas, progredindo de sul para o norte, nos
espaços de transição: fato denominado pela mídia de arco da devastação (norte
do Mato Grosso, Rondônia, norte de Tocantins e sul-sudeste do Pará).
Julgamos indispensável o conhecimento desses processos acontecidos no
sul do Pará para evitar que eles se repitam em qualquer outra área da Amazônia
florestada, sobretudo no que diz respeito à Amazônia ocidental. Rasgões produzidos
em qualquer subárea da Amazônia por meio de rodovias,
gasodutos e eixos-viários mal planejados, certamente podem multiplicar
os caminhos de devastação, centrados nos processos que vimos de analisar.
ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 17
Se nas regiões dotadas de densas
áreas urbanas, sujeitas a conurbações
em processo, existem perigos inauditos
a diferentes profundidades de tempo,
no caso da Amazônia brasileira
ocorrem imensos receios relacionados
com a destruição rápida e incontrolada
das florestas equatoriais. Tudo porque
existe total despreparo dos governantes
quanto ao quadro conjuntural da região.
Parece que os governantes e seus
auxiliares não sabem ler, ou têm raiva
e ciúmes em face de estudos e idéias
para um correto estabelecimento de
políticas públicas. Era de esperar tal
descalabro desde o momento em que
os membros do primeiro escalão do
governo transformaram as chamadas
“organizações não-governamentais”
em equipes robotizadas de ordem governamental.
Queimada, Santa Luzia.
Rodovia BR 364.
Fotos Marcos Santilli
18 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
Para infelicidade do destino da biodiversidade amazônica, o mais alto dignitário
da nação, através de um ato falho verbal, acenou com uma liberação
inoportuna para todos os devastadores. A frase dele foi: “a Amazônia não pode
ser intocável”. O problema é outro: em primeiro lugar, há que se saber como ela
vem sendo “tocada”. E, ao mesmo tempo, realizar um esforço imenso para planejar
um desenvolvimento econômico com o máximo de floresta em pé.
Para tanto, seria preciso criar políticas públicas adequadas para cada uma
das células espaciais da região amazônica, e incentivar os poucos modelos de
economia ecologicamente “auto-sustentada” criados pelos próprios amazônidas
(Projeto Reca – Reflorestamento Econômico Concentrado e Adensado, por exemplo).
Em um ano, perdemos 26 mil km2 de florestas biodiversas. Não será a
invasão do capitalismo selvagem na Amazônia brasileira que poderá resolver o
destino dos vinte milhões de amazônidas ali residentes – uma grande parte vivendo
uma geografia humana extremamente sofrida, tanto no mundo urbano em
crescimento quanto nas regiões silvestres e rurais.
É lamentável que não se tenha consciência sobre os destinos da Amazônia.
Cabe à nossa geração – ao início do século XXI – exigir um gerenciamento mais
correto e inteligente para garantir a preservação das biodiversidades e a sobrevivência
dos homens e da sociedade no grande Norte brasileiro.
Estudos Avançados – Diante da semelhança entre geógrafos e geólogos no que
tange à noção de escala do tempo, da natureza e da escala de tempo da humanidade,
como o sr. vê a escala do século que passou? Gostaria que a avaliação fosse feita
com expectativas para o século XXI.
Aziz Ab’Sáber – Vou decepcioná-lo um pouco. Você falou nas escalas de
tempo e espaço e, no caso da Amazônia, isso é essencial. O que aconteceu na
história geológica da Amazônia brasileira, sobretudo, foi extraordinário em termos
de interferências tectônicas e mudanças de tipos de bacias sedimentares. A
teoria de placas que procura explicar a junção de África e Brasil tem mais propriedade
do que as teorias de derivas antigas, embora a deriva deva ser considerada
entre os dois blocos; sendo assim, se é que a teoria de placas pode ser aceita, a
depressão amazônica, antes que houvesse qualquer barreira oeste tipo andina,
era um golfão, e a presença de sedimentos de várias idades do Paleozóico, Siluriano,
Devoniano e Carbonífero e depois muito mais tarde, restos de sedimentos marinhos
do Mioceno, em vários lugares, a oeste, um pouquinho a leste, na região da
Bragantina, servem para documentar que o mar vinha de oeste até um certo
tempo. Nesse caso, o dobramento dos Andes acabou com o golfo, criando um
paredão volteado, que nós chamamos de terras cisandinas. De maneira que isto
proporcionou o começo de uma sedimentação terrígena flúvio-lacustre muito
ampla, que é a que deu origem, dentro do golfão antigo, a grandes territórios
para a Formação Alter do Chão: barra, barreiras. Somente a partir dessa sedimentação
é que o rio se inverteu – o Amazonas era um rio complicado dentro do golESTUDOS
AVANÇADOS 19 (53), 2005 19
fão que não era muito homogêneo. Quando os Andes se soerguem, a sedimentação
terrígena estende-se de oeste para leste, tamponando velhas formações
sedimentares paleomesozóicas do antigo macrogolfo regional (Amazônia ocidental);
existe a certeza de que a drenagem amazônica possuía um rumo lesteoeste,
na direção do grande golfo regional. Nos fins do Terciário, o paleorio
Amazonas, que diferia totalmente do atual, foi tamponado pelas formações
sedimentares pliocênicas (Formação Alter do Chão e Formação Barreiras), de
forma que o rio Amazonas, tal como o conhecemos hoje, é um curso fluvial
hidrologicamente recente, gerado em tempos pós-pliocênicos.
Tais acontecimentos geológicos foram responsáveis por uma drenagem
quaternária tipicamente centrípeta na Amazônia ocidental, sob a condicionante
ecológica de um domínio clímato-botânico equatorial. A porção brasileira da Amazônia,
pelo seu tamanho e extensão, constitui o mais importante megadomínio
de natureza tropical da Terra. Na realidade, é um domínio quente e úmido propiciador
de uma história vegetal que embrionariamente remonta ao início do período
Quaternário. Até o Terciário Médio, comportava-se como um paleogolfão
da fachada pacífica do continente, intercalado entre os terrenos do Escudo Guianense
e do Escudo Brasileiro norte-oriental. Essa grande inversão forçada pelo
dobramento da Cordilheira Andina exige que, antes desse fato, os bordos da Amazônia
oriental ainda teriam vínculos com os terrenos antigos da África Ocidental.
