domingo, 27 de maio de 2012

AS PIORES SECAS DO NORDESTE DESDE O SÉCULO XIX

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA EDUCAÇÃO CONTEXTUALIZADA E A CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO NO ASSENTAMENTO ACAUÃ - PB. ANA ELIZABETE MOREIRA DE FARIAS Área de Concentração: História e Cultura Histórica Linha de Pesquisa: História Regional JOÃO PESSOA-PB Fevereiro/2009 ANA ELIZABETE MOREIRA DE FARIAS ORIENTADOR: Prof. José Jonas Duarte da Costa EDUCAÇÃO CONTEXTUALIZADA E A CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO NO ASSENTAMENTO ACAUÃ - PB. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Mestre em História, Área de Concentração em História e Cultura Histórica e Linha de Pesquisa em História Regional. JOÃO PESSOA – PB Fevereiro/2009 F224e Farias, Ana Elizabete Moreira de. Educação contextualizada e a convivência com o semi-árido no assentamento Acauã-PB/ Ana Elizabete Moreira de Farias. - - João Pessoa: [s.n.], 2009. 100f. : il. Orientador: José Jonas Duarte da Costa. Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA. 1.História regional. 2.Ensino de história. 3. Cultura histórica/escolar. 4.Educação contextualizada. 5. Assentamento. UFPB/BC CDU: 94(043) UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA EDUCAÇÃO CONTEXTUALIZADA E A CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO NO ASSENTAMENTO ACAUÃ - PB. ANA ELIZABETE MOREIRA DE FARIAS Avaliado em ____ de ____ de 2009, com conceito _____________. Examinadores ____________________________________________ Prof. José Jonas Duarte da Costa PPGH-UFPB (Orientador) ___________________________________________ Prof(a). Dra. Maria Lucinete Fortunato PPGH-UFCG (Examinador Externo) ____________________________________________ Prof(a). Dra. Vilma de Lurdes Barbosa PPGH-UFPB (Examinador Interno) Aos meus pais, Areano e Arethusa. i AGRADECIMENTOS São muitos e todos muito especiais. E nem todos cabem aqui! Primeiramente à Deus que me deu a oportunidade de concretizar mais esse sonho. À meu pai, responsável direto pelo que sou. (in memoria). À meu avô Raimundo, meu Herói! – mesmo que a minha profissão insista em dizer que “heróis” não existem... À você que me ensinou a grandeza do amor que o coração humano é capaz de sentir. “Das lembranças/Que eu trago na vida/Você é a saudade/Que eu gosto de ter/Só assim!/Sinto você bem perto de mim/Outra vez...”. (in memoria) À minha mãe, porto seguro, minha fortaleza, a pessoa com quem sempre posso contar nos momentos tristes e felizes. Aos meus irmãos Arethusa e Areano que mesmo com todos os “perrengues” da convivência e as “incompatibilidades de gênios” fazem parte dessa minha (nossa) história. À Tia Regina, “matrocinadora” de muitos momentos inesquecíveis. “Hoje meus domingos são doces recordações daquelas tardes de guitarras, sonhos e emoções o que foi felicidade me mata agora de saudade, belos tempos, belos dias...” À Juliana, Leidjane, Luana, Liliana, Jorge, Gracielly, Isabel, Luciana, Silvana que me “raptavam” nos momentos certos, quando parecia que a dissertação ia me consumir por inteira (obrigada pela companhia, pelas pizzas e cervejas... por terem paciência para suportar os meus “bodes”...). À Viviane que sempre esteve presente nos momentos de angústia que permearam a pesquisa e, principalmente, a escrita. Que soube me alegrar com palavras de incentivo, sons, cafés e afetos. Pessoa que eu amo de coração, essa dissertação também é sua, e de toda a família Ceballos (Rodrigo, Morgana e Naftalina). À Eliana de Sousa (e Heitor, de contrabando... rs) que esteve presente em muitos momentos importantes que perpassaram o desenvolvimento da pesquisa e a escrita da dissertação, sempre me animando nos momentos de “crises existenciais”. Aos meus professores e amigos da UFCG/CFP, local onde o sonho teve início e cresceu até chegar ao mestrado. Ao professor Dr. Osmar Luis da Silva Filho, ao professor Francisco das Chagas Amaro, e, em especial ao professor Isamarc Lobo (coordenador do curso de história na UFCG/CFP) por tê-lo arrancado da cama num sábado às 11 da noite para pegar a documentação para a inscrição na seleção do mestrado – se não fosse ele, dificilmente estaria agora agradecendo por mais essa conquista. ii Às professoras/amigas Mariana Moreira Neto e Maria Lucinete Fortunato que apostaram na minha capacidade e contribuíram para o meu amadurecer profissional e pessoal. Não há palavras que possam expressar o carinho que sinto por vocês... Só posso dizer: Meu muito obrigada!!! Aos meus professores do mestrado da UFPB, onde consegui alçar vôo e crescer como profissional. Em especial aos professores (e espero que amigos) Drª Regina Célia Gonçalves, Drª Regina Maria Behar Rodrigues e Dr Mozart Vergetti de Menezes pelo aprendizado e as palavras certas nas horas certas. À professora Drª Cláudia Engler Cury que cedeu gentilmente alguns livros imprescindíveis para essa dissertação no momento em que as energias estavam prestes a acabar por não encontrá-los em nenhum local... Aos meus queridos amigos do mestrado, Hérick (amigo/irmão, pessoa mais que querida!); Adriana, Luciana e Railane – amigas queridas; Eloy (grande coração), Genes (gentleman), Edyene (Amiga querida); Maria Célia (e seu auto astral contagiante, sempre adoçando nossas vidas) e Adeilma (super sangue bom!). Novos irmãos de coração e sonhos. À coordenação do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB, em especial a Virgínia Régis de Barros Correia Kyotoku que sempre torceu pelo nosso sucesso e tinha paciência com todos. Desculpa por ter azucrinado seu juízo durante esses dois anos... Ao meu orientador Dr. José Jonas Duarte da Costa pelas dicas e carões sempre pertinentes. Pessoa extremamente humana com quem tive momentos de grandes aprendizados. Agradecimento mais do que especiais às professoras Drª Vilma de Lurdes Barbosa e Drª Maria Lucinete Fortunato pelos comentários e as sugestões que provieram da leitura minuciosa do relatório de qualificação. Aos professores e direção da escola do assentamento Acauã, pela solicitude com que me atenderam no momento mais importante desse trabalho. Às pessoas que compõem a CPT/Sertão, a CAAASP, a RESAB, a ASA e demais entidades que possibilitam a (re)significação do “meu” Semi-Árido todos os dias. Agradecimento especial à CAPES pela oportunidade de desenvolver a pesquisa com a bolsa e ao CNPq por ter financiado o início dessa pesquisa ainda na época da graduação em História na UFCG. iii AGRADECIMENTOS...................................................................................................... i SUMÁRIO......................................................................................................................... iii RESUMO........................................................................................................................... iv ABSTRACT....................................................................................................................... v ÍNDICE DE ABREVIATURAS E SIGLAS..................................................................... vi 1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 01 2. CULTURA HISTÓRICA, ENSINO DE HISTÓRIA E MÚLTIPLOS SABERES........................................................................................................................... 10 2.1 Cultura Escolar: entre a transposição didática e/ou dimensão cotidiana escolar........... 15 2.2 Problematizando a noção de Convivência com o Semi-Árido...................................... 19 2.3 As transformações das práticas sócio-culturais no contexto educacional do Semi-Árido Brasileiro.............................................................................................................................. 26 3. A LDB, OS PCN´s E A EDUCAÇÃO NO SEMI-ÁRIDO BRASILEIRO............... 37 3.1 Breve histórico sobre as propostas da educação antes da LDB de 1996........................ 37 3.2 A LDB, educação do campo e os PCN´s....................................................................... 41 3.3 O livro didático contextualizado: “Conhecendo o Semi-Árido”................................... 50 3.4 O livro didático, a história e a escola............................................................................. 57 4. (RE)SIGNIFICANDO O ENSINO DE HISTÓRIA NO ASSSENTAMENTO ACAUÃ.............................................................................................................................. 63 4.1 O processo educativo no assentamento Acauã: subjetividades de uma contextualização.................................................................................................................. 63 4.2 A cultura histórica/escolar no assentamento Acauã....................................................... 78 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 83 6. REFERÊNCIAS............................................................................................................ 85 7. ANEXOS........................................................................................................................ 92 iv RESUMO Esta dissertação vincula-se à linha de pesquisa História Regional, do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História/UFPB, cuja área de concentração é História e Cultura Histórica. Tem, como objetivo principal, apreender como a proposta de Convivência com o Semi-Árido favoreceu a (re)significação da educação, e do ensino de história na Escola Municipal de Ensino Fundamental Lili Queiroga. Nesse sentido, no 2º capitulo desenvolvemos uma discussão teórica sobre Cultura histórica, cultura escolar, representações e apropriações. Em seguida problematizamos a noção de Convivência com o Semi-Árido a partir do entendimento do que seria o Nordeste, para mostrar as transformações das práticas sócio-culturais no contexto educacional do Semi-Árido Brasileiro. Dando prosseguimento, no 3º capítulo analisamos as legislações, pareceres e parâmetros da educação Nacional, tentando compreender como eles vêm possibilitando o debate em torno da educação contextualizada. Nesse capítulo analisamos ainda o livro didático contextualizado “Conhecendo o Semi-Árido 1 e 2” produzido pela RESAB e adotado na escola do assentamento Acauã no ano de 2007. Já o 4º capitulo visa compreender como a discussão sobre Convivência vem possibilitando a (re)construção de novos conhecimentos, principalmente, os referentes ao conhecimento histórico. A arquitetura do trabalho se fundamenta em fontes bibliográficas, na metodologia da história oral e na análise documental das legislações da educação Nacional. Palavras chaves: Convivência com o Semi-Árido; Ensino de história; Cultura histórica/escolar; Educação Contextualizada; Assentamento v ABSTRACT This work is linked to the line of research Regional History, of the course of the mastership of Pos-Graduate in History from UFPB, whose the concentration area is History and Historical Culture Has as main objective, apprehend how the proposed sociability with the brazilian Semi-Arid has favored the (re) signification of education and the history teaching in the Municipal Elementary School Lili Queiroga. In this sense, in the second chapter developed a theoretical discussion of historical culture, school culture, representations and appropriations. Then we question the notion of sociability with the brazilian Semi-Arid from the understanding of what is brazilian Northeast, for to show the transformation the social and cultural in the educational of the Brazilian Semi-Arid context. Continuing, in the third chapter also analyzed legislation, parecer and parameters of the National Education Political, trying comprehend how they possibiliting the debate around the education contextualized. In this chapter also analyzed the didactic book contextualized "Knowing the Brazilian Semi-Arid Region 1 and 2" produced by RESAB and adopted in camp Acauã's elementary school in year 2007. Now in the fourth chapter we understand how the discussion about sociability go possibiliting the (re) construction of new knowledge, principally, referring to historical knowledge. The work's architecture is based in bibliographical source, oral history's methodology and documentary analysis of laws National Education Political. Key Words: Sociability With the Brazilian Semi-Arid; History Teaching; Culture History and School Culture; Contextualized Education; Camp. vi INDICE DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABHO – Associação Brasileira de História Oral AGB – Associação de Geógrafos do Brasil ANPUH – Associação Nacional de Professores de História ASA – Articulação do Semi-Árido AS-PTA – Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa CAAASP – Central das Associações de Assentamentos do Alto Sertão Paraibano CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviços CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento a pesquisa CONESA – Conferência Nacional de Educação para a Convivência com o Semi-Árido Brasileiro CPT/Sertão – Comissão Pastoral da Terra, sede em Cajazeiras - PB DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra a Seca EJA – Educação de Jovens e Adultos EMATER/PB – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado da Paraíba EMC – Educação Moral e Cívica E.M.E.F. Lili Queiroga – Escola Municipal de Ensino Fundamental Lili Queiroga ERUM – Escola Rural de Massaroca Fundação Abrinq GTZ – Cooperação Técnica Alemã, empresa pública de direito privado IFOCS – Inspetoria Federal de Obras Contra a Seca INCRA - Instituto de Colonização e Reforma Agrária IOCS – Inspetoria de Obras Contra a Seca IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IRPAA – Instituto Regional da Pequena Agricultora Apropriada LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - 1996 LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - 1961 MEB – Movimento de Educação de Base MEC – Ministério da Educação MMA – Ministério do Meio Ambiente MST – Movimento dos Trabalhadores Sem-terra vii ONG´S – Organizações Não-Governamentais OSPB - Organização Social e Política do Brasil PCN – Parâmetros Curriculares Nacional PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PNE – Plano Nacional de Educação PNLD – Plano Nacional do Livro Didático PPGH – Programa de Pós-Graduação em História RESAB – Rede Educação do Semi-Árido Brasileiro SAB – Semi-Árido Brasileiro Save the Childreen – International Save the Children Alliance SESI – Serviço Social da Indústria UFCG – Universidade Federal de Campina Grande UFPB – Universidade Federal da Paraíba UNEB – Universidade do Estado da Bahia UNDIME – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância UVA – Universidade Estadual do Vale do Acaraú 1. INTRODUÇÃO: Sertão é isto, o senhor sabe: Tudo incerto, tudo certo (Guimarães Rosa) O Nordeste do Brasil é talvez a região do país sobre a qual mais se escreveu até hoje. Ao longo da história, a região tem sido tratada como uma questão a ser resolvida – a questão Nordeste –, ganhando o estigma da região problema, já que guarda em seu conjunto os piores índices de desenvolvimento econômico, social e educacional do país. Ao lado disso, a região possui características naturais singulares no Brasil, tendo em boa parte de seu território a ocorrência do clima semi-árido. Característica natural deste clima, a seca compõe o principal elemento do imaginário regional veiculado e difundido nacionalmente através dos meios de comunicação e da bibliografia acadêmica. A maior parte desses trabalhos ressaltam a ligação forte entre a sociedade e a natureza. Natureza que é trabalhada discursivamente como a causa principal do atraso regional. A seca, bem como a escassez de água no sertão, são apontadas, na maioria dos discursos, como as grandes responsáveis pela miséria que atinge a região. A tragédia inerente às secas é pintada com cores fortes, explorando ao extremo seu cenário e conteúdo trágico. Os discursos e as imagens – construtores do regionalismo – que falam e mostram o Nordeste estão repletos de subjetivações que depreciam/estereotipam a região e os seus habitantes. Um imaginário social composto por “flagelados”, “retirantes”, “mortos de fome”, “figuras esqueléticas”, habitantes de uma região “inócua, de vegetação cinza e solo pedregoso”, que tem na figura do vaqueiro e do agricultor o baluarte da resistência. A seca em si, seria um fenômeno natural e a causa que impediria o desenvolvimento regional. O “polígono das secas” seria a representação espacial deste caos “reinante”, e o espaço pioneiro para as ações contra os traumas do flagelo. Os intelectuais e políticos nordestinos, desde o final do século XIX, utilizam-se da seca como estratégia de diferenciação da região Nordeste, recorrendo a uma construção de um passado comum para todas as áreas. Essas visibilidades e dizibilidades se destacam nos discursos, práticas e representações sobre essa área, se reproduzindo nos próprios livros didáticos e na escola, que passam a vincular uma imagem de Nordeste como portador do monopólio da miséria, construído sobre o signo do cangaço, do jagunço e dos coronéis atrelada ao estigma do “combate a seca”, e como tal, merecedora da “piedade” governamental. Discursos, práticas e representações que passam a ser incorporados pelos nordestinos que acabam por se beneficiar dele, construindo suas próprias subjetivações. Atrelada a estas questões, a região também aparece entre as que possuem os maiores índices de analfabetismo do país. Entretanto, outras possibilidades de ver e dizer o Nordeste e o nordestino estão sendo “patrocinadas” por alguns setores da sociedade civil, a exemplo da Articulação com Semi-Árido – ASA – e a Rede de Educação do Semi-Árido Brasileiro – RESAB. Possibilidades essas que estão vinculadas a novos enunciados que vão além do Nordeste seco construído historicamente e que, segundo Silva (2006), se caracterizam pela quebra do paradigma das ações emergenciais nas secas por programas multidisciplinares e permanentes de desenvolvimento solidário e sustentável baseados na “Convivência com o Semi-Árido”1. A Convivência com o Semi-Árido, nesse sentido, é uma proposta ligada a Sociedade Civil do final do século XX e se apresenta como um novo enunciado para as relações de poder, abrindo espaço para o redimensionamento do lugar – semi-árido – e dos sujeitos que o compõe. Como será possível ler nessa dissertação, essa proposta vem favorecendo a (re)significação dessa região pautadas na sustentabilidade econômica, política, cultural e educacional. Nesse sentido, o movimento em prol da educação contextualizada passa a ter um papel extremamente positivo nessa (re)significação do Semi-Árido2. A escolha do objeto de estudo se deu ainda no período da graduação quando participamos, juntamente com as professoras Msª Mariana Moreira Neto e Drª Maria Lucinete Fortunato, do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC – da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG – financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, com o projeto intitulado “Políticas Públicas de Educação e Relações de Poder/Saber em assentamentos rurais”. Iniciado em agosto de 2004 e finalizado em agosto de 2007. Esse projeto buscou questionar até que ponto as políticas públicas elaboradas para a educação e desenvolvidas nas áreas de assentamentos rurais consideravam as necessidades e potencialidades específicas dos assentados e a importância da construção de políticas de Convivência com o Semi-Árido. Naquele momento, investigamos como a articulação entre as instituições dos assentamentos, as instituições que apóiam a luta pela terra e as famílias assentadas contribuíram para o debate e para a participação política dos assentados na elaboração, 1 No decorrer da dissertação, sempre que estivermos nos referindo a proposta de Convivência, esta se apresentará com as iniciais em maiúsculo. 