domingo, 27 de maio de 2012

AS PIORES ECAS DO NORDESTE

1 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO: O CASO DO PROGRAMA UM MILHÃO DE CISTERNAS RURAIS NO NORDESTE BRASILEIRO Emilio Tarlis Mendes Pontes Mestrando em Geografia - Universidade Federal de Pernambuco emiliopontes@oi.com.br Thiago Adriano Machado Graduando em Geografia – Universidade Federal de Pernambuco thiaguimachado@hotmail.com Resumo – Nos últimos anos a perspectiva de combate à seca vem se modificando, visto que os problemas do Nordeste brasileiro não estão restritos à escassez de água. Assim, percebe-se uma modificação de paradigma, se outrora era a luta contra a seca, agora é a convivência com ela, já que é possível coexistir bem com o semi-árido nordestino, desde que através de políticas públicas e práticas sustentáveis. Este trabalho mostra o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais, coordenado pela Articulação do Semi-Árido, como ação emblemática dessa mudança na concepção de políticas para o semi-árido no que tange os aspectos do desenvolvimento sustentável através de diversas implicações como o uso racional da água e a mobilização social para desencadear articulações de convivência com a semi-aridez. Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável; políticas públicas; cisternas; semi-árido brasileiro. Introdução A sociedade está debatendo cada vez mais sobre a crise ambiental que incide sobre a Terra. Este assunto é recorrente e vincula inúmeras questões conjuntas como desenvolvimento sustentável e políticas públicas de impacto sócio-ambiental entrelaçado por outros temas como água, meio ambiente e distribuição de renda. Dentre o conjunto de elementos que compõem os recursos naturais, a água vem ganhando mais notoriedade frente à sua contaminação e/ou poluição. Este é um recurso de suma importância tanto para a vida dos animais como para o ser humano, afinal, é um elemento essencial à vida. Na região Nordeste, os temas voltados ao uso da água é uma das questões mais polêmicas. É um fenômeno, que vem se agravando com a tensão ambiental 2 global e que configura as formas de ocupação da região, seja por limitar ou desenvolver uma estrutura favorecida pelas políticas de combate à seca (ALVARGONZALEZ, 1984). O relato de períodos de secas no Nordeste do Brasil remonta o século XVI (ALVES, 1953) sendo uma constante na literatura a abordagem sobre esse fenômeno histórico e a convivência de grande parte do povo nordestino com ele. Uma das mais catastróficas secas foi a de 1877-79, ceifando cerca de 500 mil vidas. O Império, governo da época, adotou alguns procedimentos como a implementação de sistemas de irrigação e construções de açudes e barragens (GUERRA, 1981). Muitos não saíram do papel ou foram mal realizados. Deste período citado aos dias atuais são inúmeras as grandes secas ocorridas, sempre com o viés desastroso principalmente para as camadas populacionais menos abastadas. Sua perpetuação, isto é, a indústria da seca (COELHO, 1985), tem sido assunto de outros tantos debates, fóruns, livros, campanhas políticas, etc. Ano após ano, governo a governo, atribuiu-se à seca como o elemento delimitador ao desenvolvimento da região nordestina. As ações costumeiramente elencadas como distribuição de cestas básicas e uso de carros-pipas, em geral, são quase sempre insuficientes para sanar a demanda de água da população. Como conseqüência, a cada ano a dependência a essas medidas persiste, visto que são meramente paliativas. Essas ações apenas atenuam por curto tempo a falta de água, entretanto não modificam a situação de quem mais sofre com esse problema, a população rural, o que influencia também nas grandes aglomerações urbano devido o aumento do êxodo rural e o conseqüente inchaço das periferias das grandes cidades. Ao invés de melhorar a situação da população o que se percebe é uma estagnação quando o assunto é dar novas possibilidades ao sertanejo de conviver com seu entorno e suas peculiaridades. Essa problemática da seca, quase sempre atribuída aos baixos índices pluviométricos, e contestada por muitos (XAVIER, 2001), tem mudado de paradigma, ainda que lentamente. A seca como elemento de poder no Nordeste também já é retratado há muitas décadas (GUERRA, 1985). A conjuntura política por trás do elemento climático, com seus desmandos e interesses próprios é um elemento histórico que acompanha o cotidiano do nordestino. As secas no Nordeste, notadamente no Ceará, são relatadas há vários séculos (FROTA, 1985), assim como o comportamento dos Governos Federal e Estadual frente ao problema. A influência das oligarquias, o sistema de proteção ao grande agricultor e pecuarista, o pseudoconformismo do sertanejo, as leis que compactuam com os mais poderosos, 3 são alguns dos fatores tradicionais que condicionaram e perfizeram a situação atual (LUNA & BARBALHO, 1983). Mais recentemente, ações ditas de combate à seca têm dado lugar a um novo paradigma: os planos de convivência e mitigação dos efeitos da seca. Dentre alguns existentes, o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC) vem se notabilizando por sua aplicabilidade e eficiência. A ampliação do P1MC e seus impactos na transformação da vida dos moradores das regiões semi-áridas nordestinas é um fenômeno extremamente positivo que pode possibilitar a permanência das comunidades nas áreas rurais, potencializando uma elevação do seu nível de vida, e sendo uma forma de combate à exclusão sócio-cidadã, entre as diversas formas que hoje existem (POCHMANN, 2004). O presente trabalho pretende abordar as transformações com a chegada do P1MC, analisando mais pormenorizadamente para saber se já temos, finalmente, um caminho satisfatório a trilhar para a resolução de um problema secular reclamado por milhões de pessoas – o acesso à água potável - que precisam de atitudes com muita brevidade e que tragam efeitos práticos e duradouros. A pesquisa então estabelecida se subsidia no histórico de ações para o território em estudo, compreendendo o objeto inserido num processo evolutivo das políticas públicas em âmbito mundial e nacional. Crescimento versus Desenvolvimento A mesma crise capitalista, que na década de 70 influenciou nas mudanças do Estado, trouxe, assim, uma tentativa de reavaliação do desenvolvimento corrente. Até este momento, no século XX, o capital industrial tinha atingido patamares nunca vistos no âmbito da produção e reprodução do capital, como também no sentido de degradação ambiental e ineficiência quanto ao aspecto social. Surge como questão polêmica a dicotomia entre crescimento e desenvolvimento e qual, de fato, esteve em prática até então. O crescimento apresenta-se em termos eminentemente econômicos, enquanto o desenvolvimento se expressa pelo repartilhar da produção equitativamente entre a sociedade (FURTADO apud CHACON, 2007). Busca-se, então, por um novo paradigma, enquadrando as ações humanas e suas respectivas conseqüências no que se refere aos limites dos recursos e seus modos de utilização. Deste modo, discute-se a idéia de um desenvolvimento expresso em maior eqüidade, dialogando com as necessidades e demandas sociais, não deixando de se preocupar com o equilíbrio do meio ambiente. 