Isso me leva a dizer que as escalas de tempo na Amazônia são muito complexas,
porque o embasamento cristalino que está do lado das Guianas e do lado
do planalto brasileiro setentrional possuiu rochas gnáissicas e graníticas em importantes
enclaves (Carajás, Serra do Navio) de rochas metalogênicas (manganês,
ferro, entre outros), de antiqüíssimas orogêneses criadas em determinadas situações
que hoje não podemos imaginar, visto que o escudo de rochas resistentes
sofreu vários soerguimentos epirogênicos acompanhados de sucessivos processos
erosivos que acabaram por expor jazidas minerais formadas em grande profundidade,
através de muitos contatos de calores extraordinários. E do outro lado há
a grande área de manganês que também sugere tempos muito antigos – embora
hoje a Serra do Navio esteja reduzida a um buraco. Passei por lá recentemente e
é triste verificar que, em pouco tempo, esgotou-se o manganês da região, por
uma razão bem simples: interessava ao mundo no momento em que foi descoberto,
o mundo não tinha manganês para a indústria siderúrgica e metalúrgica
de vários países. Assim, quando se descobriu o manganês na Serra do Navio e se
fez um contato entre empresas brasileiras recém-criadas e empresas americanas
de grande consolidação com problemas de prospecção e exploração, o mundo
recebeu quase todo o manganês da parte das Guianas, mas na parte brasileira
ainda sobraram muitas outras riquezas minerais. Na parte, também do sul, onde
está Carajás, com grandes reservas de minério de ferro da mais alta qualidade,
há, paralelamente, um distrito mineral, provavelmente o último grande distrito
mineral descoberto no mundo durante a segunda metade do século XX.
20 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
As idades dos terrenos cristalinos, cristalofianos e os dotados de ferro de
um lado e manganês do outro, são muito antigas. Constam, por aproximação,
de um bilhão e quinhentos milhões de anos, enquanto os terrenos Devonianos,
Silurianos e Carboníferos, que são como depósitos marinhos de fundo de golfo
do passado, têm cerca de trezentos milhões de anos. Os terrenos sedimentares
desta vasta bacia, formada pelos dobramentos dos sedimentos flúvio-lacrustes,
possuem no máximo quinze milhões de anos.
Então, quanto a essa parte das escalas, só posso lhe dizer isso. Mas a sua
pergunta essencial é sobre o século XX.
Como estou muito interessado na evolução desse século, gostaria de começar
dizendo que o século XX, na Amazônia, começou um pouco antes do ano
de 1900, isso porque, de repente, já haviam ocorrido algumas mudanças de atividades
na Amazônia, em função do novo olhar de mundo direcionado pelo
extrativismo do látex retirado da seringueira: o ciclo da borracha. A ruptura ocorrida
no importante ciclo da borracha entre 1910 e 1912 conduziu a região a uma
longa e triste estagnação por quase meio século.
A primeira ferrovia cortando as terras firmes por um espaço razoável foi a
Bragantina, a qual colocou Belém em contanto com Bragança na região do Salgado,
localmente representada por aquelas planícies de mangue que existem desde
o noroeste do Maranhão até o nordeste do Pará. Um projeto que foi mais
tarde ladeado por estradas de rodagem em uma área em que se pretendia consolidar
a vida agrícola nas suas margens, em função da existência de uma tradição
de agricultura itinerante.
Logo, a primeira fase onde reconheço mudanças de atividades em espaços
um pouco mais amplos foi a da região Bragantina. A segunda fase, que foi a de
encontro de certos setores das terras firmes que poderiam receber uma agricultura
local de uma certa economicidade, foi a da região de Tomé-Açu.
A experiência dos americanos em Belterra, no vale de Tapajós, é um pouco
sincrônica a tudo isso, mas é complicada, porque não deu certo em nada, pelo
contrário, criou a idéia de que foi uma excelente contribuição para obter melhores
conhecimentos sobre o corte da mata e a regeneração da floresta.
Depois disso tudo, o extrativismo continua muito pálido até 1910 e 1915.
E tudo aquilo que o extrativismo legou para a Amazônia durante um século
entra em decadência, que é uma decadência de uma geografia humana muito
sofrida para os seringueiros, para os beiradeiros de igarapés e também para as
cidades. Fui pela primeira vez a Manaus em 1952, quando estava começando um
novo ciclo urbano, com a construção de um bom hotel e com o término do
aeroporto de Ponta Pelada, que foi o primeiro – hoje ele é um aeroporto apenas
militar, devido à decadência comercial extrema da cidade.
Aqui aproveito para deixar registrada a maneira pela qual cheguei à Amazônia,
nessa ocasião com os professores Wladimir Besnard, Ari França e o piloto
da FAB.
ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 21
Como eu era prático em laboratório, não me colocavam em discussões
longas e importantes que gostaria de fazer. Então, um dia o professor Ari França
chegou no Departamento de Geografia e disse o seguinte: “amanhã vai um avião
para a Amazônia. Quem é que se candidata?”. Então fui com o conjunto: um
antropólogo, o professor Wladimir Besnard (oceanógrafo), eu e a tripulação.
Essa viagem foi o começo de minhas pesquisas na Amazônia. A sucessão de
estudos foi: agricultura itinerante em Bragantina; tentativas fracassadas de fazer
plantações de seringueiras dentro de clareiras na mata, numa região de solos
inadequados pelos americanos em Belterra, depois Tomé-Açu, e, mais recentemente,
toda essa invasão capitalista de que a estrada de Belém-Brasília participou
muito, pois à medida que a estrada foi se estabelecendo, começou o apossamento
de terrenos no coração das florestas (Pará) e parte dos cerrados (norte de Goiás,
atual Tocantins). Note-se que a estrada demorou a ser implantada, pois ela estava
cortando extensas áreas florestais. É bom registrar que a Belém-Brasília, ou
mais precisamente a Anápoles-Belém, foi construída sem qualquer preocupação
de previsão de impactos ecológicos e sociais, infelizmente. As pessoas já começavam
a ocupar terras devolutas e laterais, mais perto de Belém, comprando por
preços aviltados terras de proprietários que não tinham possibilidade alguma de
produzir, tampouco tinham documentos legais de posse. É conveniente saber
que após a construção da Belém-Brasília ocorreram modificações nas atividades
agrárias da região bragantina, incluindo o cultivo da pimenta e outras coisas
mais, bem como algumas tentativas de plantações de seringueiras. Assim, desde
as agriculturas itinerantes e o extrativismo, até a agropecuária, tivemos um século
de mudanças no espaço total regional.
Rio Verde, o núcleo satélite da cidade de Paraupebas.
Cortesia do Entrevistado
22 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
Zoneamento, os subespaços da região
Com vistas à melhoria das condições em processo no imenso espaço
territorial da Amazônia brasileira, julgamos ser indispensável conhecer todos os
subespaços da região em termos de conjunturas socioeconômicas, e expectativas
das comunidades amazônidas residentes, a fim de propor medidas de interesse
social e econômico e sistemas de gerenciamento ecológico racionais e inteligentes.
A discussão, feita por nós em um trabalho sobre zoneamento ecológico econômico
da Amazônia, foi explicitamente dirigida para tais objetivos que deveriam
ser projetados para o século XXI na grande região.
Sempre foi muito difícil apresentar a Amazônia, no seu todo espacial e em
suas diferentes regiões e quadrantes, a estudantes primários, secundários e para
parte dos universitários.