2 Essa discussão será explorada ao longo de toda a dissertação. 2 execução e gestão das políticas públicas no âmbito da educação, inferindo nas condições educacionais, políticas, sócio-culturais e econômicas das áreas de assentamentos. Com o desenvolvimento do projeto, vislumbramos a necessidade de aprofundamento das nossas reflexões no que diz respeito à questão da contextualização e da Convivência como alternativas viáveis e eficazes para a autonomia das comunidades assentadas, através de uma educação que contemple a realidade dos assentamentos. Dessa forma, ao apresentar a proposta de pesquisa para a seleção de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História – PPGH – da Universidade Federal da Paraíba – UFPB – no ano de 2006, propomos-nos a investigar como e até que ponto as mudanças paradigmáticas propiciadas pelas propostas de uma educação pautada na contextualização e na Convivência com o Semi-Árido vem (re)significando o ensino de História desenvolvido no assentamento Acauã no Alto Sertão Paraibano. Entretanto, com a emergência da proposta de Convivência com o Semi-Árido, a partir do final do século XX, esse debate vem ganhando outros contornos. A construção de uma nova territorialidade – fundamentada na lógica da Convivência com o Semi-Árido – é característica dessa nova imagem que se intenta construir do Nordeste. Uma imagem que tenta romper com a grandiosa lógica do combate à seca e converter as ações em função de novos saberes e novas demandas do mundo atual. Ou seja, orientam esses saberes para as múltiplas questões de ordem econômica, ambiental, social, política e cultural. Com a implantação e utilização do livro didático produzido pela Rede Educação do Semi-Árido Brasileiro na escola do Assentamento Acauã, abriram-se novos questionamentos sobre a (re)significação do ensino a partir dessa nova perspectiva de viver e perceber o SemiÁrido. Nesse sentido, o papel da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais tem sido de fundamental importância para a implantação da educação contextualizada, remontando ao processo de redemocratização da sociedade no final da década de 1970. Esse processo marcou profundamente o crescimento da participação popular na gestão da “coisa pública” (SILVA e MARQUES, 2004.). As questões que afetam o conjunto da sociedade passaram a ser expressas, debatidas e tematizadas por atores sociais diversos (representantes do poder público – Federal, Estadual e Municipal – e a sociedade civil organizada) alterando significativamente a relação entre Estado e sociedade civil3. Este 3 O que diferencia essa postura das manifestações de resistência na época do Regime Militar é que essas vozes passam a ser ouvidas e têm um lugar de saber e de poder legitimados na relação que se estabelece entre o Governo e os diversos setores da sociedade, o que não 3 diálogo proporcionou a superação de diversos impasses e problemas, identificados na atuação do Estado brasileiro – a ineficiência, a excessiva burocratização e o distanciamento em relação às necessidades sociais, tornando visível a possibilidade de um efetivo processo democratizante em oposição ao autoritarismo que marcou o governo militar. A emergência de setores populares nas esferas de decisão privilegiou a alteração da “engenharia institucional” e das correlações de força, fortalecendo as organizações populares e a revisão do papel das instituições governamentais que passaram a incluir nas discussões, temas referentes à reforma agrária, agricultura familiar e a educação. Esse processo contribuiu para que houvesse resistências, conflitos e pressões nos momentos de elaboração, gestão e controle das políticas públicas. Ao analisar o processo de desenvolvimento da agricultura no Brasil, a reorganização do Estado e suas relações com os demais segmentos da sociedade civil no intuito de expandir e fortalecer a agricultura familiar, Bergamasco (2003) observa que, durante o regime militar, o desenvolvimento da agricultura mantinha relações de mercado fundado no modelo agroindustrial e agropecuário, tendo como conseqüência a retirada dos trabalhadores rurais desse processo. A Constituição de 1988, embora precedida de um fértil debate político sobre a função social da propriedade, reforça a legislação agrária vigente, e referenda a compreensão de que a reforma agrária não pode afetar as áreas já inseridas no processo de modernização, independente do tamanho da propriedade, de seu impacto na estrutura sócio-ocupacional e nas relações de trabalho. Ainda que de forma complicada e mesmo contraditória, no início da década de 1990, a legislação agrária pós-Constituinte e a Lei Agrária foram aprovadas, refletindo a derrota política dos movimentos sociais a partir do final da década de 1980. Aos movimentos sociais e aos trabalhadores na reforma agrária restava como alternativa “ocupar, resistir e produzir”4. A partir desse momento, a reforma agrária passa a ser apresentada como importante e necessária alternativa de desenvolvimento para o país em função da dramática exclusão social, do aumento da fome e do desemprego e do caráter parcial e relativo da modernização que ampliou a concentração da propriedade fundiária no Brasil pós-regime militar. A luta vai se concretizar a partir da sistematização da legislação agrária e da ampla discussão sobre a regulamentação dos dispositivos legais. Na prática, estas estratégias são sinonimizadas em ocorria anteriormente. 4 Palavra de ordem do MST durante a década de 1990. 4 amplas mobilizações populares e grandes ocupações de terra. Há, nessa época, debates acalorados nas câmaras e mesmo nos jornais sobre a reforma agrária5. Ao elaborar o prefácio do livro de Fernandes (1996), Oliveira (1996) ressalta a chamada “dimensão espacial” da luta pela terra. Nas suas palavras: os acampamentos, as caminhas, as ocupações, são processos que fazem “a luta mover-se pelo território apropriado privadamente pelos proprietários de terras (...). É como se eles [os camponeses] não estivessem em lugar nenhum e ao mesmo tempo estivesse em todos os lugares onde há a necessidade de erguer uma bandeira do Movimento”. (OLIVEIRA, 1996, p. 11). Homens e mulheres que lutam por melhores condições de vida, pela retomada da cidadania e da dignidade. Como bem falou Fernandes (1996), a reforma agrária significa a conquista da terra e da cidadania. Conquistas que são exemplos de uma nova opção de vida para a construção de uma sociedade dotada de justiça e dignidade. No entanto, para o autor, a conquista da terra e a instalação dos assentamentos não significam o fim da luta. Pelo contrário, são reveladoras da continuidade, pois exige a superação de outros desafios que vão aparecendo no delinear da realidade, favorecendo a criação de experiências alternativas nas diversas atividades do assentamento. A reforma agrária que vem sendo implantada no Alto Sertão Paraibano possibilita a compreensão da existência de problemas que precisam ser superados para que haja melhoria da qualidade de vida das comunidades assentadas. Entre os problemas verificados, podemos apontar: a ausência de condições que assegurem a permanência dos assentados na terra e o desenvolvimento das potencialidades dos assentamentos. A superação desses problemas exige um esforço conjunto do Estado, dos segmentos organizados da sociedade e dos próprios assentados. Nesse sentido, para que seja consolidado o fortalecimento político, econômico e social dos assentamentos são necessários: uma infra-estrutura adequada, crédito, assistência técnica, serviços de saúde e educação, entre outros. Estas condições nem sempre têm sido viabilizadas pelos governos (Federal, Estadual e Municipal). A maior parte dos assentamentos do Alto Sertão Paraibano tem contado com a assessoria de ONG´s, movimentos sociais e igrejas. 5 Já na década de 50 do século XX havia uma preocupação e uma bem articulada defesa da reforma agrária. Entretanto, com a tomada do poder pelos militares houve uma diminuição das pressões por parte da população, em virtude da violência que se viu a partir desse período. 5 A educação escolar nas áreas de Assentamentos da Reforma Agrária no Sertão da Paraíba também se processa de uma forma complexa, sobretudo no que diz respeito à oferta do Ensino Fundamental. A insuficiência de escolas e a precária qualidade das instalações existentes no meio rural obrigam crianças e jovens a se deslocarem para outros lugares para exercerem o direito à educação. Além disso, historicamente, os projetos pedagógicos não estabelecem a articulação entre a escola e a comunidade. E quando tentam fazê-lo, esbarram em dificuldades entre as quais destacam-se: a inviabilidade prática das propostas metodológicas, o analfabetismo, a desvalorização da cultura local, a existência de professores “leigos” ou formados “aligeiradamente”, a formação essencialmente urbana do professor, o acesso precário à informação, o distanciamento da escola em relação ao espaço rural onde ela está inserida com a sua conseqüente marginalização e, por fim, os currículos inadequados. Nesse sentido, durante a execução do projeto “Políticas Públicas de Educação e Relações de Poder/Saber em assentamentos rurais”, foi possível constatar que o planejamento das atividades pedagógicas inviabiliza e/ou limita a participação da comunidade, o comprometimento com a realidade local, a valorização profissional e a inclusão social na vivência de relações democráticas e isonômicas entre a sociedade civil e as várias instâncias do poder público. Dessa forma, a elaboração, execução e gestão de políticas públicas de educação são reveladoras de um descompasso entre os discursos governamentais, a operacionalização das políticas públicas de educação e a participação de qualidade dos movimentos sociais como possibilidade de (re)significação da educação oferecida nas escolas. (FARIAS; MOREIRA NETO, e FORTUNATO, 2005/2006, p. 08). Essa realidade impossibilita uma relação de reconhecimento entre os conteúdos e a realidade mais próxima dos alunos. E como conseqüência, os jovens assentados não estabelecem qualquer articulação entre a escola que freqüentam e a comunidade onde vivem, lutam, sonham e constroem esperanças de futuro. Para eles, o lugar de morar não é o lugar de viver. Ou seja, o urbano passa a ser a referência da vida que os jovens assentados querem para si, levando-os ao “desprezo” com a sua própria realidade. Assim, a escola acaba contribuindo para a compreensão de que o mundo rural é culturalmente inferior ao urbano, que o mercado é o parâmetro norteador da vida, que o consumidor tem prioridade sobre o cidadão e que a agricultura familiar é prática de “pobres”, e, portanto, inviável como alternativa de vida, sobretudo para as gerações jovens. Isto porque, não há, nas escolas de Ensino Fundamental, a discussão de temas que 6 possibilitem a compreensão das problemáticas políticas, econômicas, históricas e sócioculturais que afetam as vidas das pessoas nos Assentamentos Rurais. Esta realidade difere da proposta articulada pelo Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST e por entidades como a Comissão Pastoral da Terra – CPT, a Rede de Educação do Semi-Árido Brasileiro – RESAB, entre outros, que buscam desenvolver uma educação popular voltada para a ação cotidiana e para a mudança social. Para se construir condições de sobrevivência com qualidade de vida nos assentamentos não basta apenas a conquista da terra. É de fundamental importância a inserção dos assentados como sujeitos políticos na elaboração, na execução e na gestão das políticas públicas visando o conhecimento e transformação da realidade sócio-cultural das áreas de assentamentos. Nesse sentido, buscaremos problematizar até que ponto a educação desenvolvida no Assentamento Acauã contribui para a articulação da proposta de Convivência com o SemiÁrido (re)significando o ensino de História e a produção de novos conhecimentos. Para tanto, optamos por entrevistar as professoras de 2ª, 3ª e 4ª séries do ensino fundamental6. No caso da entrevista com a professora da 2ª série do ensino fundamental, a escolha se deu porque entendemos que essa série é “preparatória” para as discussões que seriam realizadas nas 3ª e 4ª séries. Assim, queríamos saber de que forma essas aulas ajudavam os alunos a perceber a importância da proposta de Convivência com o Semi-Árido com a vida que levam no assentamento. A perspectiva analítica dessa pesquisa é perpassada pelos conceitos de cultura histórica – Neves (2002); Flores (2007) e Le Goff (1992) -, de cultura escolar - Chervel (1990); Julia (2001); Perrenoud (1993); Forquim (1993) e Vinão Frago (1995, 2000) - e de representações e apropriações, tendo como base as posições teóricas de Chartier (2002). No primeiro capítulo intitulado “Cultura Histórica, Ensino de História e Múltiplos Saberes” desenvolveremos discussões acerca da cultura histórica e da cultura escolar, mostrando como elas são importantes para pensar o ensino de história e a própria noção de Convivência com o Semi-Árido. Em seguida, problematizaremos a noção de Convivência, mostrando as transformações das práticas sócio-culturais no contexto educacional do SemiÁrido brasileiro. 6 Na proposta inicial de pesquisa apresentada ao programa de Pós-Graduação de História da UFPB, tínhamos a pretensão de entrevistar também os alunos envolvidos nesse processo de ensino/aprendizagem. Entretanto, não se configurou numa proposta possível, visto que os alunos que tinham estudado na escola durante o ano de 2007 não eram mais alunos daquela instituição. 7 Com base nas leituras teóricas mostraremos que essa proposta vem se apresentando como “novas” formas de ver e dizer o Nordeste e o Semi-Árido. Além disso, também discutiremos essa apropriação pelo campo da educação – educação contextualizada – e a importância da mobilização da sociedade civil organizada. No segundo capítulo, “A LDB, os PCN´S e a Educação no Semi-Árido”, analisaremos as legislações, pareceres e parâmetros da educação nacional, buscando compreender como eles vêm possibilitando o debate em torno da educação contextualizada. Partindo disso, faremos uma discussão acerca das propostas anteriores a LDB de 1996, além de ressaltar a importância da Educação do Campo para o redimensionamento da educação em áreas de assentamento. Analisaremos ainda o livro didático contextualizado “Conhecendo o Semi-Árido 1 e 2” produzido pela RESAB e adotado na escola do assentamento Acauã no ano de 2007, buscando compreender até que ponto ele é perpassado pelas propostas referendadas pelas normas e parâmetros. Já o terceiro capítulo, “(Re)significando o ensino de história no Assentamento Acauã”, visa compreender como a discussão sobre a Convivência vem possibilitando a (re)construção de novos conhecimentos, em especial, os que se referem ao conhecimento histórico. Nesse capítulo trabalharemos com a metodologia da história oral, como forma de apreender como a educação contextualizada e o ensino de história se processam/entrelaçam nessa escola. Articularemos as discussões empreendidas nesse capítulo com os conceitos de cultura histórica/escolar, tentando mostrar como esse debate contribui para a apropriação no campo da educação/ensino. Ou seja, o desafio será expor como essa discussão propicia a (re)significação da educação na escola do assentamento Acauã. O nosso estudo se encontra no interior da discussão de História e Cultura Histórica – área de concentração do Programa de Pós Graduação/UFPB – vinculado a linha de pesquisa de História Regional, uma vez que abrange o Semi-Árido enquanto recorte regional historicamente construído. No entanto, essa dissertação não deixa de dialogar/articular com a linha de pesquisa, Ensino de História e Saberes históricos, uma vez que trabalhamos com o ensino de história que se processa em uma escola de assentamento. Diante do exposto, essa dissertação está comprometida com os anseios por uma educação de qualidade, que tenha como eixo norteador o currículo contextualizado, com respeito à alteridade e à subjetividade de alunos, professores e todos os envolvidos no processo de educação. Nesse sentido, visamos problematizar a (re)significação da educação 8 a partir da lógica da Convivência com o Semi-Árido e da educação contextualizada e do ensino de História que se processa na escola do assentamento Acauã. 