4 O paradigma do Desenvolvimento Sustentável Sendo assim, na história recente, muitas foram as tentativas científicas para refazer a significação de desenvolvimento, entendendo o termo como ações eficazes para o bem estar-social. A propagação do paradigma da sustentabilidade começa a ganhar corpo nos debates realizados a partir de 1972 na Conferência de Estocolmo, que tinha como finalidade tratar das questões ambientais e sua relação com o desenvolvimento. Um dos principais ideólogos é Ignácio Sachs que conceituará o termo ecodesenvolvimento em contraponto às idéias de crescimento zero. Contudo, o conceito de desenvolvimento sustentável será lançado pela World Commission on Enviroment and Development, em 1987, conhecido como Relatório Brundtland ou Nosso futuro comum. O termo ecodesenvolvimento será suplantado e oficializado por Desenvolvimento Sustentável, sendo uma expressão a ser usada por diversas entidades, como a própria Organização das Nações Unidas (ONU). A sua definição será amplamente divulgada como o desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem assim comprometer a possibilidade das gerações futuras também atenderem às suas próprias necessidades. A gestão ambiental e a tomada de consciência da sociedade como agente modificadora dos fatos e partícipe das decisões são pontos que formam a proposta de modificações intrínsecas ao conceito, isto é, a busca de um crescimento econômico mais humano. Este conceito trás em seu bojo a clareza que a solidariedade deve ser o princípio ético a guiar os processos de desenvolvimento. Não é apenas estabelecer limites ou possíveis ônus que o desenvolvimento econômico possa dar de encargos ao meio ambiente. Implica transpor a mera questão de economia, sem ter que abdicar do crescimento, mas ser colocada com uma finalidade social ética. A relação com o meio ambiente e seus recursos não podem ser meramente seu usufruto inconseqüente, ou seja, o produtivismo e o consumismo. Certamente é um rompimento lento e gradativo, mas que vem sendo incorporado por programas de órgão internacionais e por quem possa viabilizar o desenvolvimento sustentável. Alguns pontos podem ser enfatizados nesse processo: a eficiência (para o combate ao desperdício e se ter uma racionalidade econômica), a escala (uma baliza quantitativa entre o crescimento e sua pressão sobre os recursos ambientais), a equidade (baseada em justiça social e ecologia) e a ética (desenvolvimento bem relacionado com as condições de continuidade da vida na Terra). O Desenvolvimento sustentável finca-se, então, num tripé básico: a relevância social, a prudência ecológica e a viabilidade econômica. (SACHS, 2000). Para Sachs, a relevância do espaço para o 5 desenvolvimento é de fácil percepção. As características naturais, sociais, econômicas e culturais dos lugares merecem ser compreendidas e respeitadas, alcançando-se assim um verdadeiro desenvolvimento sustentável. Princípios de Sustentabilidade Nos princípios da sustentabilidade encontramos uma proposta de desenvolvimento onde os processos de produção se apóiam nos recursos humanos e materiais, interrogando o modelo em vigor adotado no pós-guerra, questionando a apregoada melhoria contínua do bem-estar. É necessário um modelo que contenha o desenvolvimento aliado ao progresso sócio-econômico, pois os recursos naturais têm sim, suas limitações de uso, para isso é premente um ideal ecológico que indique tais limites e vise a integração do potencial dos recursos com utilização racional. Como ainda é uma conceitual recente, o desenvolvimento sustentável necessita de maiores instrumentos que o faça evoluir com maior clareza e eficiência prática, já que é imprescindível como maneira de tentar minimizar as implicações da crise mundial e relação entre ricos e pobres, encontrando soluções para as camadas menos abastadas que estão presentes em todo o mundo e convivendo promissoramente para os que já tem seu considerado modo de vida, independente do posicionamento político esquerdista ou liberal. Uma busca de um desenvolvimento capitalista com novas implicações e até mesmo inquietações sócio-ambientais. Claramente, as alternativas para os países subdesenvolvidos são bem mais urgentes. Em países em desenvolvimento, tal qual o Brasil, os princípios do desenvolvimento sustentável estão como que uma tarefa caseira, que é imposta por organizações estrangeiras de financiamento, por isso passou a ser item primeiro da pauta de governo e também incorporados na sociedade civil. Os enfoques dados recairão diretamente no combate à pobreza e à degradação ambiental. Segundo dados levantados a respeito de Indicadores do Desenvolvimento Sustentável (IDS) em 2008, divulgado pelo IBGE, com intersecção de dados de inúmeras pesquisas feitas nos últimos 4 anos, indicam que avanços se deram no Brasil na esfera econômica. No tocante às questões sociais ocorreram certas melhorias, mas ainda há muita coisa a ser conseguida. No quesito ambiental a pesquisa mostra alguns retrocessos. É preciso ainda trilhar um longo caminho para o Brasil chegar a um ideal presumido pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, isto é, um desenvolvimento que atenda às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades. Os 6 grandes vilões ainda são: a poluição dos rios e das praias, o uso intensivo de agrotóxicos na agricultura e o desmatamento. Em alguns estados como em Pernambuco e no Ceará, a discussão a respeito do novo arquétipo de desenvolvimento baseado na sustentabilidade remonta nos preparativos para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, a ECO-92. Um marco inicial