Até meados do século XX, houve notória falta de conscientização das ações
sobre o mundo físico e sociocultural da Amazônia brasileira. Razão pela qual os
informes de cronistas, viajantes naturalistas, médicos, sanitaristas, missionários,
indigenistas, geólogos e intelectuais amazônidas constituíram-se como a base
dos conhecimentos disponíveis para um restrito número de leitores. É certo que
tais informações fragmentárias setoriais não tiveram possibilidade de chegar aos
brasileiros de todo o país.
A condição prévia para entender a Amazônia em seu todo reside em uma
setorização abrangente de grande concretude e visibilidade, ou seja, um esforço
para regionalizar um megaespaço mal conhecido e mal gerenciado pelos governos
que se sucederam no Brasil. A estratégia de um primeiro zoneamento, realizado
em células espaciais de indiscutível propriedade, é o primeiro passo para
servir a um padrão de desenvolvimento com um máximo de floresta em pé e biodiversidades
integradas. A partir de uma setorização em quadrantes da ordem de
80 a 150 mil km, poderão ser feitos detalhamentos minuciosos de cada subregião
pré-identificada, utilizando todos os recursos cartográficos, aerofotogramétricos
e, sobretudo, a visualização espacial do Projeto Radam e as notáveis
imagens de satélite disponíveis.
Ao longo do eixo oeste-leste do vale amazônico, envolvendo as planícies
de inundações e os baixos vales dos rios afluentes, podem-se reconhecer cinco
setores principais: o alto Solimões e, a partir da confluência com o rio Negro, o
médio e o baixo Amazonas e, por fim, o Golfão Marajoara. Para completar a
setorização geográfica, há que se considerar, nesses espaços, a presença de alguns
pontos nodais: o Projeto Jarí e a área de Macapá-Porto Santana. Ao sul da faixa
oeste do Amazonas desdobra-se uma série de regiões geográficas individualizáveis,
desde o Acre até a chamada região Bragantina do Pará.
Cada uma das células espaciais amazônicas tem de ser conhecida em sua
realidade física, ecológica, urbana e social para a percepção de seus problemas e
as expectativas das suas comunidades residentes, sendo necessário fazer estudos
metódicos e realistas sobre os pontos nodais como as regiões de Manaus, Belém,
ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 23
Paraná do Ramos, Santarém/ Alter do Chão, Jari e Trombetas, Macapá-Porto
de Santana, Rio Branco-Xapurí, Marabá-Carajás, Boa Vista-Caracaraí, Porto Velho,
Projeto Reca, “Lavrado”, as terra florestadas de Roraima, e, finalmente, de
alguns setores das fronteiras com Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia e Guiana
Francesa.
As linhas de quedas existentes nos confins dos baixos vales afluentes do
Amazonas – ao sul e ao norte do grande rio – foram acidentes que dificultaram a
circulação hidroviária na Amazônia oriental. Por outro lado, os rios ocidentais da
região, sobretudo o Purus e o Juruá, são por demais meândricos, tornando vagarosa
e sofrida a navegação fluvial. Por falta de recursos e por pressa, não foi possível
construir comportas em Tucuruí para viabilizar o transporte fluvial por um
bom trecho do rio Tocantins. Poderá ocorrer o mesmo na região de Volta Grande,
no rio Xingu, onde se pretende construir mais uma importante hidrelétrica.
Razão pela qual restou como projeto de navegação para médio porte o alongado
rio Madeira desde Porto Velho ao Amazonas, Paraná do Ramos e portos do golfão
marajoara, opção correta do “Avança Brasil”, um projeto governamental que,
entretanto, desprezou dezenas de outros quadrantes da grande Amazônia.
Assim, defendemos a tese de que a região tem de ser vista e atendida em
todos os setores, por meio de incentivos e atendimentos múltiplos para todas as
comunidades residentes. Na Amazônia brasileira projeta-se uma população de vinte
milhões de seres humanos, muitos dos quais marginalizados em razão de uma
geografia humana sofrida. O mundo urbano novo que fez crescer e multiplicar
cidades atraiu gente de todas as beiradas de rio e igarapés, mas não
teve força para ampliar ou multiplicar mercados de trabalho. Daí ter
surgido uma nova pobreza, responsável por subnutrição, bairros carentes,
favelas e dramas pessoais e familiares inenarráveis.
Estabeleceu-se a importante e competitiva Zona Franca de Manaus, construíram-
se represas para hidrelétricas, descobriram-se petróleo e gás na Amazônia
ocidental, mas, em compensação, rasgaram-se rodovias em desmesuradas extensões
de terras florestadas sem qualquer previsão ou gerenciamento de impactos
físicos, ecológicos e socioambientais. Na terra dos grandes espaços florestados,
tramou-se contra as reservas indígenas e contra os próprios indígenas, remanescentes
da pré-história. Atendeu-se literalmente a todos os interesses dos especuladores
de fora e de dentro do país sob alegações de um desenvolvimento que se
sabe absolutamente incompleto e anti-social.
Privatizou-se o distrito mineral mais importante descoberto ao longo do
século XX (Carajás). Esgotaram-se as jazidas de manganês da antiga Serra do Navio
e, após se terem tolerado as pressões dos proprietários de garimpo, não houve estratégia
correta para enfrentar a sanha dos madeireiros que continua a existir sob
grande pressão. E, assim, a Amazônia, a maior e mais rica floresta tropical do mundo,
berço de riquezas incontáveis para a humanidade, por sua biodiversidade, transformou-
se num espaço de cobiça e crítica que fere a auto-estima de todos nós.
24 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
Estudos Avançados – A Amazônia, por ser um universo paralelo, faz com
que essa porção ainda continue desconhecida na parte sul do país. Sendo assim, qual
é o mecanismo de integração da Amazônia com o restante do país? Será que não há
uma percepção totalmente equivocada do sul do país bem como do exterior em relação
à Amazônia?
Aziz Ab’Sáber – São perguntas essenciais do ponto de vista antrópico.
Estudo muito as áreas culturais existentes no Brasil como um todo e a conclusão
a que tenho chegado é que algumas dessas áreas, por várias razões, inclusive por
causa da circulação facilitada, são extremamente ricas.
No caso da Amazônia, a expansão cultural se fez apenas dentro do território,
a partir do centro dos rios principais para as periferias, chegando até as fronteiras
do Acre, de Roraima e do Amapá. De qualquer maneira, é o conjunto de
valores culturais da própria região que se expandiu exclusivamente por ela.
Os outros grupos culturais precisam ser conhecidos, e o mais importante
de todos como cultura popular do país é o sertanejo. Sua cultura se incorporou
à Amazônia, por causa dos períodos de seca e de migração forçada por vários fatores.