9 2. CULTURA HISTÓRICA, ENSINO DE HISTÓRIA E MÚLTIPLOS SABERES Nos últimos anos tem-se verificado a ampliação do número de pesquisas em torno da História da Educação e do ensino de história. No entanto, como afirma Fonseca (2004), esses estudos carecem de uma sistematização quanto à possibilidade de inovação nas investigações, uma vez que eles privilegiam as reformas curriculares, a análise dos currículos, o estudo das instituições escolares e a formação de professores. Ou seja, esses estudos levam em consideração a história das políticas, da organização e do pensamento educacional. Autores como Gonçalves e Faria Filho (2005) ressaltam a necessidade de uma “virada” para o estudo da história das culturas escolares que possa contribuir com a produção de uma cultura historiográfica, além de criar condições para um diálogo fecundo e criativo com os historiadores e demais estudiosos. Um dos caminhos para a emergência e consolidação desse tema está diretamente ligado ao diálogo com a história cultural francesa. O reconhecimento da importância da história da Educação para a historiografia, por parte dos historiadores que trabalham na perspectiva da história cultural, está atrelado à necessidade de dar visibilidade aos diversos sujeitos que participam da cultura escolar, notadamente aos professores e alunos. Para tanto, uma das contribuições analíticas mais utilizadas é a de Roger Chartier (2002), tomando como base as categorias de prática, representação e apropriação. Ao definir as noções de práticas, representações e apropriações, o autor conclui que: as representações elaboradas ou produzidas pelos sujeitos sociais são apreensões do “real”, ou parte desse “real”, que é constitutivo de uma prática – complexa, múltipla, diferenciada, contraditória – dotada de significações de mundo. E como elo entre a prática e a representação, o autor ressalta a importância da apropriação que “(...) tem por objetivo uma história das representações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem”, ou seja, as condições e os processos de construção do sentido do real. (p. 26) Chartier afirma ainda que a história cultural tem por objeto principal identificar os diferentes lugares e momentos em que uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler, acrescentando em seguida que As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre 10 determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (CHARTIER; 2002; p. 17) De acordo com essa noção e tomando por empréstimo as concepções de Gonçalves e Faria Filho (2005), a relação entre cultura escolar e história cultural pode ser explicada, considerando que (...) tanto a temática – cultura escolar – quanto a abordagem – história cultural – contribuem para a criação de um lugar confortável para a educação no terreno da cultura, só que agora não mais ancorado nos estudos sociológicos, mas, historiográficos. (p. 53) Essa influência possibilitou novas articulações entre as formas de pensar as práticas e o mundo social, tornando a história da Educação mais sensível à pluralidade que atravessa a sociedade – discursos, visões de mundo, condutas, ações, etc. –, estreitando o diálogo entre as “ciências da Educação” e a História – historiografia. Ao utilizar as categorias de representações, práticas e apropriações, Chartier (2002) abriu a possibilidade de pensar a cultura histórica para além dos quadros da historiografia, incorporando as práticas educativas (cultura escolar) e os diversos conhecimentos divulgados/produzidos pelos meios de comunicação de massa. Contudo, boa parte dessa discussão ainda não atende às demandas do campo da Educação e da própria História no que se refere à cultura escolar. A idéia de traçar um perfil da “cultura escolar” nos diferentes períodos históricos apresenta-se como primordial, no sentido de apreender as especificidades dos pensamentos e ações educacionais em diferentes contextos, além de alimentar novos questionamentos em torno das perspectivas teóricas do campo da historiografia e da cultura escolar como objeto de investigação por parte dos historiadores. Para tanto, torna-se necessário vislumbrar algumas noções de cultura histórica e, a partir daí, pensar o ensino e a cultura escolar como construtores de um novo paradigma para a pesquisa histórica. Nessa perspectiva, pensar o ensino da história hoje pressupõe um debate amplo na medida em que incorpora as noções de cultura histórica que estão sendo discutidas pelos historiadores. Dessa forma, optamos por dialogar com as interpretações defendidas por Le Goff (1992), Flores (2007) e Neves (2002), por considerá-las importantes para o propósito desse capítulo, já que compartilhamos a idéia de que o conhecimento da História não se processa apenas na sala de aula, mas habita outras esferas do cotidiano. A concepção de cultura histórica deve ser pensada para além do campo da historiografia e do cânone historiográfico, nos fala Flores (2007). Nesse sentido, ao reunir as 11 contribuições de outras categorias profissionais, como é o caso dos cineastas, cronistas, jornalistas, memorialistas, etc., proporciona a difusão e apropriação de saberes históricos e de um “pensar histórico”. Nesse sentido, cabe aos profissionais da História “direcionar” esses saberes, possibilitando ao estudante ver como ele próprio produz História. Nas palavras de Flores, “(...) o ensino de História, prerrogativa dos profissionais da história e das culturas escolares, precisa, cada vez mais, ser mediado pelos saberes históricos, responsáveis em grande parte pelas porosidades intrínsecas à cultura histórica”, diminuindo a perigosa disparidade entre a enorme proliferação metodológica na historiografia e a sua ausência ao nível dos saberes escolares. (FLORES; 2007; p. 96). Considerando que a cultura histórica engloba múltiplos saberes produzidos pela sociedade, Le Goff (1992) destaca que A história da história não se deve preocupar apenas com a produção histórica profissional mas com todo um conjunto de fenômenos que constituem a cultura histórica ou, melhor, a mentalidade histórica de uma época. (p. 48) Dessa forma, o saber científico, que é reconhecido como produto da reflexão acadêmica, encontra-se também formado por experiências individuais e coletivas nem sempre consideradas pela academia, mas que se mesclam e se confundem nas práticas culturais, também históricas. Esse autor ressalta que a história produzida pelos historiadores é “a única que tem vocação científica”, apesar de que ela tem “a sorte ou a infelicidade” de ser feita também por “amadores” (LE GOFF; 1992; p. 49). O autor considera ainda que a “mentalidade histórica” e a “cultura histórica” são a mesma coisa, sem, no entanto, explicitar essa “igualdade” de conceitos. Essa “confusão” foi criticada por Flores que afirma: “mentalidade histórica” prescinde de qualquer sinal de letramento, “sendo atributo inconteste também das sociedades ágrafas e pré-capitalistas” (Flores, 2007, p. 96). Já a cultura histórica necessita de categorias profissionais que a tornem acessíveis e possuidoras de um “sentido histórico”. Ampliando a noção de cultura histórica, Neves (2002) chama atenção para o papel da “identidade social”, (...) a concepção de cultura histórica, que norteia as reflexões sobre o tema em pauta, entende-a como identidade social de uma dada comunidade, (parte e expressão concreta de uma sociedade mais ampla) construída a partir do conhecimento da referida comunidade e dos indivíduos que a integram, fundamentado por uma visão crítica do processo histórico por meio do qual essa comunidade se constitui e se situa na 12 contemporaneidade. (...) Em sua construção é possível (imprescindível) destacar o papel do ensino de história, bem como reconhecer a importância fundamental (imprescindível) da participação da comunidade. (p. 36) Fica clara, portanto, a importância dada pela autora ao ensino de história, ao processo de troca entre a História (saber científico e saber escolar) e o conhecimento histórico produzido na/pela realidade (saber não científico, identidade social, senso comum). Aproximando-se do que Le Goff chamou de “amadorismo”, Neves demonstra uma enorme preocupação com o papel do historiador nesse processo de mediação do conhecimento histórico com a realidade, ao defender que (...) mais do que nunca os historiadores têm a responsabilidade de definir o seu próprio, específico e intransferível papel, bem como equacionar a relação entre o conhecimento acadêmico ou cientificamente produzido e as outras formas de produção do saber, na construção da cultura histórica. (NEVES; 2002; p. 46) Nessas circunstâncias, os questionamentos são direcionados para a importância do saber popular e o saber acadêmico/científico reproduzido/transmitido/construído na escola e para a inevitabilidade do diálogo entre Memória e História. Neves, fazendo referências a Le Goff, às suas considerações em torno da memória coletiva e à história feita pelos historiadores, percebe a importância do exercício da crítica, pela qual a História deve corrigir as visões tradicionais e estereotipadas de si: “a informação histórica fornecida pelos historiadores de ofício teria a responsabilidade de colocar a sociedade diante de si mesma, até mesmo para (re)conhecer suas limitações” (NEVES; 2002; p. 42). Neves aponta ainda a necessidade de corrigir a História a partir da memória, no sentido de dar vez aos novos agentes da história que foram/são escamoteados pela “ciência”, buscando o auxílio da memória. Neste sentido, defende que essa relação deve se processar de maneira que as duas – memória e história7 – se completem, ampliando e traçando novos rumos para a história e a sociedade como um todo. No entanto, Flores (2007), ao citar Joana Neves, ressalta a recorrência das palavras comunidade e senso comum como formadores da cultura histórica. Noções que seriam extremamente complicadas quando inseridas nos debates historiográficos. (...) a autora [Neves 2002] coloca uma complexidade a mais na definição conceitual de cultura histórica: o senso comum produzido pela memória das comunidades. Essa complexidade gera uma aporia historiográfica da qual não sei me desvencilhar: nem tudo que é atinente ao passado, 7 A discussão entre memória e história é bem ampla, e as próprias noções de história, memória e memória social, ganham contornos próprios a depender da abordagem e dos atores escolhidos. No entanto, não nos aprofundaremos nessa discussão. 13 especialmente ao passado historiográfico – o passado registrado e narrado –, pode ser cultura histórica. O rigor epistemológico do conceito precisa ser preservado, sob pena de sua inviabilidade operacional. (FLORES; 2007; p. 100) Pensando os “limites” da utilização da noção de cultura histórica, Flores não nos oferece enunciados que definam esse impasse. Talvez nem tenha sido sua intenção quando produziu o texto “Dos feitos e dos ditos: história a cultura histórica”, mas essa discussão é importante, visto que a produção do saber histórico evidencia-se como instrumento de leitura do mundo e não mera disciplina. E, nesse sentido, ao se trabalhar com a noção de cultura histórica a partir do ensino, entendemos que o conhecimento histórico deve ser orientado no sentido de indagar a relação dos sujeitos com os seus objetos de conhecimento. Ou seja, significa pensar o ensino de história para além da sala de aula, incorporando conhecimentos que sirvam para a vida. Pode-se afirmar que um elemento comum em todas as noções de cultura histórica diz respeito às contribuições das outras categorias profissionais e outros campos disciplinares, e à necessidade de apreensão/apropriação desses conhecimentos pelos historiadores, em especial, pelos professores de História. Desse modo, pode-se perceber que a noção de cultura histórica é extremamente complexa e que os três autores aqui referenciados, embora abordem a questão a partir de enunciados e recortes distintos, possuem o entendimento de que os conhecimentos elaborados pelo conjunto da sociedade – profissionais de outras áreas, amadores, senso comum, comunidade, entre outros – são importantes para a constituição da “cultura histórica” e do ensino de História. Cabe lembrar que o debate não se esgota com esses autores. A discussão em torno da cultura histórica é mais ampla e complexa, mas para balizar as discussões que estão sendo empreendidas nesse capítulo, esses autores dão conta das categorias e das relações que são imprescindíveis para o nosso trabalho, já que a nossa pesquisa parte de uma nova concepção de Semi-Árido que está sendo construída por diversos setores da sociedade, o que significa dizer que engloba múltiplos saberes. Nesse sentido, ao trabalhar com o ensino de História no Assentamento Acauã no município de Aparecida-PB, é necessário entender a relação entre a cultura histórica e a cultura escolar, uma vez que as potencialidades e problemáticas que norteiam essa nova proposta de desenvolvimento regional – a Convivência com o Semi-Árido – são respaldadas pelo “cruzamento” e entrelaçamento de diferentes saberes, sendo incorporadas também pela educação. Assim, esse debate abre precedentes para se pensar a cultura histórica/escolar e a 14 sua relação com a Convivência e a (re)significação do ensino de História a partir de uma realidade específica – o Semi-Árido brasileiro. 2.1 Cultura escolar: entre a transposição didática e/ou dimensão cotidiana escolar Embora cultura escolar não seja um conceito simples de delimitar, considera-se que na escola foram sendo historicamente construídas normas e práticas definidoras dos conhecimentos que seriam ensinados e dos valores e comportamentos que seriam inculcados, gerando o que se pode chamar de cultura escolar. Conhecimentos, valores e comportamentos que, embora tenham assumido uma expressão peculiar na escola e, principalmente, em cada disciplina escolar, são produtos e processos relacionados com as lutas e os embates da sociedade que os produziu e foi também produzida nessa e por essa escola. Entendendo que o debate em torno da noção de cultura escolar é extremamente plural, e que não conseguiríamos apresentá-lo em suas particularidades, os autores a serem discutidos foram divididos em dois grupos: os que entendem a cultura escolar como transposição didática8 – Forquin (1993) e Perrenoud (1993) – e os que colocam as variáveis “tempo e espaço escolar” como referências para analisar a cultura escolar – Chervel (1990), Julia (2001), Vinão Frago (1995; 2000). Forquin (1993), a partir das concepções sociológica e etnológica da palavra cultura, estabelece uma diferenciação entre cultura da escola e cultura escolar. Para esse autor, a cultura da escola está atrelada às influências dos diferentes meios sociais e sujeitos que compõem a escola, especialmente alunos e professores com seu saberes e valores subjacentes à sua realidade. O autor define cultura escolar “como o conjunto dos conteúdos cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados, normalizados, rotinizados, sob o efeito dos imperativos de didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas”. [Grifos nossos]. (FORQUIM; 1993; p. 167). No mesmo sentido, Perrenoud (1993) considera a cultura escolar como o conjunto de conteúdos cognitivos “fabricados artesanalmente” até torná-los ensináveis no contexto da 8 Entendemos por transposição didática o movimento que traduz o processo de transformação do saber acadêmico em objeto de ensino de uma disciplina específica. Nessa perspectiva, a escola seria o lugar privilegiado de recepção e de reprodução do conhecimento acadêmico adaptado pelos currículos, livros didáticos e, principalmente, pelo professor ao meio escolar. 15 escola. Neste caso, a escola e o professor seriam os elementos chaves da cultura escolar, por serem os responsáveis pela transmissão dos saberes, da cultura e das práticas em conhecimentos apropriáveis pelos alunos. As concepções de Forquin e Perrenoud não levam em consideração o universo criativo da escola. Ao pensar a escola como agente de “transmissão deliberada” e/ou “fabricação artesanal” de conteúdos, os autores não reconhecem nela a capacidade de agente produtor de um saber próprio, significativo e que possa possibilitar a construção de novos saberes. Para eles, o professor e a escola não passam de transmissores de conhecimentos, transformando os saberes produzidos na academia em saberes escolares apropriáveis às disciplinas. Em contraposição às concepções de Forquin e Perrenoud, André Chervel (1990) chama atenção para a produção de uma cultura própria dentro da escola, a qual não seria superior ou inferior aos demais saberes. Para este autor, a concepção de transposição didática legitima a hierarquia entre os saberes acadêmicos e escolares. Nesse sentido, essas análises tradicionais não explicam a forma como a “cultura” poderia interferir/interagir na definição dos conteúdos e nas metodologias que constituem as disciplinas escolares. Chervel (1990) afirma que conteúdos e metodologias não podem ser entendidas separadamente do contexto histórico e social em que a escola está inserida. Nesse sentido, os conteúdos escolares não seriam vulgarizações ou meras adaptações de um conhecimento produzido em “outro lugar”, mesmo que tenham relações com esses outros saberes ou ciências de referência. Para o autor, o conhecimento escolar deve ser estudado historicamente, a partir do papel que a escola exerce em cada momento histórico, e, além disso, é extremamente importante entender a escola como lugar de produção de um saber próprio. Partindo dessa perspectiva, Gonçalves e Faria Filho (2005), fazendo referência a Chervel e a relação que a escola estabelece com a sociedade, destacam que (...) o sistema escolar é dotado de um poder criativo, poder este exercido na relação que a escola desenvolve com a sociedade, desempenhando um papel de formação do individuo e, dessa forma, de uma cultura que impactará diretamente a vivência desse indivíduo na sociedade. (...) [o sistema escolar] forma não só os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade global. (p. 36) Essa compreensão possibilita o entendimento de que as práticas e experiências escolares são criativas, indicando que a cultura escolar não é passiva, é, sim, produtora de 16 conhecimentos e modos próprios de pensar. Ou seja, a vida interna da escola reelabora, segundo a sua dinâmica interna, as normas, valores, práticas, dando-lhes uma coloração nova, mas nem por isso alheia ao encadeamento geral da sociedade e das instituições normatizadoras da educação. A organização e a estrutura de funcionamento e, portanto, de tomada de decisões no cotidiano escolar é peculiar, pois as escolas são instituições especiais e diferentes das demais organizações sociais. Trabalhando na mesma perspectiva, Vinão Frago (2000) considera que o tempo e o espaço escolar são importantes para se pensar a educação e a cultura escolar como objeto histórico. Para esse autor, qualquer atividade humana precisa de um espaço e de um tempo determinados, uma vez que são elementos básicos constitutivos da atividade humana. No entanto, ao analisar o sistema educacional, Vinão Frago (1995) afirma que o espaço diz respeito ao lugar específico da escola, já o tempo escolar seria um tempo conflituoso, uma vez que engloba o tempo pensado pelos pedagogos (tempo teórico); o tempo normatizado, prescrito pelas leis e regulamentos, e o tempo escolar onde se processam os acontecimentos da escola. O autor compreende a cultura escolar como o conjunto de aspectos institucionalizados que caracterizam a escola como instituição educacional. Entre essas características institucionais inclui-se o modo de ser e viver as particularidades da escola (dimensão cotidiana). Dessa forma, La cultura escolar, así entendida, estaría constituida, en una primera aproximación, por un conjunto de teorías, ideas, principios, normas, pautas, rituales, inercias, hábitos y práticas – formas de hacer y pensar, mentalidades e comportamientos – sedimentadas a lo largo del tiempo en forma de tradiciones, regularidades y reglas de juego no puestas en entredicho y compartidas por sus actores en el seno de las instituciones educativas. (VINÃO FRAGO; 2000; p. 29) Apesar de compreender a cultura escolar pelo mesmo ponto de referência – tempo e espaço escolar – Julia (2001) restringe a noção de cultura escolar ao (...) conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). [Grifo do autor]. (p. 10) Segundo Julia, a análise da cultura escolar requer o exame do conjunto das normas e práticas definidoras dos conhecimentos que determinada sociedade deseja que sejam ensinados, e dos valores e comportamentos a serem incorporados. Parece claro, portanto, que 17 ver a cultura escolar como objeto histórico implica analisar o significado imposto aos processos de transmissão de saberes e “inculcação” de valores dentro desse espaço. Assim, estudar a cultura escolar é estudar os processos e produtos das práticas escolares, isto é, práticas que permitem a transmissão/produção de conhecimentos e a imposição de condutas. Entretanto, os conteúdos ensinados na escola devem guardar uma relação direta com a realidade mais próxima, realidade essa que deve se apropriar de todo o conhecimento produzido, social, político, cultural e economicamente, a partir das próprias formas de ver, sentir e viver o mundo (cultura escolar/histórica). Assim, as concepções de Julia (2001) e de Chervel (1990) respaldam a compreensão de que a escola e os sujeitos que a compõem possibilitam a criação de um “campo” propício para a construção de novos conhecimentos a partir da realidade, especificidades e de suas problematizações. Dessa forma, a escola é considerada um espaço institucional, cuja função social é a de promover a sociabilidade, a produção e a ampliação de saberes acumulados, se tornando peça fundamental e estratégica para a produção de novos conhecimentos. Essa discussão é imprescindível quando passamos a pensar a Convivência com o Semi-Árido como construtora de um novo paradigma para o ensino nas escolas. Ao produzir um saber que estabeleça vínculo com outros aspectos que compõem a vida em comunidade, a Convivência estaria contribuindo para pensar a cultura escolar como processo de construção e reconstrução de saberes. Ou seja, ao referendar a importância de uma educação contextualizada e o cultivo de um saber que, extrapolando os muros das escolas, essa nova proposta de desenvolvimento possibilita a tomada de consciência tão imprescindível à aquisição da autonomia da população do Semi-Árido. Porém, antes de adentrarmos na discussão sobre a educação contextualizada para a Convivência com o Semi-Árido, é importante pensar as construções discursivas que produziram as visibilidades e dizibilidades do Nordeste e do Semi-Árido para, posteriormente, desenvolver a discussão sobre as transformações das práticas sócio-culturais no contexto do Semi-Árido Brasileiro. 