da inclusão deste conceito foi a realização da Conferência Internacional sobre Impactos de Variações Climáticas e Desenvolvimento Sustentável em Regiões Semi-Áridas (ICID), em Fortaleza, de 27/01 a 01/02 de 1992, como um subsídio do Brasil à ECO-92. Como decorrência da ICID e da ECO-92, o Ceará foi um dos precursores a lançar o seu Plano de Desenvolvimento Sustentável 1995/1998. As práticas sustentáveis tentam ganhar maior aderência na efetividade de políticas, contrapondo um histórico de predominância estatal, convergindo forças dos mais diversos ramos da sociedade. As participações e retóricas se integram no mundo das práticas, cada qual com o seu devido fim, estando de fato interessadas nos princípios éticos e de eqüidade, ou apenas reproduzindo a lógica do mais forte ao se utilizar do discurso e benefício próprio. Políticas públicas e o semi-árido nordestino Ao se falar em desenvolvimento logo é destacado o papel do Estado, perfazendo um arranjo basal na implementação das políticas que venham a constituir o desenvolvimento sustentável. Como ele é ainda o grande fomentador de recursos, torna-se o maior responsável por conseguir ou não uma melhoria no nível de vida da população. Dessa forma, as políticas públicas estiveram durante muito tempo vinculadas restritivamente às ações do Estado em grandes questões públicas (MEAD apud SOUZA, 2006), sendo englobado nos estudos de ciência política sobre o assunto as idéias de racionalidade e grupos de interesse, influenciando na tomada de decisão. Evita-se o uso de noções extremistas quanto à elaboração de políticas públicas tanto como sendo meramente estatal quanto excessivamente através de um campo de forças dos grupos interessados. Admite-se uma relativa autonomia do Estado, permeável a influências externas de outras instituições e grupos sociais, enfatizando o papel da política pública na solução de problemas (SOUZA, 2006). Essa autonomia se expressa na força maior do Estado em agir no território, o que é empiricamente comprovado pela história nacional, na qual as intervenções são em sua maioria por 7 parte do Estado. Contudo, como será abordado mais à frente, mudanças nesse monopólio estatal estão em curso, adicionando-se atividades sociais importantes à sociedade civil e às organizações privadas. Dessa forma, podemos compreender a política pública como o conjunto de ações coletivas voltadas para a garantia dos direitos sociais, configurando um compromisso público que visa dar conta de determinada demanda, em diversas áreas. Expressa a transformação daquilo que é do âmbito privado em ações coletivas no espaço público (GUARESCHI, 2004). O Estado brasileiro foi durante muito tempo o único provedor das políticas públicas, e mais especificamente no semi-árido brasileiro as ações se deram pela intervenção estatal, inicialmente pelo Império de Dom Pedro II, quando à ocorrência da seca de 1877. Foi criada um comissão imperial para a elaboração de estudos em busca dos meios práticos para o abastecimento d’água que suprissem as demandas da população, animais e irrigação. Dá-se o início de políticas públicas direcionadas para o problema no semi-árido, e também o início da “solução hidráulica” (LIMA, 2006) dada pelas técnicas de açudagem, sendo iniciada nesse período a construção do açude do Cedro em Quixadá, no sertão cearense. Com a queda da Monarquia a comissão imperial foi desativada, a República se estabelece como um processo já em movimento desde meados do século XIX, ampliando as idéias liberais, que já eram à época da Monarquia ideologia dominante. Apesar de se caracterizar uma “idéia fora de lugar” (NOVY, 2002), pois a estatalidade brasileira não englobava cidadãos-proprietários livres e interagentes, o liberalismo foi aqui adaptado e enraizado nas práticas políticas, e são as peculiaridades do liberalismo brasileiro, o qual Novy chama de “liberalismo real”, que vão formar as feições das políticas no semi-árido. São, dessa forma, que as ações do governo no fim do século XIX e na primeira metade do século XX vão se apresentar nas relações entre o poder central e o poder local, instalando práticas paternalistas e conservadoras características do Estado autoritário, pois as noções liberais importadas da Europa foram assimiladas e ajustadas no Brasil aos interesses da classe dos proprietários rurais segundo suas próprias conveniências (NEDER, 1979). Políticas permanentes do Estado no semi-árido Em 1909 foi criada a Inspetoria de Obras Contra a Seca (IOCS), representando a presença organizada do governo através de um órgão permanente. Seria, contudo, destacável o termo “contra a seca”, o que representa bem o objetivo final das políticas a serem implementadas e nos induz a compreender os meios utilizados. A seca teria 8 que ser expurgada através de uma gestão técnica de engenharia hidráulica, sendo esta capaz de dar continuidade na cadeia de estudos. Deu-se, assim, continuidade às obras de açudagem, ainda mais intensificada pela transformação do IOCS em IFOCS, ou seja, ampliando seu caráter para um nível federal. Contudo, os planejamentos não eram feitos de forma eficiente e os estudos ignoravam diversos dados importantes como o de pluviometria, tornando-os insuficientes. Não havia de fato uma preocupação com o desenvolvimento regional, pois apesar da existência de um órgão permanente para tal, era constatado o descaso do governo nos períodos entre secas, diminuindo os orçamentos do IFOCS e como em 1924 extinguindo a Caixa Especial de Obras de Irrigação e Terras Cultiváveis do Nordeste, sendo as prioridades do IFOCS a assistência ao flagelados e a organização das retiradas (ALVARGONZALEZ, 1984). Em 1946 o IFOCS torna-se DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca), já havendo até esse ano entregue 7.136 km de rodovia, 409 açudes e 2.303 poços (ALVARGONZALEZ, 1984). Compreende-se, então, um momento das ações no semi-árido brasileiro, no qual as práticas políticas assistenciais e setoriais estão, segundo a tipologia de Lowi (apud SOUZA, 2006), como políticas públicas distributivas, caracterizadas por serem direcionadas a determinado recorte da sociedade e do território. Essas políticas reforçavam relações dos poderes central e local e se materializavam na figura do coronel, o grande latifundiário, detentor do poder político e econômico, o qual obtinha os maiores benefícios das obras de açudagem, enquanto a massa de flagelados era