A Amazônia tem uma série de raízes indígenas, portuguesas e negróides,
porém, tem raízes culturais que não pertencem somente a ela, mas que vieram do
nordeste seco. Tenho um colega que um dia pôs uma notinha no rodapé de um
trabalho seu dizendo: “os que vinham do nordeste para a Amazônia gostavam
de seguir para as zonas dos seringais, porque eles imaginavam que
no fim daqueles rios longos e volteados iriam reencontrar o seu sertão”, eu
achei maravilhoso isso.
A divisão que faço das principais culturas do Brasil é: amazônida, muito
mestiçada culturalmente; sertaneja, dentro da região nordeste seco; a pantaneira,
pouco conhecida, pouco estudada, porém de uma realidade diferenciada; a gaúcha;
a caiçara e a caipira, em São Paulo já semidestruída, mas com várias emergências
em processo de modificação.
A ordem de grandeza do país dificultou, desde há muito tempo, a integração
político-administrativa da Amazônia ao Brasil, porque a Amazônia tem um rio
oeste-leste que, durante muito tempo, exportava diretamente suas coisas para os
outros países do mundo, através de Belém e agora, depois da descoberta do
manganês, através de Macapá. Por sua vez, a região do planalto brasileiro (incluindo
as caatingas, cerrados, Brasil tropical-atlântico, planaltos das araucárias e
pradarias mistas) possui uma trama de ferrovias que começou na década de 1870
e de rodovias que se multiplicou e se aperfeiçoou nos últimos cinqüenta anos,
facilitando a circulação de pessoas. Assim, é muito mais fácil encontrar um gaúcho
na região pré-amazônica ou no interior da própria Amazônia, que comprou
pedaços de terras para fazer suas fazendas, do que encontrar humildes amazônidas
em regiões do centro-sul brasileiro.
Mas o pior de tudo é que nem o amazônida semilocalizado em certos
setores entende a Amazônia; ele se deixa, inclusive, iludir pela modificação de
ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 25
atividades. Os primeiros eram os que foram cortar madeira para a construção da
estrada Belém-Brasília – conforme disse o professor Orlando Valverde: “foi uma
legião de machadeiros”, mas logo depois vem a fase de expansão das agropecuárias,
perto das estradas e medianamente longe das selvas, trazendo consigo a motosserra
que facilitou a predação e continuou como sistema único, a fim de preparar o
terreno para a agricultura ou a pecuária, de modo que, conseqüentemente, passaram
a lavrar queimadas por toda parte.
Estive uma vez nos arredores de Belém e uma instituição importante tinha
derrubado um pouco de mato para fazer qualquer atividade lá, estavam queimando
para fazer algumas experiências agronômicas. Então eu perguntei: “mas
vocês estão seguindo o mesmo rumo dos outros?”, aí eles disseram que era a
única maneira econômica de conseguir um espaço exposto para atividades dentro
das florestas contínuas da região.
Na Amazônia, no fim do século XX, o processo de desmatamento para
encontrar terras suficientes para atividades agropecuárias lembra o mesmo caso
da colonização portuguesa na parte atlântica na zona da mata nordestina. E,
curiosamente, os grandes tropicalistas franceses que deram aula nessa nossa universidade
diziam que era uma coisa absolutamente normal: para encontrar espaços
para agricultura é necessário cortar a floresta, sem nenhuma indicação de
planejador, apenas dando o aval teórico para isso. E é exatamente isso o que
irrita, porque ou a gente passa a encontrar alguns tipos de atividades que sejam
economicamente auto-sustentáveis (eu não uso a palavra “sustentável” nunca, a
não ser para economia ecologicamente auto-sustentável, e esse é o caso que estou
defendendo para o entorno das flonas – florestas nacionais). Ataco as flonas
e os asseclas do meio ambiente que querem conseguir flonas para ONGs, ou
então alugar flonas para obter dinheiro, que não é tarefa específica do Ministério
do Meio Ambiente.
Reca, um bom projeto
Sugiro então que se faça o uso das bordas dessas florestas que estão mais
ou menos bem preservadas para atividades agrárias auto-sustentáveis. Por exemplo,
lá nos confins de Rondônia, na fronteira com o Acre, um ex-padre francês,
que veio com uma garra enorme, porque tinha origem rural e queria dar um
jeito de servir à Amazônia, começou a conversar com Dom Grechi, lá de Rio
Branco, e passou a associar-se com o pessoal de uma zona rural de uma cidadezinha
próxima à fronteira, Senador Guiomard, que é a única que tinha plantações
economicamente válidas, mas muito pequenas, de maneira que graças ao
contato com os parceiros amazônidas do Acre pôde inventar a ocupação de “bordo
de floresta”.
Tem grande interesse na conjuntura atual da Amazônia saber que os bordos
de floresta, recuados por ações antrópicas, têm uma importância ecológica
muito grande, devido à umidade remanescente combinada com a luminosidade
confrontante. Um fato que possibilitou o início do projeto Reca na fronteira do
26 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
Acre com Rondônia, modelo que pode ser ampliado para as mais diversas áreas
de terra firme amazônica. O objetivo dos que fizeram esse modelo de economia
silvoagrária auto-sustentada era o de aproveitar áreas já devastadas a partir do
bordo da floresta, sem mexer muito com o interior da mata e sua biodiversidade,
impedindo assim a penetração dos habituais especuladores insensíveis, corrigindo
os solos e desdobrando atividades, envolvendo espécies amazônicas (açaí,
cupuaçu, pupunha e castanheiras) e outros cultivos (mandioca, abacaxi, mamoeiros,
cana-de-açúcar e bananeiras). Desse modo, dentro da floresta apenas continuaria
o extrativismo da seringueira e a coleta dos ouriços da castanha. Nos
bordos da floresta, engendrou-se uma forma de plantar para alimentar, nos primeiros
dois anos, as pessoas que trabalhavam e depois, à custa de outros processos
agronômicos, plantaram-se açaí, pupunha e cupuaçu, para atividades rentáveis
para os quatro, cinco anos posteriores. Aí perguntei a eles: “como é que vão
esperar que as castanheiras cresçam, visto que demoram dezessete a dezoito anos?”
Eles me responderam que, para o primeiro ano, tinham o abacaxi, as hortaliças e
o extrativismo em continuação, por isso mesmo “quem quiser entrar em nossa
cooperativa, deve ficar por dois anos para conhecer e estudar. Então fazemos
plantações de ciclo curto para poder nos alimentar no ano corrente e, a partir de
dois anos, nós teremos reservas”. As plantações eram de abacaxi, hortaliças, mandioca
e um pouco de feijão; logo nos primeiros tempos eles começaram a fazer
uma pequena indústria, esquentando a castanha que, depois, as mulheres, em
mesas rústicas, quebravam e empacotavam vendendo para várias partes do mundo.