2.2 Problematizando a noção de Convivência com o Semi-Árido. 18 Discutir sobre a Convivência com o Semi-Árido passa necessariamente pelo entendimento sobre o Nordeste e os discursos que pensam a região e o seu povo. No livro “A Invenção do Nordeste e outras artes”, Albuquerque Júnior (1999) chama atenção para os discursos fundadores de uma região marcada pelo estigma da fome, da pobreza e da seca. Nordeste pensado/produzido como espaço a partir de práticas discursivas e não-discursivas que repetem com certa regularidade uma homogeneidade da identidade definidora do caráter da região e do seu povo, que caracterizam não só o Nordeste, mas o Semi-Árido, como espaço problema, terra das secas. No final do século XIX, e ao longo do século XX, os discursos sobre as secas foram ganhando maior visibilidade, revelando a “problemática regional”, enfatizando as políticas assistencialistas do Governo que se pautavam na concessão de cestas básicas, nas construções de açudes e barragens, nas frentes de trabalho e etc., capitaneando ações para a região, ao mesmo tempo em que institucionalizava a “indústria da seca”9. O que está em jogo nesse momento é a produção de um discurso que silencia e amordaça a diversidade regional em uma mesma moldura, transformando-a em figura emblemática e iconográfica dos “pedintes” e “retirantes” desvalidos dos “sertões”. Ao proceder uma análise sobre “O regionalismo nordestino”, Silveira (1984) passa a elaborar um estudo em torno do espaço regional nordestino, tendo como base as características históricas desse território, que se constituiu como o espaço mais antigo do país em termos de ocupação demográfica e econômica. A autora analisa as “elaborações ideológicas regionalistas” produtoras de uma consciência do espaço em crise. Crise que começou a ganhar força a partir da constatação do fracasso econômico-financeiro, do agravamento das secas e da urgência de recebimento de capitais, referendando a necessidade da intervenção do Estado no espaço regional. Nesse sentido, Ferreira (1993) chama atenção para o caráter político e econômico que a “indústria da seca” adquiriu, a partir das secas de 1877/1879, 1888/1889, 1903/1904. Segundo a autora, os diversos fatores que favoreceram a institucionalização das secas como problema Nacional podem ser destacados a partir de três características estruturais: 1ª a crise econômica nordestina, agravada pelas estiagens prolongadas; 2ª a organização política de um 9 Vale lembrar que a problemática regional ganha maiores contornos a partir da “Grande seca 1887” quando a decadência regional aparece como um momento decisivo para a derrota do Norte diante do Sul (ALBUQUERQUE JR., 1999). Nessa mesma direção, Neves (2000a) ressalta que, a partir desse momento “pensar em seca, portanto, não é mais pensar apenas na ausência de chuvas que causa a destruição das colheitas, mas é, prioritariamente, pensar na massa de retirantes famintos e esfarrapados a invadir as cidades na busca de alimentos e trabalho”. (p. 50) 19 Estado voltado para atender aos interesses privados de determinados segmentos da sociedade; e, 3ª a articulação política para carrear recursos para a região Nordeste. (p. 72/73) Citando o papel da Inspetoria de Obras Contra às Secas – IOCS10 – criado no ano de 1909, a autora afirma que o tratamento dado ao problema da seca, (...) sempre procurou atingir os males considerados provenientes diretamente das estiagens prolongadas – a falta d´água, o alto índice de mortalidade, a emigração, a crise econômica – através de obras de engenharia, sem levar em conta que esses males são apenas agravados com a falta de chuvas, e que a situação de pobreza e de crise existiam antes e depois dos períodos de seca. (FERREIRA; 1993; p. 127.) Ferreira (1993) afirma ainda que o IOCS serviu como promotor de “benefícios” aos proprietários de terras, principalmente no que concerne a verbas para açudagem. Os recursos da União que deveriam servir para os flagelados acabaram servindo para “reforçar” a estrutura de poder vigente nessa região. No decorrer do século XX e, particularmente, no período de 1930-1964, houve a consolidação da Política de Desenvolvimento Regional, que segundo Costa (2003) propiciou o alargamento das desigualdades regionais. Com isso: (...) o contraste entre o Centro-sul desenvolvido e o Nordeste atrasado fora se estabelecendo e forçando a política de Planejamento destinar “atenção especial” à Região. O ponto básico para a política de desenvolvimento regional era a seca. Esta se transformou na base ideológica para tal. O debate acerca da “Questão Nordeste” e especificamente da seca, no bojo do ideário do Planejamento Regional, forjaram mudanças estruturais no trato com o Nordeste. (p. 65) Instituições como o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca – DNOCS –, o Banco do Nordeste – BNB – e a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste SUDENE – patrocinaram as ações do Governo Federal na região. O DNOCS cuidava da construção de obras públicas “preventivas contra as secas”, especialmente aquelas direcionadas à construção de açudes e perfuração de poços – políticas de solução hidráulica. O BNB tinha como principal tarefa suprir as necessidades financeiras como concessão de crédito individual e apoio a empresas, ajudando no desenvolvimento da Região; e a SUDENE, no final década de 1950, planejava e coordenava o desenvolvimento industrial11. (COSTA; 2003; p. 76). 10 Transformada em IFOCS – Inspetoria Federal de Obras Contra as secas – e, posteriormente em DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. 11 Vale salientar que essas instituições foram ganhar configurações outras no decorrer dos governos, e que não é nosso interesse discutir esses processos. Para maiores esclarecimentos ver COSTA, 2003. 20 No entanto, no livro “Imaginário Social da Seca”, Gomes (1998) vai discorrer sobre a influência das representações sociais para o entendimento do fenômeno da seca. Atrelado aos problemas político-econômicos, o autor afirma que “a seca também é um problema cultural”, visto que são constituídos normas, valores, formas de entender o mundo, de entender as relações sociais, de conceber as relações de trabalho. Para esse autor, na seca se estabelece um intenso “comércio simbólico”, onde a chuva se transforma em sinônimo de abundância, e a irregularidade e/ou ausência dela significa privação, escassez. Ele enfatiza a transmissão oral de séculos de histórias sobre os horrores da seca como elemento para a cristalização das “causas sobrenaturais”, religioso-místicas para a explicação das secas, se constituindo num corpus de conhecimento muito rico em significados e significações, que passam a funcionar como resposta às angústias dos sertanejos em tempos de escassez das chuvas. Nas palavras do autor, As representações sociais da seca formam um conjunto organizado de argumentações, que satisfazem de alguma forma a necessidade de respostas dos sujeitos sociais que se deparam com o “fenômeno”, e, nesse deparar, aventuram, imaginam, representam formas explicativas com as quais interagem com outros sujeitos, e posicionam-se na sociedade seca. (GOMES; 1998; p. 84) Para o autor, as causas imaginárias mantêm estrita relação com as políticas de desenvolvimento para a região Nordeste. Ligada às concepções de seca como problema hidráulico-institucional ou político-econômico, vinculada pelas diversas instituições, a seca e suas representações assumem um papel de símbolo aglutinador de vários significados. Deus seria o “responsável” pelas desventuras provocadas pela seca; a Natureza estaria diretamente ligada ao fenômeno hidráulico-climatológico – falta de chuvas – e, por fim, a seca seria um fenômeno social, uma vez que tem ligação direta com as políticas de desenvolvimento da Região. Nesse sentido, “Deus, Natureza, Homem. Ou, religião, natureza e sociedade [seriam as] palavras sintéticas, a identificação dos fatores responsáveis pela existência da seca”. (GOMES; 1998; p. 199). As políticas públicas desenvolvidas para a região Nordeste se constituem em instrumento de reprodução das próprias condições que criam e mantêm a fragilidade das populações afetadas pela seca. Em outras palavras, as políticas assistenciais acabaram gerando imagens negativas da região e fomentando o conformismo social nas pessoas – através das frentes de emergência, ou da construção de barragens – “desenvolvendo” uma 21 constante operação de recriação e adaptação dos mecanismos de dominação e perpetuação da miséria no Nordeste. A crítica contra essa política de combate à seca é principalmente uma crítica voltada à exploração política e econômica da miséria nos períodos de seca, uma vez que essa política ganha maior ou menor importância de acordo com o “grau da calamidade” e o volume de recursos enviados para amenizar os problemas decorrentes da seca. Entretanto, a partir da década de 1980, novos atores sociais passaram a desenvolver propostas e práticas orientadas pela concepção de que a sustentabilidade implica na Convivência com o Semi-Árido. Abre-se nesse momento, um novo período de disputas na formulação de políticas públicas para esse espaço brasileiro. A criação da ASA – Articulação do Semi-Árido12 –, em 1993, foi fato significativo nessa mudança nas políticas públicas. Esta organização começou a desenvolver ações no sentido de capitanear esforços junto às instituições governamentais e à sociedade civil, com o intuito de desenvolver propostas e práticas orientadas pela concepção de sustentabilidade econômica, ambiental, política e cultural. Assim como Diniz (2002: p. 45), compreendemos que “desenvolvimento sustentável diz respeito ao desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem as suas necessidades”. Tem nas palavras eficiência econômica, justiça social, cidadania política e prudência ecológica as conotações extremamente positivas quando levamos em consideração as implicações negativas da modernização conservadora13. No atual contexto, a noção de desenvolvimento sustentável transcende a conotação original do campo da biologia e estende-se a uma multiplicidade de âmbitos de reflexão, pensamento e ação, abrangendo as dimensões: ecológica e ambiental; demográfica; cultural; social; política e institucional. Em sentido amplo, a estratégia de desenvolvimento sustentável visa a promover a harmonia entre os seres humanos e entre esses e a natureza. Para tanto, como afirma Diniz (2002), é necessário a efetiva participação dos cidadãos no processo de decisão; geração de 12 “A Articulação com o Semi-árido (ASA) é o espaço de articulação política regional da sociedade civil organizada no Semi-árido Brasileiro; (...) [e] se propõe a sensibilizar a sociedade civil, os formadores de opinião e os decisores políticos para uma ação articulada em prol do desenvolvimento sustentável, dando visibilidade às potencialidades do Semi-árido”. Carta de princípios da ASA. Disponível em: http://www.asabrasil.org.br/. Acesso em 04/07/2008 13 “A modernização conservadora corresponde à introdução do progresso técnico sem qualquer relação com os aspectos sociais do desenvolvimento (...)” (CARVALHO, 1988, P. 336). Ou seja, significa pensar a modernização sem levar em consideração a concentração da terra, da renda e do poder político que caracteriza de sobremaneira a complexa formação social e econômica da região Nordeste. 22 excedentes e conhecimentos técnicos em bases confiáveis e constantes (eco-técnicas ou tecnologias limpas/apropriadas); diminuição das diferenças causadas por um desenvolvimento desigual; preservação da base ecológica do desenvolvimento. O desenvolvimento sustentável não trata somente da redução do impacto da atividade econômica no meio ambiente, mas principalmente das conseqüências dessa relação na qualidade de vida e no bem-estar da sociedade, tanto presente quanto futura. Assim, o alcance do desenvolvimento sustentável também inclui a conquista de visibilidade política, a educação e a participação dos setores da sociedade civil nos espaços e nas políticas públicas – execução e gestão. Dessa forma, ao promover ações individuais e coletivas com os agricultores, a ASA está colocando em prática a noção de desenvolvimento sustentável, o que significa dizer que ela favorece e cria condições para a efetivação da proposta de Convivência com o SemiÁrido. Assim, conviver com o Semi-Árido na perspectiva da ASA significa (...) viver bem, com integração, tirando partido das suas potencialidades, levando em consideração o uso e o manejo da fauna e da flora, adequando estas potencialidades aos valores humanos para uma melhor qualidade de vida, buscando alternativas para melhor aproveitamento dos recursos naturais com o objetivo de desenvolver ações que melhorem a vida das famílias e que sejam capazes de enfrentar períodos de seca. (ASA apud DINIZ; 2002; p. 88) Para Diniz (2002), a ASA está centrada num contexto de mudança social que favorece o desenvolvimento das populações enquanto sujeitos políticos que rejeitam as práticas assistencialistas e clientelistas. Essas propostas baseadas na agricultura familiar, na sustentabilidade, no acesso à terra e à água de qualidade, orientadas por técnicas e experiências apropriadas à região, constitui-se em mecanismos de mudança, atraindo membros da sociedade civil e do próprio Governo14. Ele ressalta a importância do caráter político da ação desse grupo que, junto com outras instituições15, possibilitam a propagação de atividades de fortalecimento das idéias de Convivência. Silva (2006) afirma que foram sugeridas três propostas diferentes para o desenvolvimento da região Nordeste: 1ª) o combate à seca e aos seus efeitos – proposta 14 Entendemos por técnicas e/ou experiências apropriadas, as formas de produção e abastecimento que não agridem o meio ambiente e que levam em consideração o potencial do solo e segurança alimentar da população. Nesse sentido, podemos citar a criação de pequenos animais (caprinos e ovinos) e o manejo sustentado da Caatinga como uma dessas experiências. 15 Universidade Federal da Paraíba – UFPB; Universidade Federal de Campina Grande – UFCG; Comissão Pastoral da Terra – CPT/Sertão; CPT/João Pessoa; Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado da Paraíba – EMATER/PB; Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa – AS-PTA, entre outras citadas na dissertação de Diniz (2002). 23 ligada a Inspetoria de Obras Contra às Secas (IOCS) no início do século XX; 2ª) modernização conservadora da agricultura – ligada ao pensamento tecnocrata que obteve grande repercussão no período militar; e, por fim, a Convivência com o Semi-Árido – proposta ligada a Sociedade Civil do final do século XX. Historicamente, as duas primeiras propostas foram assumidas pelo Governo e combinam características como: visão fragmentada e tecnicista da realidade local que não reconhece as potencialidades, problemáticas e as alternativas de superação das secas, além de serem reveladoras da “preocupação” com as elites políticas e econômicas que exercem a dominação local. Em oposição a essas propostas, a Convivência vem se apresentando como possibilidade de desenvolvimento pautado na sustentabilidade e no reconhecimento do potencial da região semi-árida. Assim, a concepção de Convivência com o Semi-Árido parte do princípio de refutar o discurso de “Combate à seca” por entender que o mesmo faz parte de uma estratégia política das elites nordestinas que possibilitou a institucionalização de uma série de políticas assistencialistas propagadoras da “geografia da fome” e da insustentabilidade em todos os níveis16. A proposta da Convivência visa pensar a região Nordeste a partir de práticas voltadas para a melhoria da qualidade de vida da população. Isso significa, portanto, pensar a Convivência como uma (re)significação do Semi-Árido que busca (...) focar a vida nas condições sócio-ambientais dessa região, em seus limites e potencialidades, pressupondo novas formas de aprender a lidar com esse ambiente, na busca de alcançar e transformar todos os setores da vida. Portanto, não é apenas viver no Semi-Árido e supostamente aceitar as agruras da natureza, mas um viver estabelecido como a comunhão que os indivíduos mantêm com o lugar, oportunizando organizar e criar alternativas de produção a partir dos limites e possibilidades que a natureza oferece. (CARVALHO; 2004; p. 22) Assim a proposta de Convivência com o Semi-Árido se apresenta como um novo enunciado para as relações de poder empreendidas por organizações da sociedade civil, movimentos sociais e, por fim, por políticas públicas, baseadas na contextualização. Isso significa que essa nova forma de produzir, viver e de planejar o Semi-Árido, sutilmente, vem abrindo espaço para a emergência de uma nova racionalidade, redimensionando o lugar dos 16 Ao trabalhar com a categoria discurso, pedimos emprestada a concepção proposta por Foucault (1996a), onde o discurso é visto como prática instituinte. Dessa forma, afirma o autor que, como tal, os discursos “(...) devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem”. (FOUCAULT; 1996, 52-53.). Cabe lembrar que o discurso não é visto como uma prática contínua. Foucault compreende os discursos como práticas onde o saber é aplicado, valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído, numa constante correlação de forças entre saber e poder. 24 sujeitos e das imagens pensadas para a região. E esses esforços vêm sendo pontuados pelas mais diversas instituições e organizações da sociedade civil, com vistas a direcionar o olhar para o Semi-Árido, a fim de romper com a grandiosidade da lógica do combate à seca17. Desse modo, ao discutir a Convivência como um marco diferenciador nas políticas para a região, abre-se a possibilidade de pensar o Nordeste para além da esfera do “inviável”, do “subdesenvolvido”, identificado nas imagens e nos discursos definidores dessa região. Seria pensar a região a partir dos elementos “construtores” da Convivência entendida enquanto relação harmônica entre homem/natureza, enquanto potencializadores das características geográficas, da cultura sertaneja. Ou seja, seria considerar as potencialidades e demandas regionais e territoriais que implicam na valorização da cultura e dos saberes locais, de envolvimento e participação da sociedade nas definições e construções dos rumos do futuro. No entanto, cabe lembrar que a proposta da Convivência não pressupõe a anulação dos discursos construídos até então e que se tornaram instituintes da região e de seus habitantes18. E embora esteja ocorrendo esse processo de enfraquecimento dos discursos das oligarquias locais, elas sempre encontram estratégias para manter o seu poder político. Isso, no entanto, não impossibilita os efeitos da luta que esses novos atores estão empreendendo para se pensar o Semi-Árido. Resistências e reformulações que podem ser identificadas na própria luta por uma educação que contemple a realidade local – idéia propagada pela Rede Educação do Semi-Árido Brasileiro19. 