utilizada como mão-de-obra nos planos de emergência, sendo dada a esta uma oportunidade de renda. O tema “Indústria das Secas” nasce como denúncia a esses abusos contra o povo nordestino, sendo utilizado como discurso pelos sindicatos de trabalhadores rurais e movimentos sociais (COELHO, 1985), tomando-se por nota o fato de que no sertão o problema não é a seca, mas a cerca (LIMA, 2006). Contudo, segundo Alvargonzalez, no tocante à infra-estrutura inicial, o alicerce para a irrigação estava construído, sendo esta estrutura que sustentou o crescimento agrário a partir de 1940, porém crescimento sem desenvolvimento. Na década de 50, o Estado desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck tenta modernizar o país e daí surge várias ações como a construção de Brasília e toda uma reconfiguração rodoviária do território nacional. A existência do abismo entre o Nordeste e o Centro-Sul do país e de duas secas nesta época motivou o presidente a formar um Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), liderado pelo economista Celso Furtado, com o intuito de estabelecer uma política de 9 desenvolvimento regional para o Nordeste. Do GTDN surge a SUDENE em 1959, potencializando a execução daquilo empreendido pelo GTDN, pois o diagnóstico feito pelo grupo de trabalho foi a primeira análise profunda da realidade sócio-econômica da região, identificando atrasos profundos na produção e esboçando um novo esquema de desenvolvimento da região, liderado pela industrialização. A SUDENE nasce com o dever de tentar equiparar a região Nordeste ao Centro-Sul mais desenvolvido, e as proposições de um setor industrial avançado seriam o meio para tal, contudo, Alvargonzalez alerta para o fato de a SUDENE considerar a agricultura como setor subsidiário, não sendo notada a sua relevância, já a essa época, como setor moderno e com grande capacidade de absorver tecnologia, sendo cada vez mais “industrial” nos países mais avançados. Além de seguir com uma política industrial, as obras hidráulicas permaneceram, porém a resistência à irrigação pública existia a partir de uma articulação dos coronéis (CHACON, 2007), e os recursos, como os provindos da criação do Banco do Nordeste (BNB), eram direcionados para as oligarquias algodoeiro-pecuário. A tentativa de ampliar e diversificar a base econômica do Nordeste deixa de lado a seca como grande protagonista, sendo elaborados os Planos Diretores de Desenvolvimento do Nordeste, pressupondo, pela primeira vez, o desenvolvimento sustentado na região (CHACON, 2007). Contudo, os cortes orçamentários, os planejamentos não executados e as oscilações entre o conservadorismo e a modernidade, mantinham ainda boa base da estrutura vinculada aos coronéis e à indústria das secas. O golpe militar e a implantação do regime autoritário no país reforçaram uma renovação do poder central com o local, e é nesse momento que o “liberalismo real” é levado às últimas conseqüências no país (NOVY, 2002). O autoritarismo passa a conviver com uma maior tecnicidade dos programas, porém, pelo fato de muitos serem idéias importadas dos organismos internacionais de financiamento, não atendiam aos anseios da população (CHACON, 2007), o que é bastante visível se analisarmos os Planos Diretores da SUDENE e suas execuções (ALVARGONZALEZ, 1984) bastante díspares e se afastando de discussões imprescindíveis como a “questão agrária”. A preocupação pela modernização da agricultura vem ocorrer com os Programas de Desenvolvimento Rural Integrado (PDRI’s), dos quais em 1974 o programa intitulado de POLONORDESTE e depois o PRONI (Programa Nacional de Irrigação) investem recursos para uma modificação da estrutura rural, mecanização e irrigação (LIMA, 2006). Ainda assim são os grandes latifundiários que se beneficiam, tanto dos recursos como da mão-de-obra dos sertanejos nas frentes de serviço, 10 através dos programas de emergência, que segundo Coelho é uma das maiores fontes de corrupção e coação no sertão, sendo desviadas grandes somas de dinheiro para particulares e intensificação do chamado “voto de cabresto”. O pagamento dos trabalhadores das frentes de serviços muitas vezes era feito com alimentos, o que é inegável que apesar de paliativo, era nos momentos de emergência algo indispensável. Todavia, os programas de emergência chegavam de forma seletiva ao sertão, ocorrendo que muitos municípios ficavam sem a assistência pela maior força de outros poderes locais. (COELHO, 1985). As políticas públicas para a região tinham, nesse período, a SUDENE como protagonista, mas corriam paralelamente às ações do DNOCS e da CODEVASF (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco), além dos organismos de financiamento como o Banco do Nordeste e as instituições internacionais. As políticas ineficientes, ainda assistencialistas e compensatórias começaram a tomar um novo rumo na década de 80, acompanhando a mudança que o Estado brasileiro sofria no processo de redemocratização. Apesar que de forma ainda centralizada as mudanças de estratégia tomaram maior feição como o Projeto Nordeste, estimulando o apoio ao pequeno agricultor, à irrigação, educação, saúde e saneamento no meio rural através de projetos específicos, dos quais o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural foi o que mais vingou pelo fato de seu financiamento ter sido feito pelo Banco Mundial. O Programa de Irrigação também obteve grandes estímulos, tendo em primeiro momento um ministério direcionado para a irrigação, e depois tendo continuidade no Ministério da Agricultura. A constituição de 1988 colaborou aumentando os recursos e dando maior autonomia aos estados e municípios, descentralizando as decisões, porém, ainda assim, as políticas misturavam-se entre ações emergenciais e permanentes, fragmentando os recursos. Esta competição de estratégias gerava assim uma ineficiência na busca por um real desenvolvimento da região. Novos arranjos institucionais e o fim do século XX No decorrer do século XX as mudanças nas ações políticas sobre o semi-árido foram concomitantes às transformações globais do papel do Estado. O Estado do bemestar social (BRESSER-PEREIRA, 1999) advindo no pós-guerra tinha como linha de conduta o intervencionismo na economia pelas influências keynesianas, sendo, neste período, o mantenedor dos serviços universais, tais como: educação, saúde, moradia, saneamento, etc. Buscava-se, portanto, garantir