Pelo que pudemos observar em diversas regiões pode-se, nos bordos
da floresta, plantar bananeira, depois açaí, cupuaçu, mandioca e mamoeiro,
além de outras coisas mais. Esta é, portanto, a única proposta
que ofereço para se ocupar os bordos de qualquer floresta, sejam eles de
terras devolutas mal trabalhadas, ou de proprietários mais esclarecidos.
Escrevi na penúltima sessão da Scientific America uma proposta desse tipo
apoiada nos trabalhos desenvolvidos pelo ex-padre francês, sugerindo que para
as flonas fosse adotado o mesmo procedimento.
Flonas, um projeto desastroso
O assunto florestas nacionais é muito mais delicado e complicado do que
geralmente se pensa na mídia. Quando se estabeleceu no conjunto das unidades
de conservação da Amazônia, a expressão flonas tinha um certo endereço, ainda
que muito vago. Imaginava-se que no entremeio de grandes extensões de ecossistemas
florestais presumivelmente bem conservados deveriam existir alguns setores
que, em algum tempo, pudessem receber um tratamento econômico diferenciado.
Com o tempo, as áreas extensivas de vegetação florestal foram devastadas
por numerosos fazendeiros e pecuaristas totalmente insensíveis às preservações
das biodiversidades regionais. E, assim, as flonas sobraram até o início do século
XXI com extraordinárias manchas florestais, dotadas de ecossistemas primários.
ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 27
De repente, alguns pretensiosos defensores da natureza resolveram pressionar o
governo central no sentido de se concederem flonas para as ONGs estrangeiras e
aluguel para empresas interessadas na exploração de madeiras nobres. O ponto,
porém, é que as ONGs estrangeiras não têm capacidade alguma para exercer
atividades econômicas ditas auto-sustentadas, muito menos as empresas madeireiras,
que têm condições de alugar florestas por trinta ou sessenta anos com
vistas à realização de um desenvolvimento sustentável. Paradoxalmente, os que
hasteavam a bandeira das matas atlânticas passaram a defender o ideário do aluguel
das flonas para especuladores reconhecidos.
Contrapondo-se à SOS Mata Atlântica, defendeu-se a liberação de importantes
trechos da floresta Amazônica para particulares por longo período de tempo,
situação esta bastante antiética, em face das possibilidades de mudanças racionais
para governantes que se sucederem. Trata-se de uma iniciativa lamentável, capaz
de agressões e assaltos em relação a áreas que, por motivos eventuais, são remanescentes
de vegetação florestal biodiversa.
Discordamos totalmente da alta direção do Meio Ambiente sobre
essa flexibilização impensada de processos contra os ecossistemas florestais
altamente biodiversos de nossa Amazônia.
Existe um certo consenso de que os que fazem críticas severas a projetos
elaborados por técnicos e pseudotécnicos de governo devem apresentar alternativas.
Outros julgam, entretanto, que cabe aos governadores reconhecer os erros
de seus incompetentes “planejadores” e, de sua própria iniciativa, à custa de
outros pesquisadores, encontrar alternativas para (re)direcionar projetos. Ao nosso
ver, a busca por novas alternativas deveria ser realizada com o intermédio de cidadãos
esclarecidos.
A partir do ideário primário das reservas extrativistas, que em certo momento
encantou o mundo com a garra de Chico Mendes na guerrilha dos “empates”,
podem ser feitos acréscimos notáveis e socialmente rentáveis com projetos
híbridos e inteligentes introduzidos pelos acreanos na fronteira com a
Rondônia (Nova Califórnia).
Na presente sugestão alternativa está a idéia de desenvolvimento socioeconômico
com o máximo da floresta em pé e de proteção possível para a biodiversidade
regional. É um esquema que protegeria o corpo integrado do ecossistema
florestal, desenvolvendo atividades agrárias e eventualmente silvestres na borda
das matas, aproveitando o conjunto de fatores favoráveis: umidade derivada dos
“cabelos” da floresta, sombreamento diurno flutuante, luminosidade e taxa de
calor. Para tanto, há que progredir no avanço de espécies de interesse para alimentação
familiar e agronegócios complementares. Entre as culturas de ciclo
curto, a mandioca é a mais importante. Pode-se iniciar o cultivo nos retalhos da
borda da mata e, depois, ampliá-los para melhoramento do solo já degradado.
Da mesma forma, a castanheira deve ser plantada nos retalhos mais alterados das
rebordas das flonas.
28 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
Falta prever e detalhar muitas implantações indispensáveis: escolas de ensino
fundamental, ramais e pequenas estradas para o transporte da produção. Nada
impede que, de modo complementar, seja possível continuar o extrativismo no
coração da floresta, concentrando-se no látex e na coleta de ouriços da castanha.
Mas será sempre na periferia das flonas que o desenvolvimento socioeconômico
e cultural poderá constituir um dos melhores exemplos de “economia
ecologicamente auto-sustentada”.
Como já se disse: para os dias de hoje queremos a plantação de mandioca e
cereais; em cinco ou seis anos, o açaí e o cupuaçu; as castanheiras ficarão para
nossos filhos e netos; agora, vamos continuar o extrativismo, enquanto tudo
estiver crescendo nas beiras das florestas. Ignorantes são os proprietários vindos
de longe, que nada sabem fazer de prático. Assim falou o amazônida, que merece
governantes mais sensíveis e fazendeiros menos arrogantes e agressivos.
Muitas meditações e idéias ainda deverão ser feitas para salvar florestas e
ajudar representantes de uma geografia humana sofrida. Cabe a todos os que
conhecem a Amazônia trabalhar um pouco mais, com inteligência, dedicação e
ética. Por último, queremos registrar – para todo o sempre – que consideramos
um crime histórico a idéia absurda de alugar as flonas para empresas exploradoras
de madeira e outras espécies da biota vegetal regional. Quanto à idéia de
conceder o gerenciamento das mesmas para ONGs estrangeiras que desconhecem
os problemas da Amazônia, não queremos nem falar, pelo absurdo entranhado
nessa sugestão.
O problema do crescimento de proprietários é muito sério. Saindo de Rio
Branco com alunos da Universidade Federal do Acre, parei num restaurante para
tomar um refrigerante, quando um senhor ficou assustadíssimo de ver aquele
grupo de jovens. Começou então a reclamar por detrás de uma cortina de tapetes:
“esses paulistas vêm aqui para explorar nossa terra”. Isso nos mostra a repetição
de um mesmo erro que cometemos ao chamar todos os nordestinos de
“baianos”, no aspecto pejorativo. Lá é o contrário, é “o paulista que não presta”.
Quando paramos no segundo restaurante, tive oportunidade de questionar com
o dono do porquê de tanto ódio aos que vêm de fora, então me foi dito que era
por causa da ignorância, visto que, se fosse permitido fazer parceria na terra que
eles conquistaram, nós iríamos produzir muitas coisas rentáveis para eles como,
por exemplo, a exploração das seringueiras e a catação dos ouriços de castanhas.