2.3 As transformações das práticas sócio-culturais no contexto educacional do SemiÁrido Brasileiro. 17 Carvalho (2004) aponta alguns esforços que estão sendo empreendidos pelo poder público e ONG´s para a superação do discurso do “combate à seca”. 18 Castro (1994) discorre e compara os antigos discursos formulados pela elite nordestina e os compara com os de hoje, ressaltando que os atores que animavam esses discursos em épocas passadas são os seus descendentes com novas funções dentro da política regional. Deputados, governadores e senadores que sustentam os discursos assistenciais para garantia de seus interesses empresariais. 19 RESAB – Rede Educação do Semi-Árido brasileiro. Essa discussão será realizada em outro momento desse capítulo. 25 A proposta de Convivência com o Semi-Árido revela a necessidade de (re)elaboração de todo o discurso e todo o campo conceitual que foram montados sobre o Semi-Árido, encarado como lugar de miséria, de chão esturricado, de vegetação retorcida e de homens miseráveis, rotos e famintos20. Essa realidade deve ser tematizada, estudada e analisada a fim de extrair suas potencialidades, possibilitando a montagem de soluções sustentáveis de desenvolvimento e o reconhecimento da importância dos processos culturais de construção e (re)significação de novos referenciais de pensar/agir dos atores sociais envolvidos. Ou seja, significa pensar a noção de região, diretamente ligada às relações de poder e à produção de saber, e como tal, acompanhada de outros processos de produção de novas práticas culturais e novas relações de trabalho. Nesse sentido, deve-se problematizá-la como construção histórico-social, perpassada por práticas e discursos instituintes/instituidores do homogêneo. (Albuquerque Jr., 1999). Silva (2006) afirma que, ao valorizar a diversidade cultural, as identidades e os territórios, a Convivência com o Semi-Árido acaba se constituindo num novo paradigma que retira (...) as “culpas” atribuídas às condições naturais, e enxerga o espaço SemiÁrido com suas características próprias, seus limites e potencialidades, é o resgate de um pensamento que afirmava, a exemplo do que foi formulado por Guimarães Duque, que o desenvolvimento no Semi-Árido depende fundamentalmente de uma mudança de mentalidade em relação às suas características ambientais, e de mudança nas práticas e uso indiscriminado dos recursos naturais. [grifos nossos] (SILVA; 2006; p. 225) Assim, conviver é dotar de sentido todas as práticas e concepções inovadoras. É ampliar o alcance da contextualização de acordo com as potencialidades e necessidades, com base nas visões de mundo e intenções de futuro, articulando os saberes científicos e populares. Ao expressar essa mudança de percepção, a Convivência tenta estabelecer relações harmoniosas entre o homem e a natureza com vistas à melhoria da qualidade de vida. Isso significa (re)pensar o Semi-Árido enquanto ambiente espacial (físico-geográficoclimático), social e simbólico. Considerando toda a discussão sobre a Convivência nos é possível enxergar que essa proposta se pauta a partir do respeito à natureza; da (re)significação e reelaboração de práticas culturais; da mudança da sua população em relação as políticas de desenvolvimento da região semi-árida, e, por fim, por uma educação contextualizada. 20 Este discurso não é só utilizado para caracterizar o Semi-Árido, mas como definidor da própria região Nordeste – ver Albuquerque Jr. 1999. 26 Nessa perspectiva, o debate atual sobre a educação no Semi-Árido Brasileiro tem como parâmetro norteador a contextualização, relacionando-a à questão ambiental e ao desenvolvimento sustentável. E um dos aspectos fundamentais a ser enfatizado nesse debate é a construção de uma nova racionalidade que considere as diferentes realidades sócioambientais e as distintas trajetórias dos povos, levando em conta os valores, os princípios éticos, e o respeito ao ecossistema. Contextualizar significa, antes de tudo, levar em consideração as potencialidades sócio-culturais, econômicas e ambientais do Semi-Árido e dos sujeitos que o compõem. E a luta por uma educação contextualizada para a Convivência com o Semi-Árido, segundo Braga (2007), deve se caracterizar por três dimensões: 1) a do estar junto para, na liberdade da existência, construir identidades e compartilhar a vida; 2) a do viver comum, que é mais do que estar junto, pois implica aceitar o outro ser vivo (homem e natureza) como legítimo outro, na sua “existencialidade”, identidade e subjetividade e 3) a da contestação e da luta, da dialética da existência e da afirmação da diferença, onde buscamos o equilíbrio entre as forças opostas da vida. Educar para a convivência é trabalhar essas dimensões junto com os sujeitos do processo educativo. [Grifos do autor] (p. 35) Isso implica dizer que educar para a Convivência tem que levar em conta o desenvolvimento conjunto de práticas e processos que contribua para uma existência mais humana, no sentido de conceber uma relação equilibrada entre os seres vivos e o lugar onde vivem. É produzir um saber coletivamente, nas relações sociais – processo educativo, vida organizativa, etc. –, que passe a pensar o processo educativo, não mais ligado à escola, mas que estabeleça vínculo com outros aspectos que compõem a vida em comunidade, “isto porque o processo educativo contextualizado implica uma metodologia de intervenção social que supõe um modo de conceber, aprender e (re)significar a realidade para nela atuar, visando a transformá-la.”. [Grifo do autor] (BRAGA; 2007; p. 42) Para isso, é importante levar em consideração alguns elementos fundamentais: conhecimento pertinente da realidade21 – que implica mudar a visão sobre a Região; projeto e intervenção político-pedagógico – que considerem todos os sujeitos do processo educativo; além de ampliar o entendimento sobre a educação – compreendendo-a como um processo de construção e reconstrução de saberes. 21 Segundo Edgar Morin (2007), o conhecimento pertinente é aquele que fundamenta o espírito humano, pensando o contexto e o complexo das relações, das inter-relações e das implicações mútuas na realidade local/global. “É necessário desenvolver a aptidão natural do espírito humano para situar todas essas informações em um contexto e um conjunto. É preciso ensinar os métodos que permitam estabelecer as relações mútuas e as influências recíprocas entre as partes e o todo em um mundo complexo” (p.14) 27 É preciso que a educação para a Convivência com o Semi-Árido se apresente como contraponto à negligência histórica que sempre foi dispensada a esse espaço. É preciso que se estabeleçam relações saudáveis e equilibradas entre as pessoas e o meio, otimizando as condições de vida dessa população, dando ouvidos não só às questões objetivas (o meio ambiente e os ecossistemas), mas também às questões subjetivas (a cultura desse povo). É transpor as barreiras do mundo natural “ameaçador” da sociedade homogeneizada pelo discurso do “coitadinho” que ordenou, demarcou e orientou as leituras sobre a realidade do Semi-Árido, e construir outras possibilidades de ver e dizer a região. É buscar compreender que não existe um Nordeste, mas sim, nordestes, “(...) e que essa nova conformação, o Semi-Árido, não pode mais ficar enquanto reduto da pobreza nordestina e brasileira. Ele é potencial, é competitivo, solidário e possui antes de tudo uma identidade cultural comum que o faz único”. (CARVALHO; 2004; p. 21) Essa nova compreensão do Semi-Árido pensada a partir da lógica da Convivência, passa a ser elaborada em uma nova dimensão que perpassa o território das possibilidades de práticas e de idéias de desenvolvimento sustentável. Vivências personificadas nas experiências da agroecologia, das cisternas para a captação da água da chuva, das barragens subterrâneas, da criação de caprinos e ovinos, da apicultura, dos bancos de sementes comunitárias, das mandallas, todas assentadas na agricultura familiar e na busca da superação do dramático quadro de insegurança alimentar e nutricional. É interessante notar que “a ‘Convivência com o Semi-Árido’ vem se caracterizando como uma perspectiva cultural orientadora de processos emancipatórios, de expansão das capacidades criativas e criadoras da população sertaneja”. (SILVA; 2006; p. 271). Essa crença no potencial criativo e criador da população está diretamente ligada a uma nova compreensão de educação que passa a lidar com outros saberes. Saberes reconhecidos e valorizados que estejam longe do julgo do preconceito e das velhas oposições que perpassam os caminhos da educação formal. A convocação para que a escola dê sua contribuição na dinamização da proposta da Convivência começa a ganhar outros contornos, e se processa no próprio território, vinculando-se aos estudos e pesquisas22, com o intuito de fortalecer técnica, científica e academicamente essa (re)conceptualização do Semi-Árido enquanto instrumento de mudança da realidade. 22 O número de trabalhos – dissertações de mestrado e teses de doutorado – que contemplam a proposta da Convivência com o Semi-árido vem aumentando significativamente nos últimos anos, dando ênfase a mudança paradigmática do discurso do combate à seca para a Convivência. Temas como a sustentabilidade, tecnologias apropriadas e a educação contextualizada são os mais recorrentes. 28 Segundo Fortunato, Moreira Neto e Sá (2007/2008), o diálogo entre os diversos sujeitos vem possibilitando o desenvolvimento de políticas públicas para o Semi-Árido, emanadas de uma nova ética e de uma nova mentalidade, que pensam o Semi-Árido Brasileiro como um espaço de particularidades naturais e sócio-culturais. Políticas que passam a ser desenvolvidas a partir de parcerias estabelecidas entre o poder público e os setores da sociedade civil23. Situado nesse contexto, a Rede de Educação do Semi-Árido Brasileiro – RESAB –, criada em 30 de outubro de 2000, vem congregando educadores e instituições (governamentais e não-governamentais) que atuam na área da educação no Semi-Árido. Tem por objetivo a participação ativa da sociedade civil na construção e implementação de políticas públicas de educação inclusivas e contextualizadas. Segundo Martins (2006), os eventos que propiciaram a criação da RESAB podem ser situados a partir de duas experiências específicas: uma da ONG CAATINGA, no município de Ouricuri – BA e outra desenvolvida pelo IRPAA – Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – no município de Curaçá – BA.24. Essas experiências propiciaram a articulação de idéias para o desenvolvimento da educação contextualizada defendida pela RESAB. Nesse sentido, o principal desafio é vincular os currículos e as metodologias às formas de vida e às problemáticas específicas da região, com o intuito de valorizar os saberes populares, e consolidar uma proposta político-pedagógica de educação para o Semi-Árido Brasileiro, através do diálogo dos diferentes sujeitos e de suas experiências, com vistas à melhoria da qualidade do ensino e do sistema educacional público. De acordo com esse entendimento, a RESAB luta por uma escola pública, gratuita e de qualidade no Semi-Árido e no Brasil, norteada pelos princípios da sustentabilidade ambiental, social, econômica e cultural; pelo o respeito à pluralidade e à diversidade de culturas, credos, raças e idéias; pela descentralização, transparência e gestão compartilhada da educação; pela valorização do magistério e pelo favorecimento das condições de aperfeiçoamento e de formação continuada e permanente dos educadores, conforme explicitado no Folder da RESAB, a seguir: 23 No relatório PIBIC os autores fazem uma discussão sobre as principais políticas públicas que priorizam o Semi-Árido, levando em consideração o acesso, a elaboração e as ações promovidas, no intuito de compreender com elas contribuem efetivamente para a Convivência e a sustentabilidade nessa região. Ver FORTUNATO; MOREIRA NETO e SÁ. (2007/2008). 24 Ver SOUZA, I. P. F e REIS, E. S. (2003). 29 O Semi-Árido tem sido apresentado na escola como um universo sombrio, um ambiente descorado, com sua Caatinga cinzenta e “morta”; umbus sem sua seiva, aziagos e estéries. Ou seja, tem desenvolvido um ensino desenraizado das aventuras e experiências da vivência, do fazer e ser nesse ambiente. A proposta da Educação para a Convivência com o Semi-Árido deseja conduzir para os processos formais como nos informais uma prática educativa, fecunda, com 30 valores, costumes, idéias e sentimentos objetivados através da pluralidade das manifestações culturais que constituem a essência do povo do SAB. E este desperte a consciência de autenticidade tornando-se capaz de se relacionar com o mundo em sua amplitude e pluralidade a partir do seu próprio espaço. Desta forma, a concepção não é reducionista e etnocêntrica de educação e cultura, pois não intenciona converter o Semi-Árido num mundo isolado, um espaço geocultural específico/regional. O princípio da educação para a Convivência é universal, ela pode ser para a Amazônia ou outro espaço geográfico. O que se delimita é a especificidade, não as fronteiras territoriais. Seu campo pedagógico não se limita ao meio rural ou tampouco é urbanocêntrico. Visa inserir tudo o que se considera e se representa socialmente no Semi-Árido brasileiro. A proposta tem como meta nortear e preparar os sujeitos da ação educativa para a compreensão dos fenômenos naturais do ambiente semi-árido, com vistas ao aproveitamento das potencialidades e da construção das novas possibilidades diante das problemáticas encontradas. Propõe que a escola afirme o contexto histórico do Semi-Árido e valorize suas raízes. Concebe a escola enquanto lugar com cor e sabor, onde as opiniões e as idéias mais avançadas e mais simples possam buscar o norteamento da compreensão do mundo, das pessoas e das coisas, sendo que nesse espaço todos são sujeitos do conhecimento e da aprendizagem. A Educação pra a Convivência com o Semi-Árido quer fazer valer um modelo de currículo, formação de professores, gestão educacional e matérias didático-pedagógicos, entre outros, que una corpo e alma, paixão e razão, instaure a coexistência das dimensões éticas e estética, eduque para a totalidade da existência humana, numa consciência da cidadania com amplitude universal. FONTE: Folder explicativo distribuído pela RESAB S/d. Entre as principais iniciativas que estão sendo pensadas e viabilizadas pela RESAB, podemos situar a sistematização de publicações que possibilitam a circulação dos referenciais teóricos da discussão sobre Convivência, currículo, contextualização, material didático, etc. Além disso, no ano de 2005, a Rede produziu o Livro didático “Conhecendo o Semi-Árido25”, que foi adotado por algumas escolas situadas no Semi-Árido. Entre as escolas contempladas com essa experiência podemos citar a Escola Municipal de Ensino 25 O livro didático da RESAB será analisado no 2º capítulo dessa dissertação. 31 Fundamental Lili Queiroga, localizada no município de Aparecida – PB, mais precisamente, no Assentamento Acauã, objeto de nosso trabalho. Durante o ano de 2003 foi constituído o Grupo Gestor da RESAB26, na Paraíba, com a colaboração de várias secretarias municipais de educação, de entidades que lutam pela melhoria da educação e de alguns setores da sociedade civil organizada27. Dinamizou-se, nesse momento, o debate sobre a educação contextualizada. E como desdobramentos dessa articulação, foram realizados, no ano de 2004, Pré-conferências de Educação para Convivência com o Semi-Árido, nas cidades de Cajazeiras, Patos e Campina Grande, ampliando e aprofundando o debate sobre a educação escolar e a Convivência com o SemiÁrido. As discussões desenvolvidas nessas Pré-conferências serviram de base para a Iª Conferência Estadual de Educação para a Convivência com o Semi-Árido, realizada na cidade de Patos – PB no período de 05 e 06 de junho de 2004. Nessa Conferência, foram debatidos os seguintes temas: currículo contextualizado e material didático; formação de professores/as; gestão educacional e educação do campo. Durante a Conferência Estadual, foram estabelecidos os representantes paraibanos encarregados de encaminhar as propostas para a Conferência Nacional. Porém, antes da Conferência Nacional, algumas entidades e instituições que participaram do evento se articularam e criaram a Rede Educação do Alto Sertão. Essa Rede surgiu como resultado do II Seminário sobre Educação do Campo28, realizado em Cajazeiras – PB, nos dias 09 e 10 de abril de 2005, inaugurando assim uma nova etapa na trajetória de luta da população sertaneja. O Seminário refletiu sobre a Convivência com o Semi-Árido no Alto Sertão Paraibano. Teve como ponto central a discussão em torno da educação do campo, de qualidade, que respeite as especificidades e diversidades dos sujeitos e que evidencie as potencialidades e possibilidades que o campo oferece. E, como principais objetivos, a Rede 26 Cabe lembrar que a RESAB tem representantes nos 11 Estados da Federação que englobam o Semi-Árido Brasileiro: Alagoas; Bahia; Ceará; Espírito Santo; Maranhão; Minas Gerais; Paraíba; Pernambuco; Piauí; Rio Grande do Norte e Sergipe. Todas guardam as suas especificidades de articulações com outras instituições. 27 Segundo Martins (2006), as discussões que estão sendo realizadas pelo Grupo Gestor da RESAB na Paraíba tem participação da Comissão Pastoral da Terra (CPT/Sertão), das Secretarias de Educação de Cajazeiras e de Jericó, da Cáritas de Patos, e a Universidade Federal de Campina Grande, campi de Cajazeiras, Patos e Campina Grande. Além disso, contam com a colaboração da Central das Associações dos Assentamentos do Alto Sertão Paraibano (CAAASP) e da ASA-PB e ASA-Brasil. 28 O I Seminário Educação Básica do Campo no Alto Sertão Paraibano aconteceu na cidade de Cajazeiras nos dias 29 e 30 de julho de 2003 e configurou a primeira tentativa de construção de saberes para a Convivência com o Semi-Árido Brasileiro. Já o II Seminário teve como marco principal a criação da Rede Educação do Alto Sertão, tendo como preocupação oferecer subsídios para discussões sobre a Convivência. 