os direitos sociais através de um sistema de impessoalidade e racionalidade característicos de um Estado social11 burocrático, porém, se tornando ineficiente, além de ser campo para o corporativismo e burocrativismo. Acompanhando o processo de difusão do capitalismo o Estado se reconfigurou, apresentando outros eixos nas políticas implementadas e absorvendo novas concepções no que tange as suas responsabilidades. A crise do capital na década de 70, muito impulsionada pela crise do petróleo, foi, então, determinante para essas mudanças estatais, ocorrendo o que é denominado de reforma do Estado (BRESSER-PEREIRA, 1999). Esta “reforma” foi caracterizada pelo ajuste fiscal, redimensionamento da atividade produtiva do Estado e abertura comercial, além da flexibilização dos mercados de trabalho e ampliação, como se refere Bresser, do espaço público-não estatal. Acompanhando este processo o setor privado se atém à necessidade de empregar reforços no campo social, sendo mais um ator das ações sociais no espaço (PEREIRA, 2007). Seguindo a mesma lógica de ampliação da presença das empresas, Detomasi (2007) se refere no caso às multinacionais, que as empresas em sua recente evolução absorveram um caráter político-social, da mesma forma que o já preexistente caráter econômico. A mercantilização da sociedade e a disponibilização dos serviços públicos como mercados fazem parte da nova governance, procurando-se estabelecer uma eficiência não encontrada no Estado burocrático. Agora os atores competentes seriam o setor privado e as Organizações não-governamentais (ONG’s) enquanto o Estado absorve um caráter não mais intervencionista, mas sim como regulador. Este novo arranjo institucional está bastante afiliado às idéias neoliberais determinantes das condutas dos governos mais contemporâneos. A transição estatal analisada pode ser visualizada com clareza no caso brasileiro, o qual conduz sua prática ligada ao liberalismo desde o Império, apesar, de, a primeiro momento, ter sido esta bastante degenerada. Contudo, o Estado brasileiro se aproxima, na atualidade, de um liberalismo mais “puro”, pela menor intervenção estatal (NOVY, 2002) consubstanciada na absorção das idéias neoliberais. As políticas desenvolvidas no semi-árido nordestino no final do século XX e início do século XXI estão diretamente conectadas às mudanças em nível global no que se refere ao papel do Estado, sua conduta e gestão, além da sua co-existência com outros atores legitimados para intervir no território. As noções de desenvolvimento sustentável e os ajustes fiscais induziram novas políticas, utilizando-se muito do discurso de um desenvolvimento de fato, contrário ao mero crescimento econômico, mas intimamente ligado às idéias neoliberais, que são reprodução do liberalismo tão 12 enraizado na vida política e econômica do país, e que agora são diretamente influenciados pelos organismos internacionais. A perspectiva de um desenvolvimento rural é ditado pela crítica dos organismos internacionais de financiamento sobre a política desenvolvida nos países subdesenvolvidos. No Brasil, o Banco Mundial já havia financiado e dado suporte para alguns programas do Governo, fato que foi se intensificando ao final do século e absorvendo as idéias internacionais. Simultaneamente os governos foram mudando, e as políticas para o fomento de acesso à água ganharam maiores investimentos e estratégias modernizadoras (CHACON, 2007). A reforma do Estado desenvolvimentista brasileiro (BRESSER – PEREIRA, 1999) seguia esta lógica modernizante, assim como alguns governos da federação, encarando no fim século XX o trabalho de ajustar as contas, enxugar a máquina pública e ser efetivamente mais eficiente. Uma primeira mudança na forma das políticas públicas seria a definição de um “público-meta” (CHACON, 2007) como perspectiva de gerar políticas voltadas para determinada parcela da população, necessitada e englobada no processo decisório. Seria, então, necessária a participação efetiva das comunidades a serem beneficiadas, e este preceito foi muito cobrado pelos organismos internacionais como condição para os financiamentos que subsidiariam as políticas no território. Os projetos seriam, dessa forma, direcionados para a demanda, ou seja, o planejamento teria como dado prioritário a escuta daquilo que é de interesse e prioridade da própria comunidade, utilizando-se do seu poder participativo na tomada de decisão. Os interesses e anseios passaram a se organizar e se expressar através de associações de classes, entidades representativas das comunidades rurais, organizações não-governamentais e outras formas de articulação, demandando dos governos as devidas ações necessárias, contrariando a antiga lógica das políticas voltadas para a oferta, segundo as determinações dos tecnocratas (CHACON, 2007). Amplia-se assim o espaço público não-estatal, e é nessas condições que a ASA (Articulação do Semi-Árido) e outras entidades vão desenvolver seus trabalhos e projetos atrelados ao desenvolvimento do território do semi-árido, desde ações autônomas até articulações com o governo e a iniciativa privada. É estabelecida uma nova política para a água, e o intento de uma gestão participativa estimulou a criação dos Comitês de Bacia Hidrográfica, sendo este o espaço para discussão e definição das políticas a interferirem na área. A escuta se materializaria na participação efetiva dos usuários, pondo-se em debate à frente do 13 Estado e dos órgãos gestores. Todavia, prevalecem os interesses privados mais poderosos, e aí que se cai no dilema das políticas no semi-árido: discurso e prática. Contrariando essas experiências alguns programas e atividades obtiveram relativo êxito. O Projeto Áridas, o CONVIVER e o P1MC (Programa Um Milhão de Cisternas) são exemplos de passos construtivos para a convivência do homem com a seca, sempre em articulação na sociedade civil, demandando os atributos estatais. As ONG’s e demais representações da sociedade são emblemáticas nesse processo, como a Cáritas diocesana, Diaconia e a ASA (Articulação do Semi-Árido). Nova delimitação do semi-árido Da construção de grandes obras contra as secas às atuais políticas públicas, o semi-árido caminha do desencanto a um novo acalento (CHACON, 2007). O desapontamento é tão grande quanto a vontade de que soluções práticas sejam postas no dia a dia do povo. A quadra chuvosa, geralmente entre fevereiro e maio, porém