Tal depoimento mostra que eles ainda não conheciam o projeto do plantio dos
bordos da floresta.
Estudos Avançados – O professor acha que esses projetos são capazes de reverter
os processos de ocupação histórica da terra no Brasil pela pecuária na Amazônia?
Aziz Ab’Sáber – Não acho possível, diante do que conheço dos pecuaristas
e até mesmo dentro do MST e de qualquer opinião de ambientalista ou de
planejador.
ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 29
Estudos Avançados – E qual é o cenário então?
Aziz Ab’Sáber – É um cenário muito negativo. Se o governo não tomar
algumas providências de planejamento e fomentar projetos tais como o do expadre
(que ficou conhecido como Reca – Reflorestamento Econômico Concentrado
e Adensado), não haverá mudanças significativas. Assim, em se tratando
das bordas de floresta no conjunto de terras baixas da Amazônia que estão em
processo de devastação e que têm sempre um paredão de bordo de floresta, não
há outra solução: ou o governo incentiva os fazendeiros a fazerem parcerias, ou
não haverá alternativa. Quanto às planícies, é evitar a chegada da grande
agropecuária, porque os seus moradores sabem muito bem como produzir ali,
sabem se defender das cheias, com adaptações nas habitações e no plantio das
hortaliças, por exemplo, porém revelando ser uma geografia humana tradicional
sofrida. Um dos exemplos é o problema da escola primária, com muitas professoras
leigas, sendo necessário buscar pessoas de muito longe para ensinar.
Queria lembrar a vocês que existe uma delicada questão nesses últimos
trinta anos entre o ideário das reservas extrativistas e o do projeto Reca. Se falarmos
para pessoas que são discípulas de Chico Mendes que o projeto Reca é
superior ao do de reservas extrativistas, elas ficarão malucas, por conta de seus
ideários e da extraordinária reverência que há pela memória de Chico Mendes.
Elas não perceberam que o projeto Reca é um acréscimo extraordinário às reservas
extrativistas a partir da borda da reserva. Por isso, não é possível falar com as
pessoas que são herdeiras de Chico Mendes, não dá, por exemplo, para falar com
a Marina Silva sobre isso; aliás, entre vários atos falhos da Marina, temos a concessão
de flonas para ONGs estrangeiras, sob a alegação de que iria evitar os
desmates contínuos que estavam ocorrendo, porque desse modo, o particular
iria fazer o gerenciamento e a fiscalização. Da mesma maneira, é o aluguel de
floresta para a exploração de espécies nobres de madeira. Na realidade, existe
outra coisa que me deixa positivamente chateado com o Capobianco e com a Marina,
pois para eles toda e qualquer floresta nacional, com 2.500 km, tem a mesma
estrutura de espécies não contínuas dentro do corpo geral da floresta.
Assim, para se tirar um tronco que esteja a quinhentos metros da borda é
até relativamente fácil. Primeiro vai o mateiro, que descobrirá onde está a árvore,
depois vai a pessoa que faz a trilha, em seguida vão os motosserristas para cortar
a madeira, depois é providenciado o transporte. E quanto às madeiras que estão
a quilômetros da borda? Infelizmente, há que se fazer trilhas e caminhos, sendo
que os que alugaram a floresta não terão dúvidas, sendo certo que vão “furungar”
toda a floresta para transportar os grandes troncos das espécies arbóreas consideradas
como madeira nobre. É a mesma coisa quanto aos pedágios aqui: alugamse
para poder ganhar dinheiro e, por isso, agora são eles que procuram determinar
o aumento do custo do pedágio. Está havendo uma guerra agora sobre isto
e a maior será lá, dentro das florestas. É preciso que as pessoas possam prever os
impactos ocasionados por aluguéis de exploração de madeira dentro da floresta.
30 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
Estudos Avançados – O que é feito em relação a uma política de aproveitamento
de recursos hídricos da Amazônia, com a possibilidade de desenvolvimento
na navegação, tanto de população como de produtos?
Aziz Ab’Sáber – Eu conheci a Usina de Samuel, Balbina, Tucuruí e algumas
pequenas usinas que não têm muito significado para uma questão crítica.
Evidentemente, houve uma pressão internacional para barragens a favor da produção
energética. Um grande planejador americano que se empenhava por vários
projetos no mundo, inclusive na Amazônia, queria barrar o próprio rio Amazonas
para concentrar suas águas, aumentar sua profundidade e, com isso, adentrar
mais para o interior da floresta e chegar a regiões que tinham minério.
Na época dos militares, os planos foram duplos: integração da Amazônia e
aproveitamento hidroelétrico. Numa excursão ao Pará encomendada pelo Ministério
de Desenvolvimento Regional, estudamos Bragantina e outros lugares que
pudessem receber colonos japoneses para poderem repetir em vários lugares o
mesmo sucesso que já havia ocorrido em Tomé-Açu. Em função dessas viagens,
pude perceber a questão da fall line, que havia sido registrada pela primeira vez
por Pedro Moura, geógrafo, que percebeu que nas embocaduras dos grandes
rios Tocantins, Xingu e Tapajós havia uma espécie de região afogada, a qual o
professor Francis Ruellan chamou de rias de água doce, paralela às verdadeiras
rias que são da área costeira. Percebemos a existência de uma linha de queda
onde, de repente, essas áreas de alagamento principal param em frente de uma
cachoeira, em Tucuruí, em Volta Grande e em outros lugares mais acima do
Tapajós etc. Assim, pude falar para o coronel Passarinho sobre a fall line, e é
curioso que ele desconhecia isso, porque falar em coisas novas naquela realidade
amazônica era completamente desconhecido.
É por isso que muitos dos planos rodoviários da Amazônia foram feitos
sem conhecimento prévio da realidade da região que seria atravessada. Tanto
que cheguei a mencionar que seria bom que houvesse uma estrada que ligasse
esses três pontos da fall line, porque assim, onde parassem a penetração e a circulação
fluvial, poderia se ter uma pequena circulação rodoviária. Eu, particularmente,
me penitencio profundamente por isso, porque foi isso que mais tarde
ocorreu com a Transamazônica. Então é possível perceber que a estrada essencial
que ligava o restante do Brasil a Belém do Pará, onde ficava o ponto terminal da
circulação do envio de riquezas, era uma necessidade. Não dá para comparar, no
entanto, os problemas criados pela Belém-Brasília, que foram muitos, com aqueles
criados pela Transamazônica. E aí surge outro problema que ainda não tratamos,
que é a questão dos oleodutos.
Fomos procurados pela Petrobras para ir até Carauari e de lá seguir até
Orocum para conhecer os problemas de exploração de petróleo na Amazônia
ocidental. No começo eles haviam encontrado muito gás, depois, passaram a
encontrar também óleo, tendo surgido então a questão de como transportá-lo
para a usina de Manaus. Então nós, que conhecíamos todos os defeitos da malha
ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 31
rodoviária da região, procuramos evitar que se fizesse outro rasgão na floresta.