32 do Alto Sertão destaca: a socialização de informações sobre a educação do campo; a realização de cursos de formação para a Convivência com o Semi-Árido; e o acompanhamento dos projetos de educação desenvolvidos nos assentamentos e acampamentos do Alto Sertão Paraibano. Nesse sentido, a Rede do Alto Sertão levanta a bandeira de uma nova leitura do papel das escolas dos assentamentos como centros motivadores e dinamizadores do diálogo entre o conhecimento científico e o saber produzido no cotidiano dos assentamentos – cultura, concepções de mundo, seu jeito de produzir a existência – como “redimensionador” do papel da educação desenvolvida nessas áreas. De acordo com as discussões sobre a contextualização da educação no Semi-Árido, os representantes do II Seminário indicaram alguns encaminhamentos imprescindíveis para a elaboração das políticas públicas de educação contextualizada, destacando-se: → A valorização e o reconhecimento dos sujeitos sociais como fontes de saber que podem contribuir para tornar o trabalho contextualizado mais significativo; → A construção de relações consistentes entre a escola e a família, mediados pelo projeto de vida de Convivência com o Semi-Árido; → A interação entre os/as professores/as e os/as trabalhadores/as que experimentam ações de Convivência; → A promoção de ações pedagógicas que permitam ao educador construir conhecimentos científicos sobre o SAB, em todos os seus múltiplos aspectos (históricos, geográficos, culturais, ambientais, etc.); → A participação de qualidade dos movimentos sociais e das instâncias governamentais nas relações entre as escolas do campo e a Convivência com o Semi-Árido, tendo como metas a sustentabilidade e a cidadania. Fonte: RELATÓRIO CPT/Sertão, 2005, s/p. Além disso, a vivência de relações democráticas e isonômicas entre a sociedade civil e as várias instâncias de poder público é apontada como o principal encaminhamento a ser perseguido no que se refere à gestão educacional. Historicamente, a escola e o livro didático têm ignorado a realidade local – o cotidiano, o jeito de viver, de produzir a vida, as relações/interações com a natureza, com a cultura, a visão de mundo e as formas de relação campo/cidade/campo – veiculando uma visão urbanista da sociedade encorajando o abandono do campo e criando expectativa em relação aos “encantos da cidade” 33 Como aglutinadora das propostas encaminhadas nas Pré-Conferências, Conferências e Seminários, a I Conferência Nacional de Educação para a Convivência com o Semi-Árido – I CONESA –, realizada na cidade de Juazeiro – BA entre os dias 17 e 20 de maio de 2006, discutiu: a gestão da educação; o currículo contextualizado; o material didático para o SemiÁrido; a formação de professores/as; o protagonismo infanto-juvenil e a educação gênero, etnia e raça. Entre os principais compromissos assumidos pelos representantes dos governos estaduais e representantes da sociedade civil estão: o fortalecimento dos grupos gestores estaduais da RESAB nos 11 estados; o fortalecimento da estrutura de gestão da RESAB, garantindo a permanente articulação das instituições pertencentes à Rede; a manutenção da luta permanente por políticas públicas integradas; a luta pela garantia da inclusão do livro didático “Conhecendo o Semi-Árido” no programa nacional do livro didático do MEC; intensificar a articulação junto as universidades públicas; fortalecer a parceria junto às entidades integrantes da ASA, etc. Nessa mesma Conferência, segundo a declaração final do I CONESA, foram instituídas as Diretrizes da Educação para a Convivência com o Semi-Árido Brasileiro, que devem servir de base para a desconstrução do imaginário que apresenta um Semi-Árido inviável, hostil, cuja “única” saída seriam o êxodo e a emigração. (ver Anexo I) Segundo Martins (2004), a grande importância desse movimento em prol da educação para a Convivência com o Semi-Árido reside na necessidade de estabelecer a compreensão de que a contextualização da escola passa por todo um processo de (re)elaboração e, (...) será sempre tecer o movimento de uma rede que concentre o esforço em soerguer as questões “locais” e outras tantas questões silenciadas na narrativa oficial, ao status de “questões pertinentes” não por serem elas “locais” ou “marginalizadas”, mas por serem elas “pertinentes” e por representarem a devolução da “voz” aos que a tiveram usurpada, roubada, negada historicamente. (p. 34) Nesta perspectiva, deve-se privilegiar o potencial investigativo da realidade na construção de novos conhecimentos e problematizar a complexidade do mundo atual, relacionando e articulando conhecimentos que levem a novas aprendizagens e criando diversas possibilidades de aprender/ensinar e de saber/pensar, comprometidas com o fazer pedagógico e com as freqüentes mudanças na instituição do conhecimento. Essa postura proporcionaria ao aluno passar de mero espectador à protagonista, estabelecendo uma relação de reciprocidade entre o seu próprio mundo e o conhecimento (conteúdo). 34 Essas preocupações não se limitam apenas à adoção de políticas públicas de educação promotoras de equidade entre as escolas do campo ou da cidade. Passam pela construção de currículos e pela elaboração/adoção de livros didáticos que priorizem a idéia de que o fazer pedagógico deve envolver a interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade e a contextualização, assegurando a todos o direito efetivo ao conhecimento historicamente construído e aos recursos tecnológicos disponíveis na sociedade. Contextualizar os currículos e os livros didáticos, mudando a visão de uma educação meramente conceitual, teórica, abstrata e especulativa, para uma educação que contemple conhecimentos pertinentes e integre saberes, significa romper com uma indústria que efetivamente coloniza o dia-a-dia das nossas escolas, através, principalmente, dos livros didáticos, que nos chegam prontos e cheios de uma cultura inútil, que contradiz, inclusive, as próprias propostas oficiais dos Parâmetros Curriculares Nacionais, pois nem os temas transversais estão sendo abordados no sentido de abrir para a imensa diversidade brasileira. (RESAB; 2004; s/p) Nesse sentido, faz-se mister (re)significar a educação a fim de integrar/entrelaçar, sem bipolaridades, o local/global, permitindo ao educando o reconhecimento e a valorização das diversas culturas e das múltiplas vivências que compõem a realidade, investindo na produção de novos significados, novos saberes e nova cultura, que englobe toda a tessitura cotidiana das relações sócio-culturais que perpassam a sociedade e os ambientes educativos. A partir dessa perspectiva, compreendemos que a escola deve ultrapassar os limites de uma educação meramente conceitual voltada para questões práticas de aprender a ler, escrever e contar. Ela também deve estabelecer vínculos com a realidade onde está inserida, atendendo todas as dimensões que constituem o ambiente educativo dos atores sociais envolvidos. Tal iniciativa aplicada ao ensino escolar possibilita ao aluno pensar historicamente e se posicionar perante a realidade, tanto como agente histórico dentro das condições em que vive, como produtor de seu próprio conhecimento, e mais que isso, implica a formação de cidadãos conscientes, ativos e participativos. Nas palavras de Neves, “(...) ensinar é produzir e promover a produção do conhecimento. O conhecimento, em todas as suas modalidades (...). Sem o conhecimento a cidadania é discurso vazio. Não se sustenta; não constrói uma sociedade democrática e não liberta o indivíduo” (NEVES; 2000b; p. 35). Nesse sentido, ao estudar a relação entre a (re)significação da educação a partir dessa nova racionalidade – Convivência com o Semi-Árido – e o ensino de História na escola do Assentamento Acauã, compreendemos que essa relação se apresenta como importante 35 elemento de entendimento da realidade, já que possibilita articular os diversos elementos que compõem a vida sócio-cultural do povo brasileiro. Devo lembrar que o foco da nossa análise é o papel do ensino de história, mas esse debate deve ser adotado por todas as disciplinas, visando essa nova concepção de SemiÁrido como norteadora da práxis educativa. Dessa forma, significa entender a sociedade enquanto um todo constituído por diversas partes que envolvem sujeitos e construções éticas, de cidadania, democracia, valores, relações de poder, relações de gênero, conceitos e preconceitos, direitos e deveres, etc. No entanto, é necessária uma prática de ensino de História rica em conteúdos socialmente pertinentes e que mantenha uma relação direta de (re)conhecimento entre aluno e a própria disciplina, compreendendo o passado e com ele o nosso presente. Trata-se de caracterizar o ensino de História como processo evidenciado na multiplicidade do real, sem reduzi-lo a abstrações conceituais. É sem dúvida um grande desafio para a escola e os sujeitos envolvidos nesse processo de ensino/aprendizagem, uma vez que implica em transformar o “acúmulo” de saberes em instrumentos das visibilidades e de dizibilidades que o Nordeste. 3. A LDB, OS PCN´S E A EDUCAÇÃO NO SEMI-ÁRIDO BRASILEIRO O intenso e rico movimento de elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB – e dos Parâmetros Curriculares Nacionais que ocorreu a partir da década de 1990, e no qual o ensino de história foi uma das áreas mais efervescentes e polêmicas, será discutido nesse capítulo. Atrelado a isso, vamos discutir a proposta de educação contextualizada e o livro didático “Conhecendo o Semi-Árido I e II” elaborado pela RESAB. No entanto, para entender essa discussão, se faz necessária uma breve exposição das matrizes do pensamento educacional brasileiro. Nesse sentido, trabalharemos com Bomeny (2008); Fonseca (2003); Ribeiro (2004); Pereira (2000) e Bittencourt (1998) 36 3.1 Breve histórico sobre as propostas da educação antes da LDB de 1996. A história do ensino deve ser entendida de forma plural, uma vez que ela estabelece relações com os aspectos econômicos, políticos e ideológicos que perpassam o conjunto da sociedade. Nesse sentido, ao analisar o Governo de Juscelino Kubitschek, Helena Bomeny (2008) tece uma crítica ao lugar secundário que a educação ocupou no “tão grandioso” governo JK. Os investimentos na educação, segundo a autora, contemplavam a formação de pessoal técnico sob orientação da perspectiva desenvolvimentista – traço evidenciado desde a década de 1930 – sem se quer falar em ensino básico. Isso se explicaria porque, de um ponto de vista mais específico, a implementação e a modernização administrativa do país exigiam a formação especializada. Entretanto, essa situação gerou graves desentendimentos com alguns setores da intelectualidade do país. O manifesto de educadores intitulado “Mais uma vez convocados” referendou a necessidade de retomar as discussões iniciadas na década de 1930, quando da publicação do “Manifesto dos Pioneiros na Educação Nova”. Estava em jogo, nesse momento – final da década de 1950 e início da década 1960 –, a reafirmação dos ideários da Educação Nova e a necessidade de transformação do ensino. Composta por intelectuais como Anísio Teixeira, Roquette Pinto, Paulo Freire, Cecília Meireles, Delgado de Carvalho, entre outros, o movimento da Escola Nova tornou-se marco inaugural de um projeto de renovação da educação brasileira. Denunciava, entre outras coisas, a desorganização do aparelho educacional do Estado, e defendia um plano de educação que oferecesse escola pública, laica, obrigatória e gratuita para toda a população brasileira. Com a Lei de Diretriz e Bases da Educação Nacional – LDBEN – de 1961, os grupos mais progressistas viram frustradas as suas expectativas de avanço na legislação educacional, no sentido de ampliar o atendimento das necessidades das classes populares. Publicada em 1961, a LDBEN tinha como principais características: o aumento da autonomia dos órgãos estaduais, diminuindo a centralização do poder no Ministério da Educação e Cultura – MEC; além de referendar a necessidade da igualdade de tratamento entre escolas particulares e públicas. 37 A justificativa para tanto, foi que O país, na época, não tinha recursos para estender a rede oficial de ensino, que marginalizava quase 50% da população em idade escolar. Deliberou-se pela expansão da rede privada, mas a extensão dos benefícios da educação não alcançou o conjunto da população carente. (BOMENY; 2008; s/p) Foi nesse contexto que surgiu o movimento em torno da educação popular, destacando-se o Movimento de Educação de Base (MEB) e o Movimento Paulo Freire de Educação de Adultos. Em linhas gerais, esses movimentos tinham como objetivos contribuir para a promoção integral e humana de jovens e adultos, através da educação na perspectiva de formação das camadas populares para a cidadania, visando trilhar os caminhos de superação da exclusão social. Nesse sentido, buscavam incentivar a participação popular, a conscientização e vivência da cidadania e participação social; a implementação de políticas públicas voltadas para as necessidades das populações mais pobres e excluídas. Bomeny (2008) afirma ainda que esse período que antecedeu o Regime Militar – de 1946 a princípio de 1964 – talvez tenha sido o mais fértil da história da educação brasileira. Pensava-se, nesse momento, em erradicar definitivamente o analfabetismo, através de um programa nacional, levando-se em conta as diferenças sociais e culturais de cada região29. Historicamente, as análises da política educacional relativas ao pós 1964 têm como base as estratégias de desvalorização do ensino. Entre as principais críticas relacionadas a essas propostas encontra-se: o controle técnico e burocrático no interior das escolas; a perda do controle do processo de ensino e a subordinação dos professores aos supervisores e orientadores pedagógicos; a massificação e a imposição do material didático (livro didático); a implantação das licenciaturas curtas, etc. Fonseca (2003) afirma que houve nesse período uma gradativa “descaracterização” das disciplinas de História e Geografia nos níveis de 1° e 2° graus, culminando com a substituição destas por disciplinas como Educação Moral e Cívica – EMC –, Organização Social e Política do Brasil – OSPB – e Estudos Sociais (nas quatro séries iniciais). Além da diminuição drástica da carga horária, houve a substituição dos conceitos de moral, liberdade e democracia por conceitos de civismo, subserviência e patriotismo. Em outras palavras, instituiu-se o culto de datas e heróis nacionais, restringindo a prática educativa aos “interesses nacionais” do Estado autoritário. Para além dessas estratégias de manipulação ou mesmo de “desvalorização” da educação, esse período se caracterizou pela ampliação da produção do conhecimento 29 Atualmente as iniciativas dos movimentos por uma educação popular e cidadã serviram/servem de base para a educação desenvolvida pelo Movimento dos trabalhadores Sem-terra – MST. 38 histórico, e das formas de pensar a educação como um todo. Foi a partir dos anos 1970 que a produção historiográfica brasileira passou a sofrer influência direta de historiadores como E. P. Thompson, Eric Hobsbawm, Chistopher Hill e demais historiadores da chamada 3ª geração do Annales, mudando significativamente o desenvolvimento da historiografia brasileira, além de favorecer a expansão e consolidação da profissionalização do historiador ao longo dos anos 1970, e principalmente nos anos 1980. De acordo com Ribeiro (2004): Essas novas abordagens historiográficas presentes no universo dos historiadores brasileiros no final dos anos 1970 em diante têm conduzido à diferentes contestações da chamada (rotulada) ‘história tradicional’. Suas vertentes historiográficas de apoio (positivismo, estruturalismo, marxismo ortodoxo e historicismo), constituidoras de macrobjetos, estruturas ou modos de produção, nesse momento, foram colocadas sob suspeição. A apresentação do processo histórico como uma seriação de acontecimentos num eixo espaço-temporal europocêntrico, seguindo um processo evolutivo e seqüência de etapas que cumpriam uma trajetória histórica, foi acusada como redutora da capacidade do professor e do aluno, como sujeitos comuns, de sentir parte integrante e agente de uma história que desconsiderava sua violência, e era apresentada como uma verdade, um produto pronto e acabado. (p. 9) Esse contexto proporcionou a alteração da situação educacional brasileira ao favorecer, ainda no final dos anos 1970, o ambiente propício para que se processasse uma revisão urgente nas propostas de ensino de História e Geografia vinculadas pelo Governo Militar. Exigências essas que partiram das pressões dos professores por meio de suas organizações – Associação Nacional dos Professores de História –ANPUH – e a Associação dos Geógrafos do Brasil –AGB30. Foi na década de 1970 que a desqualificação dos professores teve seu auge. Para Monteiro (2007), a principal preocupação nesse momento era formar professores dotados de competência técnica capaz de transmitir conhecimento – teacher-proof currículum. Ou seja, buscava-se capacitar e dotar os professores dos componentes científico-culturais necessários para assegurar o conhecimento do conteúdo a ensinar, para que esses atuassem eficazmente na sala de aula. Esse momento se caracterizou pela oposição entre ensino e pesquisa implicando a separação entre produção e socialização do conhecimento. 30 As associações são criadas nesse contexto. No entanto, dentro delas há projetos distintos, uma vez que não dá pra pensar em uma unidade absoluta dentro de instituições criadas com o intuito de contestar um status quo. As disciplinas de OSPB, EMC e Estudo Sociais não podem ser colocadas como “um mal”, são fruto de um momento histórico e atendiam a expectativas e projetos de mundo e de sociedade. É em meio a um processo de extrema luta, de conflitos e de confrontos (intelectuais e físicos) que essas mudanças vão se processando. 39 Já na década de 1980, o debate que se travou foi com relação à formação do educador. A compreensão da competência técnica como mediação para o compromisso político que o educador deveria aliar na sua prática cotidiana tornou-se preponderante. “A figura do educador dos anos 80 surge, então, em oposição ao especialista de conteúdo, ao facilitador de aprendizagem, ao organizador das condições de ensino-aprendizagem, ou ao técnico da educação dos anos 70”. (PEREIRA; 2000; p. 28) Na virada da década de 1980 para a década de 1990, as discussões com relação à formação do professor privilegiaram a concepção do professor investigador que pensa na ação, que deveria ser formado “com o objetivo de articular teoria e prática pedagógica, pesquisa e ensino, reflexão e ação didática”. (PEREIRA; 2000; p. 44) Ao longo dos anos 1980, o ensino de História que estava mais voltado aos conteúdos de Estudos Sociais, OSPB e EMC, fora invadido por “conteúdos de história”. No entanto, só na década de 1990, essas disciplinas são extintas e a História passou a ser tratada como disciplina autônoma nas séries iniciais e teve sua carga horária ampliada no ensino médio, sendo (re)valorizada como campo de saber fundamental para a formação do pensamento dos cidadãos. É também nesse momento que se evidencia a aproximação entre a universidade e as escolas de ensino fundamental e médio, uma vez que a ANPUH, por exemplo, passa a contar com a participação de pesquisadores e/ou docentes universitários e os professores de escola de 1° e 2° graus, ocasionando uma diminuição significativa da distância entre esses dois espaços. Entre as principais contribuições desse encontro entre pesquisadores e professores de 1° e 2° graus estão as críticas relacionadas ao tempo histórico, e suas concepções de “linearidade”, “progresso”, noções de “decadência” e “evolução”, “ruptura” e “permanência”. Questões essas que encontraram ecos no momento de construção e discussão das propostas curriculares nos Estados brasileiros processados entre os anos de 1985/1995. (BITTENCOURT; 1998.) 