com grandes oscilações, muitas vezes taxada como o algoz do homem do campo, pode ser um grande aliado (TUCCI & BRAGA, 2003). Muitos são os obstáculos para o paradigma do desenvolvimento sustentável, como a superação da primazia do modelo de desenvolvimento social sobre o econômico, que vem norteando a sociedade desde a Revolução Industrial. Ações pontuais, muitas vezes sem grande alarde ou propagandas podem ser importantes passos para minorar a dura realidade de vida de milhões de pessoas que enfrentam a crueldade díspar notadamente nos paises ou regiões subdesenvolvidas. Dentre elas está o Programa Um Milhão de Cisternas que vem sendo posta em prática no semiárido nordestino. Compreende-se semi-árido como um sistema sócio-ambiental complexo onde se observam processos materiais de ordem física, biológica, simbólica, econômica, política e tecnológica que podem comportar-se para a sustentabilidade ou a insustentablidade da região (DIAS, 2004). A sua delimitação foi traçada anteriormente com o epíteto de Polígono das Secas e compreendia a área do Nordeste brasileiro reconhecida pela legislação como sujeita a repetidas crises de prolongamento das estiagens e, conseqüentemente, objeto de especiais providências do setor público. O Polígono das Secas foi criado pela Lei nº. 175, de 07/01/1936 e complementado o seu traçado pelo Decreto-Lei nº. 9.857, de 13/09/1946. Pela Constituição 1946, foi regulamentada a execução de um plano de ação contra os efeitos da denominada seca do Nordeste. Pela Lei nº. 1.348, de 14 10/02/1951, a área do Polígono foi revisada em seus limites. Finalmente, o Decreto-Lei de nº. 63.778, de 11/12/1968, declarou que a Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) tinha a competência de determinar quais os municípios inseridos ao Polígono das Secas. Abrangia oito Estado nordestinos, além de parte do norte de Minas Gerais. Um outro conceito técnico de semi-árido é decorrente da Constituição de 1988. A lei 7.827/89 definiu como região semi-árida a área inserida pela atuação da Sudene, com precipitação pluviométrica média anual igual ou inferior a 800 mm. Em 2001, com o fim da SUDENE, o Ministério da Integração Nacional assume a tarefa de posicionarse sobre a questão de novos municípios a serem beneficiados politicamente pelo fato de estarem dentro do semi-árido. Sendo assim, por iniciativa do Ministério da Integração foi criado um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para redelimitar a área geográfica de abrangência do semi-árido, já que o critério em vigor desde 1989 levava em conta apenas a precipitação média anual dos municípios dessa região. A seca é um fenômeno físico, natural, atuando freqüente e regularmente no Nordeste repetindo-se entre 8 a 10 vezes em um século, certas vezes chegando a estender-se por até cinco anos (DUARTE, 1999). Os conhecimentos acumulados sobre o clima permitem concluir não ser a falta de chuvas a responsável pela oferta insuficiente de água na região, mas sua má distribuição, agregadas a uma alta taxa de evapotranspiração, que resultam no conhecido fenômeno da seca, que atinge a população lá residente. Isso, pois, toda a precipitação anual se concentra em três ou quatro meses, havendo grande variação de ano para ano. Com base nessas constatações, o Ministério da Integração se incumbiu de redelimitar a citada área, em 2004. Para a nova delimitação o GTI tomou por base três critérios técnicos: 1 – A precipitação pluviométrica média anual inferior a 800 mm, conhecida como a isoieta de 800 mm. 2 – Índice de aridez de até 0,5 calculado pelo balanço hídrico que relaciona as precipitações e a evapotranspiração, entre 1961 e 1990, isto é, a razão entre precipitação e evapotranspiração (P/ETP), designado pela UNEP (The United Nations Environment Programme) entre 0,20 e 0,50 para o semi-árido. 3 – Risco de seca maior que 60%, tomando-se por base o período entre 1970 e 1990 – o déficit hídrico. Além dos 1.031 municípios já incorporados, passaram a fazer parte do semiárido outros 102 enquadrados em pelo menos um dos três critérios utilizados, totalizando 1.133 municípios em todos os Estados do Nordeste, excluindo o Maranhão, 15 e parte de Minas Gerais. A área do semi-árido passou a ter 969.589,4 km², em relação aos 892.309,4 mil km² anteriores O Estado com maior número de inclusão foi Minas Gerais. Observar a nova delimitação do semi-árido na figura 01. Figura 01: Nova delimitação do semi-árido. Fonte: Ministério da Integração Nacional, 2004 Alternativas de desenvolvimento sustentável no semi-árido brasileiro: políticas públicas e o semi-árido nordestino Ao se falar em desenvolvimento logo é destacado o papel do Estado, perfazendo um arranjo basal na implementação das políticas que venham a constituir o desenvolvimento sustentável. Como ele é ainda o grande fomentador de recursos, torna-se o maior responsável por conseguir ou não uma melhoria no nível de vida da população. Dessa forma, as políticas públicas estiveram durante muito tempo vinculadas restritivamente às ações do Estado em grandes questões públicas (MEAD apud SOUZA, 2006), sendo englobado nos estudos de ciência política sobre o assunto as idéias de racionalidade e grupos de interesse, influenciando na tomada de decisão. Evita-se o uso de noções extremistas quanto à elaboração de políticas públicas tanto como sendo meramente estatal quanto excessivamente através de um campo de forças dos grupos interessados. Admite-se uma relativa autonomia do Estado, 16 permeável a influências externas de outras instituições e grupos sociais, enfatizando o papel da política pública na solução de problemas (SOUZA, 2006). O Estado brasileiro foi durante muito tempo o único provedor das políticas públicas, e mais especificamente no semi-árido brasileiro as ações se deram pela intervenção estatal, inicialmente pelo Império de Dom Pedro II. O Programa Um Milhão de Cisternas Rurais No ano 2000, a ONU, analisando os grandes problemas mundiais, constituiu 8 Objetivos do Milênio, ou oito maneiras para mudar o mundo: acabar com a fome e a miséria, educação básica de qualidade para todos, igualdade entre sexos e valorização da mulher, redução da mortalidade infantil, melhoria na saúde das gestantes, combate a AIDS e outras doenças, respeito ao meio-ambiente e união pelo desenvolvimento sustentável. Não é preciso ações megalômanas para tal, conforme o economista Paul Singer diz, o que muda