Eles entenderam do que se tratava, visto que eram pessoas esclarecidas e, sendo
assim, acabaram fazendo uma espécie de bizarria. Construíram oleodutos até o
rio Tefé e, para isso, instalaram verdadeiros tanques gigantes, de modo que o
óleo todo saía dos oleodutos até lá e, em seguida, descia em balsas até Tefé para
o meio do Solimões, onde seguia em um navio velho reparado com grandes porões.
O óleo era passado então para outros navios chamados de aliviadores, que
o levavam para as refinarias Reman. Entretanto, o tipo de óleo que conseguiram
das formações paleozóicas, por vários tipos de estruturas geológicas complexas,
era fino igual ao diesel, que não interessava tanto para Manaus e, por isso, passaram
a vender o óleo fino para a região leste do Brasil e a comprar óleo grosso da
Venezuela.
Estudos Avançados – Como o sr. vê, fora todos esses rasgões, a questão da
importância estratégica da Amazônia e da militarização da área?
Aziz Ab’Sáber – Existe um enorme problema dos olhares do mundo em
relação à Amazônia. Há duas maneiras de se observar a Amazônia de fora: uma é
a exigência da preservação da biodiversidade em termos do possível, que se trata
do máximo de desenvolvimento com a floresta em pé – hoje eu diria com um
máximo de biodiversidade integrada no interior das matas remanescentes, através
de projetos ecologicamente auto-sustentáveis nas poucas áreas que já sofreram
devastação, como é o caso do projeto Reca e das flonas –, e a outra é uma maneira
insidiosa de separar a Amazônia do resto do Brasil em pleno início do terceiro
milênio para favorecer a dominação externa. Esse olhar maldoso contra a
soberania brasileira é que nos preocupa, porque depois da invasão do Iraque por
causa do petróleo, a tentativa de enquadrar a Amazônia por processos indiretos
é muito séria, é muito grave. Porque está na ótica desses especuladores da pseudoglobalização
o plano de ter recursos hídricos que estão faltando. Depois dos recursos
hídricos, os recursos minerais que já foram comprovados com a questão da
Serra do Navio e da Serra dos Carajás, as quais receberam privatizações absurdas.
É necessário lembrar que existiram colônias de exploração, de enraizamento,
estratégicas e de enquadramento. Este último caso foi o da Índia, que
recebeu um enquadramento bélico e burocrático por parte de ingleses em expansão
pelo mundo. É conveniente lembrar que na tipologia histórica das colonizações
aconteceram muitas diferenças de comportamento. Tememos hoje que esteja
em grande expansão o ideário do Primeiro Mundo dirigido para
colônias financeiras e burocráticas.
O mundo em face dessa cobiça nutrida por países como o Brasil, mas, sobretudo
pela Amazônia, a fim de fazer um tipo novo de colônia de enquadramento
visando a aproveitar seus recursos naturais silvestres, minerais e hídricos.
Com respeito à militarização, o que preocupa são os países hegemônicos,
por vários motivos. Talvez por causa da grande expressão que os países andinos
do extremo norte têm em relação aos países do hemisfério norte, estes procuram
32 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
se aproveitar do fato de controlar os espaços produtores de drogas na Colômbia
e Peru a despeito da reação da Venezuela.
O certo é que o Brasil percebeu que era preciso colocar uma rede de militarização
e de controle dentro da Amazônia. Para isso, previamente, se propôs o
projeto Sivam, instalações pré-fronteiriças de agrupamentos militares. Note-se
que alguns menos esclarecidos sugeriram fazer uma estrada pela linha de fronteiras,
um projeto que seria mais do que criminoso, suficiente para desdobrar conflitos
e facilitar interpenetrações indesejadas.
Ninguém pode avaliar o que seja a colocação de grupos humanos de um só
gênero no ambiente singelo de distantes cidades amazônicas, como é o caso de
São Gabriel da Cachoeira.
As pequenas histórias que conheço a partir de minhas viagens facilitam-me
muito entender certas coisas mais amplas. Encontrei um ex-aluno que possuía
uma fazenda em Roraima (muito provavelmente dentro das terras dos índios
Ianomamis) e então perguntei-lhe como gerenciava o problema com os índios, e
me foi dito: “ora, não tem nenhum problema. Para eles o meu capataz apresenta
o seu facão”. O que quer dizer que há uma séria preocupação quanto a esses
“paulistas” que são insensíveis cultural e ecologicamente, porque simplesmente
não existe nenhuma ética em relação ao futuro no Brasil, quer no interior dos
governos, quer no interior dos ruralistas e madeireiros.
Numa outra ocasião fui a Marabá a convite do Ibama para uma reunião na
qual estariam mulheres catadoras de côco e outras pessoas que fazem atividades
muito simples, com rendimento muito pequeno. Minha palestra era no segundo
dia e, para chegar lá, tinha que transpor uma ponte sobre o rio Itacuinas. Como
haveria uma passseata e eu não conseguiria chegar ao local combinado pela palestra,
disseram-me para sair bem cedo do meu hotel. Por estar muito cansado,
acabei saindo às oito horas, então cheguei onde a transamazônica é uma avenida
na cidade de Marabá, e havia mil e quinhentos fazendeiros, capatazes e senhoras
de fazendeiros fazendo uma carreata que passava pela Transamazônica em nome
do ruralismo deles. A cidade se manteve de “barba quieta”, só um ou outro
menino com suas bicicletas paravam para ver, então eu parei ali e fiquei meditando
sobre o porquê dessa passeata agigantada. Era para dizer que estavam presentes
e não aceitariam nenhuma consideração ao MST, ou a projetos colonizadores
de gente que não fossem deles mesmos. Eu fiquei absolutamente espantado com
a petulância de tudo aquilo.
No caso de Roraima, desde há muito tempo existe o argumento de que há
muita terra para tão poucos índios. Nessas regiões conheço dois itinerários. Saí
de Boa Vista até Santa Helena na Venezuela, transitando com dificuldade dentro
de uma jardineira na presença de garimpeiros brasileiros que iam trabalhar lá.
Essa estrada atravessa centenas de quilômetros do lavrado, as paisagens campestres
com aquelas belíssimas florestas de galerias cheias de buritizais. Porém, o
solo é ruim, não dá para a agricultura. Então pude conhecer algo extraordinário
ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 33
na borda da mata quando cheguei em BV8, ainda perto do planalto das Guianas.
Tive que dormir num bar-restaurante porque não havia pousada nem hotel; percebi
que o dono do bar era também militar e pedi a ele que me desse uma carona
até Boa Vista; quando chegou à primeira ponte, ele desceu e disse que iria ver o
seu garimpeiro – ele tinha garimpeiros trabalhando a seu serviço, de modo que
fui percebendo como funcionavam as coisas por ali.