3.2 A LDB, educação do campo e os PCN´S Os impactos sociais evidenciados no período da redemocratização da sociedade e as transformações ocorridas no campo – organização do Movimento dos Trabalhadores Sem- 40 Terra –, a partir dos anos 1980, influenciaram decisivamente as diretrizes e bases da oferta e do funcionamento da educação escolar. Partindo disso, o processo de construção social da Lei de Diretrizes e Bases (1996) – LDB –, dos Parâmetros Curriculares Nacionais (l997) – PCN´S – e demais resoluções que normatizam a educação brasileira refletem os diferentes discursos, não sendo possível analisá-los com uma idéia de poder central e único que determina as maneiras de agir e pensar o processo educacional. A LDB de 1996 quebra com a concepção de educação básica predominante no período anterior à redemocratização da sociedade. Tornou-se dominante, nesse momento, a proposta de uma educação adaptável “aos especiais”, “aos diferentes”, a exemplo de assentados, trabalhadores rurais, indígenas, meninos de rua, portadores de necessidades especiais e outros. Passou-se a buscar uma educação escolar que leve em conta às peculiaridades dos educandos; desenvolvendo um tratamento de acordo com suas especificidades sócio-culturais. Dessa forma pode-se reconhecer que os mecanismos normatizadores da educação se constituíram enquanto “campo de batalha” de diferentes grupos sociais, referendando a necessidade de levantar questionamentos sobre as propostas apresentadas na LDB e nos PCN’S e sua efetiva realização no cotidiano das escolas. O que poderemos verificar e será melhor discutido é a existência de um hiato entre o que a lei propõe e como ela se efetiva. Quando participamos do projeto “Políticas Públicas de Educação e relações de poder em assentamentos rurais”31, foi possível perceber, analisando a LDB – 1996 –, que a compreensão do mundo rural enquanto espaço singular, diferenciado e, ao mesmo tempo, integrado no conjunto da sociedade, foram sedimentos para a elaboração do Artigo 28º, que estabelece: Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação as peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I - conteúdos curriculares e metodológicos apropriados às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e as condições climáticas; III - adequação a natureza do trabalho na zona rural. Os avanços da legislação atual podem ser reconhecidos naquilo que ela defende em relação à aceitação da diversidade sócio-cultural e no direito à igualdade e à diferença. Abrem-se assim possibilidades para que se estabeleçam diretrizes para a educação do campo 31 Nesse sentido, ver FARIAS, MOREIRA NETO e FORTUNATO (2004/2005), quando analisam a relevância da LDB no processo de ensino, e a sua interação com a educação do campo. 41 sem o tradicional recurso à lógica da ruptura com um modelo ou projeto global de Educação Nacional. (FARIAS, MOREIRA NETO e FORTUNATO; 2004/2005) O Artigo 26º da LBD parece resumir esse aspecto, já que afirma que os currículos do ensino fundamental e médio devem resguardar uma base Nacional comum, sendo complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela32. No entanto, os pressupostos de uma educação do campo devem considerar, em primeiro lugar, a identificação de um modo próprio de vida que podem ser harmoniosos com a compreensão do que é rural e do que é urbano sem perder de vista o Nacional. Em outras palavras, é necessária a integração de espaços sociais diversos. E em segundo lugar, as políticas públicas de educação, seja no âmbito Nacional, Estadual ou Municipal, devem tratar a educação do campo como parte essencial e indissociável de uma política Nacional de educação, que assegure o direito à mesma como pressuposto para a formação plena da cidadania33. A situação educacional vivenciada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra – MST –, por exemplo, passa a evidenciar a preocupação com a formação de propostas pedagógicas que envolvam aspectos políticos, culturais e sociais que perpassam o cotidiano desses sujeitos históricos. Para Caldart (2004), a formação dos Sem-Terra “não cabe na escola”. Essa afirmação referenda a necessidade de vincular toda a história de vida da comunidade que participa do movimento, incluindo a busca pela cidadania, dignidade, respeito mútuo, a luta pela reforma agrária e, sobretudo, pela educação. A escolarização dos trabalhadores do campo deve ter como prioridade a inclusão, considerando as suas especificidades e potencialidades. Ao pensar a educação a partir desse pressuposto, o MST chama para si a tarefa de construir uma proposta pedagógica que tenha afinidade e seja contextualizada com a realidade dos trabalhadores Sem-Terra. Uma realidade que está ancorada em uma educação que tenha como princípio norteador a luta por melhores condições de vida. 32 No § 4º do Art. 26 da LDB, vejamos o que foi dito sobre o ensino de História: “O ensino de História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia” 33Ao discutir a Educação do campo, temos em mente que ela se constitui em peça chave para a nossa dissertação, porque estamos analisando o ensino de História que se processa em uma escola de assentamento rural. Além disso, foi possível perceber que as discussões sobre Convivência e Educação Contextualizada englobam a realidade do campo. 42 Nesse sentido, Paulo Freire (1997; 1983) pode ser considerado o pedagogo que abriu o caminho para a incorporação desse diálogo, à medida que construiu toda sua reflexão em torno da “produção” do ser humano como sujeito capaz de transformar as condições sociais a partir da luta pela sua libertação. A Iª Conferência Nacional: por uma Educação Básica do Campo; a sistematização das experiências dos Movimentos Sociais – por exemplo, o setor de educação do MST –; as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das Escolas do Campo, são exemplos das transformações que se processaram no âmbito da educação do campo. Contribuições importantes para que esta fosse incluída no contexto da educação Nacional proporcionando o envolvimento com a construção de um novo projeto de desenvolvimento da sociedade brasileira. Essas transformações possibilitaram a abertura das questões da educação para outros setores da sociedade, além de ressaltar a importância da elaboração e execução de políticas públicas para a educação do campo. Com a institucionalização das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo em 2001 (Parecer 36/2001 CNE/CEB), foi definida, entre outras coisas, a identidade das escolas do campo; a necessidade do diálogo entre a sociedade civil organizada, movimentos sociais e o poder público; e, a articulação entre educação e a realidade (Ver anexo 2 com a resolução final do CNE/CEB de 2002). Embora referências a aspectos como flexibilização do calendário, incentivos financeiros (complementação da remuneração para os professores que ensinam na zona rural), atendimento às especificidades econômicas, sociais e culturais, apareçam nas leis, de fato não são efetivamente observadas como prática corriqueira na elaboração e execução das políticas públicas de educação. O Plano Nacional de Educação – PNE – e os PCN´s, por exemplo, mesmo fazendo alusão as especificidades do mundo rural, afirma a influência do modo de vida urbano. No item “Conteúdos de história: critérios de seleção e organização”, dos PCN’s de história, vemos a defesa de que Não se pode negar que hoje em dia, a vida rural tem sofrido forte influência do modo urbano, vivendo modificações ou persistindo em suas particularidades. Nesse sentido, esta proposta opta por trabalhar com temas relacionados às questões urbanas, mas estabelecendo as articulações constantes com as questões rurais locais ou nacionais. (BRASIL; 2001, p. 44) Dessa forma, a particularidade das escolas do campo foi reduzida às questões do urbano, e apesar de afirmar que serão mantidas as articulações entre as questões rurais, os 43 PCN´S finalizam dizendo que optam por trabalhar com a visão de escolas urbanas. Entretanto, os PCN´S de história, ao sugerir o trabalho com a história local, abrem a possibilidade de estudar a realidade rural. Assim há uma quebra com a visão defendida por Fernandes, Cerioli e Caldart (2004), quando esses afirmam que os parâmetros estão distantes de conceber uma educação básica voltada também aos interesses e ao desenvolvimento sócio-cultural e econômico dos povos que habitam e trabalham no campo. Para os autores acima citados, essa pouca visibilidade do campo expressa nas leis, pareceres e resoluções, prejudica a formulação de ações propositivas para a implantação de um projeto político-pedagógico que considere os interesses dos povos do campo34. Entretanto, segundo as idéias defendidas pelos elaboradores dos PCN´S, O termo parâmetro visa comunicar a idéia de que, ao mesmo tempo em que, se pressupõe e se respeitam as diversidades regionais, culturais, políticas, existentes no país, se constroem referencias nacionais que possam dizer quais os “pontos comuns” que caracterizam o fenômeno educativo em todas as regiões brasileiras. (BRASIL, 1998b, p. 49) Os Parâmetros Curriculares Nacionais configuram uma proposta aberta e flexível, a ser concretizada nas decisões regionais e locais sobre currículos e sobre programas de transformação da realidade educacional empreendidos pelas autoridades governamentais, pelas escolas e pelos professores (idem, p. 50) Em outras palavras, a intenção dos autores dos PCN´S foi organizar uma documentação que servisse e se configurasse como referência para se pensar e fazer o ensino fundamental em âmbito Nacional, sem contudo, homogeneizar as propostas de educação, uma vez que elas defendem o respeito às diversidades regionais, culturais, políticas existentes no Brasil. Ao analisar os conteúdos de História sugeridos pelos PCN´s, Barbosa (2005) afirma que a grande “sacada” foi a incorporação das novas tendências historiográficas e a aproximação com as demais Ciências Sociais. Para a autora, os parâmetros proporcionam reflexões importantes sobre o papel do ensino de história e sua relação com a história local, pois apresentam sugestões de conteúdos e metodologias que podem e devem ser vivenciadas a partir do local/presente/realidade dos alunos. 34 Se pensarmos na educação básica no meio urbano, também vemos problemas e descaso com muitos aspectos fundamentais para o crescimento intelectual, social, ou cultural das crianças. E as leis, que prevêem e normatizam as relações educacionais nesses espaços, também não conseguem viabilizar uma escola de qualidade. Entretanto, nossa discussão está sendo centrada nas especificidades das escolas do campo. 44 Nesse sentido, Barbosa (2005) chama atenção para o papel da identidade social como temática recorrente vinculada pelos PCN´s, pois, ao mesmo tempo em que incentiva o trabalho com o contexto histórico mundial – globalização, por exemplo – estimula a busca pelo local, pelas particularidades e diferenças sociais. “Os Parâmetros, defendendo a multiplicidade de identidades, mas também a devida relação e articulação entre espaços históricos distintos”. (BARBOSA; 2005; p. 122) Os Parâmetros Curriculares de História foram divididos em duas partes: a primeira diz respeito às características, princípios, conceitos e concepções curriculares para o ensino de história – objetivos gerais, critérios de seleção e organização de conteúdos. Na segunda parte aparecem as propostas para os temas a serem trabalhados nos quatro ciclos – sugestões de atividades, material didático e documentação, etc. No 1º ciclo (1ª e 2ª séries) os eixos temáticos devem enfocar as diferentes histórias do local em que vive o aluno. Dar-se ênfase à História local e do cotidiano englobando diferentes temporalidades, auxiliando o aluno a perceber “semelhanças e diferenças, permanências e transformações de costumes, modalidades de trabalho, divisão de tarefas, organização do grupo familiar e formas de relacionamento com a natureza” (BRASIL; 1998a; p. 51) Já no 2º ciclo (3ª e 4ª séries) os eixos temáticos devem enfatizar a História das organizações populacionais e a história local. Dessa forma, as discussões devem se pautar sobre as percepções “das semelhanças e das diferenças, das permanências e transformações das vivências humanas no tempo, em um mesmo espaço, acrescentando as características e distinções entre coletividades diferentes, pertencentes a outros espaços” (BRASIL; 1998a; p. 63). Ao criticar as propostas sugeridas pelos PCN´s de história, Oliveira (2007b) propõe reexaminar os pressupostos do ensino de História que embasam as discussões. Para a autora, muitas coisas são ditas e repetidas com “fervor” nos Parâmetros, e o que se pode observar de fato é que essas frases se tornaram lugar-comum por serem repetidas várias vezes e sem nenhuma “cautela”. Frases como: “estudar é construir conhecimento; estudar história a partir da realidade do aluno; estudar contextos que tenham utilidade na vida prática; colocar no ensino o que a pesquisa tem descoberto...”, são extremamente difíceis de ser colocadas em prática, principalmente quando se passa a analisar a situação do ensino de História, a realidade de 45 cada sala de aula, e o preparo dos professores envolvidos nesse processo. (OLIVEIRA; 2007b; p. 10). Demonstrando ser contrária a essa perspectiva de trabalhar a história a partir de eixos temáticos, Oliveira (2007b) enumera algumas preocupações que deveriam ter permeado as discussões sobre os PCN’s de História, a) para analisar qualquer realidade, é preciso o conhecimento do passado; b) para ter conhecimento do passado, é preciso, embora não apenas, conhecer fatos e datas, estabelecer uma cronologia; (...); d) existem várias memórias históricas, e é necessário conhecê-las e confrontá-las; e) nenhuma memória histórica é mais verdadeira que outra nem é detentora do conhecimento da totalidade do passado; f) cada conhecimento é concernente a uma faixa etária. Há períodos da vida, sobretudo a infância, em que mitologias, histórias heróicas ou fantásticas são necessárias, inclusive, ao despertar para a beleza do aprender; g) a maturidade, juntamente com as outras informações que são absorvidas – proporcionada por novas faixas etárias – dão condições aos cidadãos de compararem a memória histórica absorvida com as outras, de conhecer outros tipos de testemunhos, de analisarem. (OLIVEIRA; 2007b; p. 11) Esse tipo de crítica por ser ampliada para outros “territórios” que incluem os problemas de interpretação histórica, a complexidade de operacionalização das propostas teórico-metodológicas, bem como as discussões em torno da formação dos professores que lidam com o ensino fundamental. Lembramos que grande parte dos profissionais que trabalham nas séries iniciais não possui formação específica, o que dificulta a aplicabilidade dessas propostas. Talvez nesse ponto resida a maior crítica aos PCN´s, uma vez que eles apresentam princípios fundamentais da história, como tempo, sujeito, identidade e diversidade sociais, cultura, recortes espaciais, permanências, rupturas, entre outras que já são difíceis de ser trabalhadas por profissionais da área. O que dizer para pessoas que não possuem formação específica? Embora concordando com essas críticas, devemos entendê-las como possibilidades de trabalho para os professores. Possibilidades de ação evidenciadas a partir das relações com a história local e a sua aplicabilidade em sala de aula. Assim, é necessário buscar nela [a legislação] o espaço que existe para que, o ensino de história – e nele a história local – efetivamente se dê, pois se não for assim, podemos cair no imobilismo, no ceticismo e renunciar a possibilidade de contribuir com o processo de ensino-aprendizagem, com a produção de saberes e com a construção e consolidação de identidades sociais e políticas propulsoras de uma práxis histórica cotidiana. (BARBOSA; 2005; p. 126) 46 A escola está inserida em um contexto determinado – social, cultural, político e econômico –, e como tal não pode estar alheia às necessidades e especificidades dos alunos. Ela não pode ignorar os conflitos e nem as relações que se estabelecem entre a educação e o mundo. Assim as propostas apresentadas nos parâmetros são resultado desse entendimento, ou seja, pensam as relações de poder que se estabelecem entre o conhecimento prático e o conhecimento teórico e coloca como referências para pensar/fazer a educação de um modo geral. De maneira parecida, as políticas públicas de Desenvolvimento Regional vêm destacando o esforço empreendido por organizações da sociedade civil e por movimentos sociais no sentido de construir um novo discurso e elaborar novas práticas de desenvolvimento do Semi-Árido, a partir da lógica da Convivência. Nova compreensão do Semi-Árido que passa a ser elaborada em uma nova dimensão que perpassa o território das possibilidades de práticas e de idéias de Desenvolvimento Sustentável. Podemos observar que a mudança que vem se operando no Semi-Árido brasileiro, com o deslocamento do discurso do “combate à seca” para a concepção de Convivência com o Semi-Árido, ainda exige uma verdadeira revolução de concepções e de propostas de planejamento das políticas públicas sociais, de educação e de desenvolvimento. Mudanças que possibilitem a participação ativa da sociedade civil organizada, dos movimentos sociais, que definam e repensem o Semi-Árido e a educação que vem sendo aqui desenvolvida. Parafraseando Reis (2004), diríamos que é preciso construir um diálogo apreendente entre poder público, a sociedade civil organizada e as Ong´s, onde a meta principal seja a consolidação de uma educação pública, inclusiva, de qualidade, que consiga empreender uma lógica inovadora de considerar a diferença, a diversidade, a pluralidade, mas sem perder as suas especificidades. (...) sem deixar-se cair nem na ilusão do espontaneísmo nem na incerteza do voluntarismo. O desafio aqui será fazer da contribuição das diversas correntes, a mediação da construção de um projeto novo de educação e de sociedade, o que não parece ser tão fácil. (p. 72/73) Essas transformações deveriam ocorrer também no âmbito da elaboração, execução e propostas público-pedagógicas voltadas para a educação do campo, e no Semi-Árido. Como argumentam Caldart (2004); Reis (2004) e Arroyo, Caldart, Molina (2004), o fortalecimento da gestão educacional enquanto elemento da melhoria da educação deverá caminhar conjuntamente com o processo de descentralização do poder, o compartilhamento da tomada 47 de decisão e a contextualização dos projetos na realidade que circundam o processo educacional. No entanto, esse processo não pode ser reduzido apenas ao território restrito da escola. Ele deve ser alimentado nas comunidades para que se transformem em verdadeiros espaços para práticas educacionais que se baseiam na construção de um projeto educativo articulado às práticas sociais, e que contemplem os processos sócio-históricos do seu tempo. Em outras palavras, o que está em questão é um projeto de escola que tem uma especificidade inerente à histórica luta de resistência dos povos do campo. A Resolução n° 01/2001, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação que trata das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, demonstra, por sua vez, a necessidade de mudança da concepção da palavra campo: O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro não urbano, é um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana. (BRASIL; 2001; Art. 1º) Dessa forma, a compreensão de que a zona rural não pode ser vista como a extensão do mundo urbano se faz necessária, uma vez que o campo e os homens e mulheres que nele vivem constroem projetos de vida, articulam movimentos, elaboram concepções de