a consciência de um povo são experiências pequenas, concretas e com êxito (apud BENICA & ALMEIDA, 2006). Portanto, é urgente a tomada de atitudes que realmente sejam eficazes, práticas, úteis sem necessariamente ter grande impacto de divulgação na mídia. Dentre elas, é plenamente possível destacar o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais. Com a nova delimitação do semi-árido, são 1.133 os municípios a ele pertencentes, onde vivem mais de 20 milhões de pessoas, sendo que destes, 8 milhões moram na área rural e dois terços se achem a pelo menos 1 hora por dia de alguma fonte de água. Apenas 3% da água doce do Brasil está no Nordeste, segundo o relatório da FEBRABAN (Federação Brasileira de Bancos). A água doce encontrada no subsolo cristalino tem alta taxa de salinidade, o que a torna imprópria para ser consumida. Em extensão geográfica e em população, o semi-árido brasileiro é um dos maiores do planeta. É uma das regiões mais pobres do mundo, apresentando altos níveis de exclusão social e de degradação ambiental. Vem a ser uma das principais características do Nordeste (ANDRADE, 1998). E, por isto, durante muito tempo, relacionaram-se as questões do semi-árido e do Nordeste ao problema da escassez de água. Isso porque uma região semi-árida é uma área territorial onde há deficiência e/ou irregularidade de chuvas, fazendo com que a evaporação seja superior à precipitação, sendo comum a ocorrência de secas periódicas (CUNHA & GUERRA, 2003). Em decorrência desta relação, as políticas públicas lançadas pelos governos na maior parte do século passado foram voltadas para o combate à seca. Assim sendo, foram lançados muitos planos e programas. 17 Em 1999, tem inicio o Programa de Formação e Mobilização para a Convivência com o Semi-Árido: Programa Um Milhão de Cisternas Rurais. Iniciado pela Articulação no Semi-Árido (ASA), um fórum da sociedade civil organizada, o P1MC é um amplo programa de mobilização social que objetiva mostrar como é possível aos seres humanos viverem bem no semi-árido, desde que de forma sustentável. Um dos arremates para isto é, a partir da mobilização das famílias sertanejas, captar água de chuva, utilizando a tecnologia das cisternas de placas, para garantir abastecimento nos períodos de estiagem. As cisternas representam uma grande viabilidade de custobenefício em relação a outras opções de combate à escassez de água no semi-árido, como a construção de micro-barragens ou mesmo barragens subterrâneas. O P1MC foi iniciado um projeto piloto e está atualmente na fase executiva e hoje possui característica de política pública, acercando-se do apoio formal dos governos. Por política pública compreende-se o conjunto de ações coletivas voltadas para a garantia dos direitos sociais, configurando um compromisso público que visa dar conta de determinada demanda, em diversas áreas. Expressa a transformação daquilo que é do âmbito privado em ações coletivas no espaço público (GUARESCHI, 2004). O conceito de sustentabilidade é um dos princípios do P1MC que se articula e associa várias instituições da sociedade civil, tais como: Igrejas (pastorais sociais, Cáritas diocesanas, Diaconia, etc.), Organizações Não-Governamentais (ONG’s), sindicatos, entre outras. Várias ações integram o P1MC visando a mobilização social e formação da cidadania baseadas na sustentabilidade. O ponto primordial é a construção de um milhão de cisternas. A ação faz parte de uma iniciativa maior, encontrando outras alternativas para a falta de organização e de recursos, notadamente os hídricos, na região semi-árida. O público alvo do Programa são as famílias residentes na zona rural dos municípios da região semi-árida, sem fonte de água potável nas proximidades de suas casas ou com precariedade nas fontes existentes. Após a análise das famílias mais carentes são selecionadas aquelas que irão receber o Programa, de acordo com a capacidade do orçamento disponível no momento, e a partir de alguns critérios, como ter u mulher como a chefe de família. Este é um aspecto que desponta dentro de um cenário marcadamente patriarcal desde os primórdios das formações em sociedade no mundo. Por isso, a valorização da sertaneja é uma forma de encarar o contexto sócio-histórico do sertão nordestino. Elas que geralmente passam ao largo dos principais movimentos políticos, sociais e econômicos, são uma força valoriza e passiva de assumir seu lugar de 18 liderança familiar e comunitário (FISCHER, 2001). Acaba sendo uma forma de garantir a sustentabilidade buscando contornar o terceiro dos Objetivos do Milênio da ONU que relata que as mulheres tem direitos desiguais e acesso inseguro à terra e a recursos naturais, limitando o alcance de outros ativos produtivos. Um outro critério do projeto é o incentivo e a promoção da educação. Para suas famílias serem atendidas, caso haja crianças com até 6 anos de idade, essas precisam estar freqüentando a Escola. Finalmente, as casas onde moram adultos acima de 65 anos ou deficientes mentais e físicos também estão entre as prioritárias para a implementação da cisterna. Este é mais um outro aspecto que gera muita dificuldade para as famílias carentes, pois além da falta de emprego e recursos hídricos, ainda precisam lidar diariamente com pessoas que requerem um cuidado especial e um atendimento mais próximo, demandando tempo. Com a cisterna e a água muito desses cuidados podem ser feitos e a melhoria das condições de saúde e higiene estará mais palpável. Também está entre as 8 formas de mudar o mundo, no Objetivo 4, que fala exatamente que as doenças diarréicas ligadas à água poluída e ao saneamento inadequado estão entre as principais causas de morte de crianças menores de 5 anos. O P1MC é fundamentado em alguns componentes, que seguem uma ordem prático-metodológica. Inicialmente há o processo de mobilização. Nesta etapa são formadas as comissões municipais, executoras e comunitárias e são selecionadas e cadastradas as famílias que receberão as cisternas. Logo após começará a capacitação, que é a formação continuada das equipes técnicas, agentes multiplicadores, pedreiros e habilitação de jovens em confecção e instalação de bombas manuais. A seguir, a construção de cisternas propriamente ditas, envolvendo as famílias e equipes técnicas, desde a demarcação do local da cisterna até a construção propriamente dita, normalmente concluída em cinco dias. Cada cisterna acumula 16 mil litros e é composta por: bica, placa, tampa, bomba, tela e cadeado. Após essas fases entra o controle social, compreendendo o ciclo de eventos que promovem a participação das pessoas e das instituições, garantindo a legitimidade da ASA e o estreitamento de laços da sociedade civil. Além disso, é buscado o fortalecimento institucional, dando garantia da operacionalização do Programa, como análise de custeio e investimentos. Finalmente, a comunicação, onde se busca uma valorização da cultura local; mostrando a imagem positiva do semi-árido, com desenvolvimento de material pedagógico e informativo para as famílias e comunidades envolvidas. 