Mais tarde fui de Boa Vista até as antigas repúblicas comunitárias das Guianas
através da cidade de Bonfim. Nessa região, dali para o norte até as primeiras
serras florestadas dos bordos do planalto, existem cerrados muito pobres, e as
famosas áreas indígenas da Raposa e Serra do Sol. A pretensão dos fazendeiros e
administradores municipais em relação à reserva regional de indígenas é imensa;
visando a fragmentar o continuum da reserva, instalaram novos pequenos municípios
no seu interior, de maneira que fosse necessária a constituição de uma
prefeitura com vereadores, que certamente iriam permitir tudo o que os fazendeiros
desejassem. É um enclave planejado para a conquista do território indígena,
o que criou um problema extremamente controverso e de difícil solução,
capaz de atiçar conflitos e posturas demográficas e culturais.
Os governadores de Roraima têm sido muito ruins com os indígenas (para
não dizer criminosos) porque fazem todas as bizarrias possíveis para conquistar o
espaço florestado e os bordos do lavrado. O governo federal fez uma faixa de
colonização entre o lavrado e as florestas serranas; assim, quando houve aquela
grande queimada em Roraima, os governantes diziam o seguinte: “onde já se
viu, nós demos terras para os indígenas e as terrinhas que demos para os assentados
vão sofrer improdutividade por causa das queimadas, é necessário se preocupar
com eles”. Mas eu, juntamente com o Lula, dei uma volta de avião pela área
da mata ao sudoeste, que precede as matas serranas e vi a fumaça saindo de
dentro do chão da floresta e passando pelo dossel das árvores. Então pudemos
observar uma grande devastação causada por esses fazendeiros e que por isso
colocavam fogo e foi esse mesmo fogo que se expandiu pelo lavrado. Infelizmente,
nessa época seca, o lavrado tem uma fácil expansão da queimada – embora
não entre linearmente na mata de galeria.
Mais tarde, sete ou oito jornalistas estrangeiros perguntaram-me se o local
se tornaria um deserto, eu disse que não, mesmo o ar estando impregnado de
argueiros das queimadas até a altura da troposfera. Por haver nos céus da Amazônia
dois ou três andares de nuvens, quando o nosso avião passou por cima
daquela troposfera totalmente enegrecida pude ver que já havia nuvens um pouco
carregadas, de maneira que quando chovesse acabariam as queimadas. E esses
locais, sobretudo os de campestres e cerradinhos, seriam como a fênix que surge
das cinzas, de forma similar seria o ressurgimento da vegetação que brotaria da
terra queimada.
Assim, quinze dias depois, veio a chuva e acabou com tudo aquilo e Roraima
teve um pouco de estabilidade. Uma professora de uma Universidade Federal
34 ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005
disse-me que não estava preocupada com as queimadas, visto que o problema
maior viria depois, no fim do processo de secura pronunciada, quando a problemática
do uso econômico das terras de pequenos colonos surge com mais força.
Ela estava correta.
Trajetória de um pesquisador incansável
ZIZ NACIB AB’SÁBER nasceu em 1924, na cidade de São Luiz do Paraitinga,
situada no Vale do Paraíba. Entrou na Universidade de São Paulo e formou-se
em Geografia e História em 1944, fazendo sua especialização em geomorfologia.
Como professor lecionou em diversas faculdades e por catorze anos foi titular na
USP.
Paralelamente aos seus estudos, Aziz fez inúmeras viagens pelo Brasil, observando
a fisionomia das paisagens e as características de cada ecossistema. A busca
por compreender a compartimentação total do relevo brasileiro ampliou-se com
seu interesse pela fitogeografia, que o levou a investigar a distribuição da vegetação
nos diferentes domínios de natureza. Com o tempo, sua abordagem foi se
ampliando cada vez mais, integrando as diversas áreas do conhecimento.
A presença de geógrafos franceses no Brasil foi muito importante para a forrmação
de Ab’Sáber. A experiência junto a mestres como Jean Tricart, Emanuel
De Martonne e Francis Ruellan proporcionou-lhe o contato com um novo universo
dentro da ciência. Essa influência ajudou-o a desenvolver uma abordagem
mais completa dos processos geomorfológicos, aprofundando-se em três principais
aspectos: compartimentação do relevo, estrutura superficial e fisiologia da
paisagem.
As considerações de Tricart sobre linhas de pedra no solo (stone lines), que
indicariam climas mais secos no passado, foram fundamentais para que Aziz formulasse
a Teoria dos Redutos em 1960, e, em parceria com Paulo Vanzolini, a
Teoria dos Refúgios, em 1970.
Ab’Sáber participou de muitos congressos, assembléias, simpósios, conferiu
palestras e ministrou cursos. Sua contribuição foi decisiva em diversas instituições,
assumindo cargos importantes, como a direção do Instituto de Geografia
da USP, de 1969 a 1983, e a presidência do Condephaat (Conselho de Defesa
do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do estado de São
Paulo), entre 1982 e 1983, onde trabalhou para que importantes áreas naturais
fossem definitivamente tombadas, como no caso da Serra do Mar. Foi presidente
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) de julho de 1993 a
julho de 1995, atuando em prol do desenvolvimento da ciência e da tecnologia
no Brasil.
Quando deixou de lecionar na USP, em 1982, passou a se dedicar a pesquisas
regionais e a trabalhos com questões ambientais, avaliando impactos físicos,
A
ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 35
ecológicos e sociais provocados
por projetos desenvolvimentistas
em todo o país.
A integração entre ciência
e política é um propósito
fundamental para Ab’Sáber.
Ele afirma a importância do
conhecimento científico para o
planejamento e a administração
pública, defendendo que a crítica
deve ser acompanhada por
propostas viáveis e inteligentes.
Desde 1988 integra o
Instituto de Estudos Avançados
da USP, onde recebeu o título
de professor honorário.
Nessa instituição, publicou trabalhos
relevantes como: “Zoneamento
ecológico e econômico
da Amazônia: questões de
escala e método” (1989); “Um
plano diferencial para o Brasil,
projeto Floram” (1990); e “Sertões
e sertanejos: uma geografia
humana sofrida” (2003).
As pesquisas desse geógrafo foram divulgadas em mais de trezentas publicações.
Entre seus principais livros pode-se ressaltar: Amazônia, do discurso à
práxis (1997), pelo qual recebeu o prêmio Jabuti; Litoral do Brasil (2001) e Os
domínios de natureza do Brasil: potencialidades paisagísticas (2004).
Esses são alguns destaques de toda uma vida dedicada ao conhecimento,
uma trajetória que resultou em uma obra de valor inestimável. Profundo conhecedor
da realidade brasileira, Aziz Ab’Sáber sempre lutou pela preservação dos
ecossistemas e pela criação de uma sociedade cada vez mais justa.
Elin Lutke e Diana Salles
João Wainer/Folha Imagem
O professor Aziz Ab’Sáber

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