19 As cisternas De acordo com o Anexo II do Acordo de Cooperação Técnica e Financeira entre a FEBRABAN e a AP1MC, cisterna, de forma geral, é um reservatório, um tanque, abaixo do nível do solo, onde se conservam as águas de chuva. Já a cisterna de placas, especificamente, é uma construção de baixo custo que utiliza técnicas simples, de forma cilíndrica, coberta e semi-enterrada (ver Figura 02). Seu funcionamento prevê a captação de água da chuva, aproveitando o telhado da casa, escoando através de calhas até o reservatório ou tanque. A capacidade é de 16 mil litros. De acordo com a FEBRABRAN, que apóia o P1MC, o valor médio estimado de cada cisterna é R$ 1.500,00. Figura 02: Cisterna para captação de água do telhado. Fonte: Cirillo et al., 2007 Construção das cisternas A construção das cisternas é uma alternativa de certa forma simples, para afiançar uma água de qualidade que dê para o consumo das famílias. A cisterna de placa é a mais utilizada. O método é a captação e o armazenamento de água de chuva nas cisternas. Em geral, os telhados das casas possuem uma área satisfatória para captar a água da chuva que os moradores precisaram para as atividades domésticas diárias, como beber e cozinhar. Quando a quadra invernosa for de pouca precipitação, com certo controle dá para usufruí-la ao menos na ingestão. Uma grande vantagem também é sua implementação mesmo nos rincões do sertão nordestino, algo que vem sendo facilitado pelo avanço da tecnologia de sua construção. 20 É interessante observar que antes da presença das cisternas os moradores utilizavam uma água de gosto ruim ou ate mesmo contaminada, o que é passível de provocar doenças, especialmente nos mais idosos e nas crianças. O tempo gasto para ir buscar a água também é minimizado com a cisterna ao lado da casa. Sem falar que as tradicionais latas d’água acabam por trazer um dano à coluna cervical nas pessoas que fazem esse tipo de transporte, em geral, crianças e mulheres. Com a cisterna, as vantagens são muitas, como possuir uma água de melhor qualidade, disponível a poucos metros, sem o gosto salobro de determinadas fontes e que certamente, evitará determinadas doenças provindas do uso de água contaminada. Sobra mais tempo para as pessoas se deterem em outras atividades do dia-a-dia. Resultados do P1MC O P1MC é uma das ações da ASA que vêm sendo desenvolvida por suas Unidades Gestoras e pelo conjunto de instituições microrregionais, municipais e locais, e geridos pela AP1MC (Associação Programa Um Milhão de Cisternas Rurais) uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), que se integra a ASA. A meta era construir um milhão de cisternas, algo que ainda está bem distante, pois até outubro de 2008 foram construídas 231.849 cisternas (ver Quadro 01). Contudo, a ASA já chegou à conclusão que o Programa deve ser expandido para, no mínimo, um milhão e trezentas mil cisternas. Com isso, estabelecer o propósito de propiciar o acesso descentralizado à água potável para aproximadamente 6,2 milhões de pessoas. Quadro 01: Resultados do P1MC no semi-árido. Famílias mobilizadas 248.687 Pedreiros executores capacitados 5.706 Pessoas capacitadas em confecção de bombas manuais 4.560 Pedreiros instrutores capacitados 174 Municípios atendidos 1.031 Cisternas construídas 231.849 Fonte: Articulação para o Semi-árido (ASA), 2008. Considerações finais O problema da água no semi-árido nordestino é um item crucial para sobrepujar os empecilhos ao desenvolvimento. Os governos de regiões semi-áridas 21 vêm atuando e tentando edificar uma estrutura capaz de por água satisfatoriamente em disponibilidade ao abastecimento de suas populações. A utilização racional dos recursos hídricos no semi-árido nordestino está diretamente ligada com a chance de conseguir a construção de um caminho de desenvolvimento sustentável que preserve a capacidade de produção dos recursos naturais. O desencadear de políticas públicas que elevem a qualidade de vida econômica de seus habitantes deve ocorrer conjuntamente com estas políticas de descentralização dos recursos hídricos. Portanto, para ocorrer a sustentabilidade é necessário que a base natural seja utilizada responsavelmente, não excedendo a sua capacidade de renovação. O papel dos governos deve ser não somente na construção, mas ir além e gerir bem os recursos hídricos e toda sua infra-estrutura, garantindo o uso social da água e tornando-a capaz de ter condições de uso sustentável. O trabalho conjunto com o público não-estatal e a iniciativa privada é interessante no que se refere à mobilização e conscientização do problema, mas é dever do Estado a elaboração e, ainda mais, a execução de políticas que construam espaços de cidadania, focando de maneira sistêmica a sociedade. Como meta de uso sustentável da água potável para cozinhar e beber, o P1MC acaba sendo marcado por traduzir em ações práticas e que trazem um enorme beneficio para os moradores que agora possuem o elemento água mais acessível e de melhor qualidade. Juntamente com a mobilização e a formação, que estão entre as características do P1MC, propiciar o acesso à água de forma descentralizada pode ser um grande impulso para o nordestino elevar sua auto-estima e nutrir força para que ele possa continuar em seu lugar de origem, com sua família, tradições, costumes e também com uma sobrevivência digna. REFERÊNCIAS ALVAGONZALEZ, R. O desenvolvimento do Nordeste árido. DNOCS: Fortaleza, 1984 ALVES, J. História das secas. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1953. ANDRADE, M. C. A terra e o homem no Nordeste. Contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1998. BENINCÁ, D & ALMEIDA, A. A. Ceb’s – nos trilhos da inclusão libertadora. 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