mundo, reivindicam direitos que, considerados em suas especificidades, mantêm a relação com o resto do mundo. Segundo Raymond Williams, “na longa História das comunidades humanas, sempre esteve bem evidente a ligação entre a terra da qual todos nós, direta ou indiretamente, extraímos nossa subsistência, e as realizações da sociedade humana”. (WILLIAMS, 1989, p. 11/12). Assim, o campo não pode ser entendido enquanto espaço definido sem a relação que estabelece com o urbano, e vice-versa. A idéia do campo como lugar bucólico, tranqüilo, não pode ser aceita quando se pensa na educação do campo e numa escola de qualidade que responda às necessidades e especificidades dos alunos. Como chama atenção, as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, a educação dos sujeitos sociais que compõem o meio rural deve considerar que a identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes a sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país. (BRASIL; 2002; Art. 2°, Parágrafo Único) 48 Entretanto, é necessário considerar o campo como espaço de múltiplas possibilidades. A educação do campo não pode ser permeada por relações de dominação cidade/campo, nas quais cidade significa modernidade, tecnologia, ciência, e campo significa atraso. Torna-se premente uma relação que integre e aproxime espaços sociais diversos, que favoreça uma troca efetiva de saberes e significados. (Re)significar a educação no sentido de integrar/entrelaçar, sem bipolaridade, o local/global, o rural/urbano, permitindo ao educando o conhecimento e a valorização das diversas culturas e das múltiplas vivências que compõem a realidade, investindo na produção de novos significados, novos saberes e nova cultura, que englobe toda a tessitura cotidiana das relações sócio-culturais. Não basta uma legislação ou parâmetro para mudar a educação, pois, muitas vezes permanece nos sujeitos envolvidos diretamente com a educação uma mentalidade tradicional e extemporânea, sendo necessário o desenvolvimento de aptidões e a capacidade de raciocínio histórico possibilitada pela aquisição de renovados conhecimentos e a produção de novos saberes. (BARBOSA; 2005; p. 125). Nesse sentido, a idealização do campo como lugar bucólico, tranqüilo, onde a ingenuidade dos “jecas tatu35” ou dos “mazzaropis36” tenta caracterizar um povo incapaz de agir ou discernir seus direitos, pressupõe que os conflitos sejam superados pela cordialidade que abafaria as diferenças. Uma imagética que não se afina com uma realidade de luta pela posse da terra característica da experiência da vida no campo37. Nesse contexto, a escola é chamada a contribuir com o processo de estruturação de uma nova territorialidade, entendida a partir das relações de produção e de construção histórica que estão sendo desenvolvidas pelos movimentos sociais e pela sociedade civil organizada. Assim, ao elaborar o livro didático para os alunos do 2° ciclo do Ensino 35 Jeca Tatu é um personagem criado por Monteiro Lobato em seu livro Urupês. Esse personagem baseava-se no homem do campo do interior paulista, sendo indolente, simples e conformado. Simboliza a situação do caboclo brasileiro, abandonado pelos poderes públicos às doenças, principalmente ao Amarelão, e à indigência. Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapê. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia e de vários filhos pálidos e tristes. Nesse sentido, ele representa a identidade do trabalhador rural que é incapaz de lutar pelos seus direitos e que leva uma vida ordinária e rodeada de toda sorte de infortúnios. Esse personagem era considerado o símbolo do atraso econômico, político e mental, contrapondo-se ao modelo ideal de trabalhador eficaz, produtivo e integrado ao mercado. 36 Mazzaropi: personagem criado e interpretado por Amácio Mazzaropi, ele representa a figura do caipira que ganhou notoriedade a partir do sucesso no cinema e no teatro. No cinema, o filme mais famoso é “Jeca Tatu” adaptação da obra de Monteiro Lobato, que foi sucedido por outros filmes que retratam o “caipira” preguiçoso, personificação do trabalhador rural. 37 Desde os primeiros anos da colonização brasileira a terra foi motivo de cobiça, de tensão e de exclusão social e, de forma intensa, homens e mulheres lutaram e lutam, pelo direito de ter vida e dignidade transformando o campo em espaço de conflito, tensão e luta. Exemplo disso são experiências como a Confederação dos Tamoios, Canudos, Contestado, Ligas Camponesas, Trombas, Formoso, MST, dentre outros. Nesse sentido, o livro “A geografia das lutas no campo”, de Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2001) é bem elucidativo quando mostra o percurso histórico-espacial das lutas do campo no Brasil. 49 Fundamental, a RESAB abre a possibilidade de “construir um novo Semi-Árido” pautado em conhecimentos sobre os diversos aspectos da região, seus potenciais e formas próprias de vivência. A RESAB, entendendo o livro didático como instrumento com alto potencial de poder que reproduz discursos e práticas discriminatórias – que apresenta o Semi-Árido como lugar inviável, feio, seco, ruim de viver –, referenda a necessidade de produzir um livro que dê sentido e significado ao Semi-Árido, abordando e valorizando os aspectos sociais, culturais, ambientais, que fazem desta região “um lugar diferente e único”. Ou seja, há o rompimento com o discurso vigente. 3.3 O livro didático contextualizado: “Conhecendo o Semi-Árido” Na apresentação do livro didático “Conhecendo o Semi-Árido” Lins, Sousa e Pereira (2005), afirmam que o intuito do livro é contribuir com as transformações da educação pensada para esse “novo” território. “É poder olhar pro futuro e ter o direito de se viver no Semi-Árido, é poder desconstruir nosso imaginário de seca e destruição. É ter direito à liberdade e à dignidade, (...) [na luta] por um país melhor” (LINS, SOUSA e PEREIRA; 2005; p. 7). A proposta de elaboração do livro didático partiu do entendimento de apresentar aos alunos a realidade da região e as suas relações com o mundo. É permitir que os estudantes percebam a viabilidade política, econômica, social e cultural do Semi-Árido, através das diversas formas de ver, sentir e viver. Ou seja, é possibilitar o entendimento sobre a capacidade de desenvolvimento dessa região, a complexidade e a diversidade que perpassa essa realidade. Porém, antes de adentrarmos na apresentação e análise do livro didático, se faz necessário algumas considerações a cerca das autoras desse livro. O livro produzido em 2005 com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF – tem como autoras Claudia Maísa Antunes Lins, Edineusa Ferreira Sousa e Vanderléia Andrade Pereira38. Claudia Maísa Antunes Lins é educadora, pedagoga e pós-graduada em Gestão Educacional pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Possui experiência em docência no ensino fundamental I e II, ensino médio e Educação de Jovens e Adultos. Foi 38 A informação sobre as autoras foi disponibilizada em RESAB (2004) 50 assessora pedagógica do projeto de Alfabetização, Auto-Gestão e cidadania do reassentamento da barragem de Itaparica no ano de 1997. De 1999 a 2002 foi técnica em educação do Serviço Social da Indústria – SESI – e atualmente presta assessoria na elaboração de material didático para o Semi-Árido. Edineusa Ferreira Sousa é educadora, pedagoga, pós-graduada em Educação de Jovens e Adultos pela UNEB. Possui experiência docente em Educação Infantil, Fundamental I e II. Foi Gestora educacional de 1998 a 2001, no município de Curaçá – BA (município pioneiro na elaboração da proposta político-pedagogica pautada na convivência com o Semi-Árido). Desde 2002 compõe a equipe do IRPAA. Vanderléia Andrade Pereira é arte-educadora, artista plástica, pedagoga com pósgraduação em Educação de Jovens e Adultos pela UNEB. Foi professora de arte da escola rural de Massaroca – ERUM. Atualmente é diretora de Planejamento e Projetos da Fundação Cultural de Juazeiro – BA, atuando na área de elaboração de projetos e pesquisa em arteeducação para professores e professoras do ensino infantil, fundamental I e II e EJA. É membro da secretaria Executiva da RESAB. Feita as devidas ressalvas sobre as autoras, voltemos nossa atenção para o livro didático, propriamente dito. Atualmente dividido em dois volumes39 – Conhecendo o SemiÁrido 1 e Conhecendo o Semi-Árido 2 – o livro didático passou a ser incorporado por algumas escolas do Semi-Árido Brasileiro no ano de 2006, como possibilidade de consolidação do movimento de contextualização referenda pelos movimentos sociais e pela sociedade civil organizada. O livro visa suprir a carência de materiais específicos para o Semi-Árido, que se constituiu/constitui numa das principais preocupações da RESAB. 39 A primeira versão apresentada pela RESAB era destinada para os 2º primeiros ciclos, revelando-se inadequado para os alunos do primeiro ciclo, além de ter alguns problemas quanto aos conteúdos e as formas de apresentação. Atualmente a RESAB está estudando a possibilidade de colocar o livro didático “Conhecendo o Semi-Árido” na proposta do Plano Nacional do Livro Didático – PNLD – nos próximos anos. Para tanto, fazse necessárias algumas modificações na estruturação dos conteúdos para que ele esteja adequado as normas do referido Plano. 51 (Capa do Livro Conhecendo o Semi-Árido) O princípio norteador da elaboração do livro didático parte da proposta de uma educação para a Convivência com o Semi-Árido e sua relação com os elementos que compõem os pilares dessa nova construção – a sustentabilidade em todos os seus aspectos –, abrindo espaço para discussões sobre gênero, estrutura fundiária, acesso a terra e a água. Esse material não se dispõe a substituir os livros adotados pelas escolas do Semi-Árido. Ele se apresenta como possibilidade de “complemento”, pois trata de uma realidade específica e não visa criar um caráter “localista”. O principal objetivo do livro é subsidiar as discussões realizadas na sala de aula por professores e alunos. O livro começa apresentando a personagem Débora que ganhou um livro com histórias do Semi-Árido. Nesse livro, é contada a história da formiguinha Zanza que, ao se perder do formigueiro, começa uma aventura de “conhecimento e reconhecimento” pelos mais diferentes espaços do Semi-Árido, entrando em contato com a vegetação, os animais, o clima, o território, com a história dos lugares que passa e das pessoas que conhece. No decorrer do livro são apresentados os conteúdos que integram os diversos saberes: humanidades – história e geografia –; ciências da natureza, ciências exatas, todos interligados pela língua portuguesa, favorecendo a comunicação entre as diversas áreas do conhecimento. Vejamos a tabela com o sumário de cada um dos livros: Conhecendo o Semi-Árido 1 Conhecendo o Semi-Árido 2 52 Sumário Sumário - A vegetação do Semi-Árido – 13 - A chuva e a água na Terra – 13 - Papel e reciclagem – 22 - O rio São Francisco – 28 - Natureza e saúde – 24 - Respeitando as diferenças – 31 - Abelhas e formigas – 25 - Os órgãos do sentido – 35 - Nosso solo – 31 - Brinquedos e brincadeiras – 37 - Teia alimentar – 33 - A feira de Caruaru – 43 - O homem e a natureza – 34 - Débora conta a sua história – 47 - Tempo e espaço – 39 - A história do indiozinho Tiziu – 54 - A pré-história do Semi-Árido – 43 - Conviver bem com o Semi-Árido – 59 - Formas de comunicação – 46 - De volta ao formigueiro – 67 - Riquezas do Semi-Árido – 49 - A história de cada um – 69 - A história do nosso dinheiro – 53 - Conversando sobre o livro – 70 - Povoação do Semi-Árido – 57 - Bibliografia – 71 - Histórias de luta no sertão – 58 No item “Vegetação do Semi-Árido”, as autoras mostram a diversidade das plantas – juazeiro, mandacaru, palma, etc. –, como elas são importantes para a região e seus habitantes, além de caracterizar a caatinga. Nesse item podemos ver a possibilidade do diálogo entre a ciência e a geografia. Em outro item, “Povoação do Semi-Árido”, a formiga Zanza aprende sobre as populações, a grande diversidade de plantas e animais, sobre a história, a cultura e as pessoas que compõem o Semi-Árido. Nesse sentido, vejamos o que é exposto no livro: [Zanza diz:] (...) eu descobri uma coisa muito triste sobre a população do Semi-Árido (...). Aprendi que a gente daqui é fruto de um processo que acabou com os índios e implantou na região um sistema econômico e um sistema produtivo baseado no trabalho escravo, na servidão, na exploração das pessoas, e o que é pior, isso perdura até hoje. (LINS, SOUSA, PEREIRA; 2005; p. 57) No decorrer da conversa, Zanza vai relatando sobre o processo de colonização do Semi-Árido, com as particularidades e especificidades, falando ainda da importância da miscigenação para a formação da população sertaneja e a capacidade que esta tem de “reinventarem” a vida na caatinga. Essa discussão possibilita trabalhar com os temas da escravidão – de índios e negros – possibilitando debates sobre a resistência negra na região – o processo de formação de quilombos –, além de criar subsídios para debates sobre as formas de trabalho e exploração da terra. No item “Histórias de luta no sertão”, a formiguinha Zanza passa a discorrer sobre o movimento do Cangaço, Lampião, Antônio Conselheiro e Canudos, e os processos de luta pela terra, chamando a atenção para o fato de que ainda hoje a luta pela terra faz parte do dia-a-dia dessa população. Mais uma vez abre-se a possibilidade de trabalhar com temas 53 atuais, como o Movimento dos trabalhadores Sem-Terra que se organiza em movimentos para garantir seus direitos a uma vida digna. A proposta [do livro didático] foi organizada por temas como a história e identidade; meio ambiente; trabalho e criação; arte, cultura e lazer; sociedade e poder, a partir destes, os sub-temas, as povoações, a cultura, história, potencialidades, etc. As áreas de conhecimento estão presentes para nos ajudar a compreender os diversos aspectos das realidades. Essa perspectiva é também Freiriana, para ele é a própria experiência dos educandos/as que se torna a fonte primária de busca dos “temas geradores” que vão constituir o “conteúdo programático” do currículo dos programas de educação. (LINS; 2007; p. 74-75). Dessa forma, o livro didático favorece a “ligação” entre os saberes locais, do cotidiano, das questões sociais, culturais, no intuito de referendar a educação contextualizada. Isso significa pensar as inquietações, a pluralidade cultural, a biodiversidade, as histórias, que fazem desse espaço – Semi-Árido – tão dinâmico e diverso que não pode ficar aprisionado num livro didático que não traz consigo essa riqueza. Não é nossa intenção discutir todos os itens que compõem os dois livros didáticos, no entanto, foi possível demonstrar como essa proposta favorece o trabalho com a interdisciplinaridade, possibilitando o diálogo com os temas atuais. Discussões que se encaixam dentro das propostas dos PCN´S que afirmam a importância de se trabalhar com as permanências e transformações ocorridas no decorrer dos processos de formação da sociedade brasileira. No caso dos PCN´S de história, essa relação torna-se mais visível a partir do momento em que se trabalha com a história local e com a história do cotidiano dos alunos, implícitos e explícitos em cada um dos itens apresentados no livro. Ao fazer as considerações finais sobre a importância do livro didático, as autoras chamam a atenção dos alunos e professores no item “A história de cada um” para a necessidade de retratar a realidade de muitas crianças que vivem no Semi-Árido. Escrever o livro a partir desta historinha, ajudou-nos a pensar que os conhecimentos que adquirimos na escola, nas diferentes áreas, como Português, Matemática, História, Geografia, Ciências, Artes só são realmente importantes quando servem para ajudar a nos conhecermos, a conhecermos o mundo em que vivemos e a fazer-nos ter idéias e vontades de construir uma vida mais feliz. (LINS, SOUSA, PEREIRA; 2005; p. 69) Assim, ao pensar a educação para a Convivência com o Semi-Árido a partir do entrelaçamento das diversas áreas do conhecimento, esse material didático possibilita a compreensão de um contexto social bem mais amplo e das múltiplas relações que se 54 estabelecem, se produzem e se reproduzem, tendo como base a relação global e local, rural e urbano, micro e macro, seca e chuva, homem e mulher, conflitos de geração, paz e guerra. Além disso, favorece um conhecimento holístico, possibilitando novas atitudes, comportamentos e procedimentos no relacionamento com o meio e com formas de Convivência mais sadias e sustentáveis, promotoras de uma autonomia reflexiva e propositiva de uma nova ordem social. Para tanto, torna-se imperativo “descolonizar” os currículos e os livros didáticos, mudando a visão de uma educação meramente conceitual, teórica, abstrata e especulativa, para uma educação que contemple conhecimentos pertinentes e integre saberes. Trata-se de construir questões relevantes que, superando o discurso de “coitados”, “marginalizados”, “explorados”, agenciem sujeitos que, reconhecendo suas fragilidades e potencialidades, construam diferentes formas de compreender, explicar e ensinar o mundo, tendo como substrato o “chão onde pisam”. Martins (2006) afirma que o que está em jogo é o rompimento com conteúdos, que, “sob a capa da neutralidade”, perpetuam conteúdos “sem contexto”, “descontextualizados” e aparentemente “sem propósitos”. Segundo o autor a constatação mais corriqueira é a de que a educação escolar que se dirige aos vários pontos da imensidão do território brasileiro é uma educação pronunciada por um tal sujeito universal e abstrato, denominado “nós brasileiros”, que toma todas as outras realidades do país como sendo “outros”: “eles”, “aqueles” que estão “lá” e devem ser integrados a esta mesma narrativa hegemônica. (MARTINS; 2006; p. 231). Contrariando essa tendência de homogeneização, a contextualização do livro didático elaborado pela RESAB pressupõe a montagem de um material que valorize a história de vida das pessoas, percebendo a diferença e diversidade como riquezas para a construção de fazeres e saberes, das diversas formas de expressão do povo que habita o Semi-Árido, tendo como ponto de partida a sistematização de conhecimentos – cultura histórica. O livro didático é uma síntese norteadora do trabalho do professor. No entanto, não é definidor de limites para o seu trabalho. O professor pode e deve ir além do que o conteúdo do livro didático propõe. Pensar um livro didático que atenda às especificidades de cada realidade, ou espacialidade do Brasil é pensar em um constante “refazer” dos livros. Isso significa valorizar as histórias contadas pelo povo, as brincadeiras, as vivências, as opções de lazer, as possibilidades de convivência, os desejos, as subjetividades, as relações com o ambiente (social e natural), tudo isso aproveitando a realidade “dos quintais de casa” (LINS, SOUSA e PEREIRA; 2004; p. 96). E nada melhor do que utilizar as variadas linguagens 55 historiográficas – história oral, literatura, cinema, jornais – como alternativa para que os professores pensem as especificidades de forma a contemplar todas essas pluralidades. Dessa forma, podemos compreender que a educação contextualizada para a Convivência com o Semi-Árido não se limita ao espaço físico e a dimensão da objetividade. Ela envolve regimes de signos, fluidos, componentes de subjetividades. A sua composição dar-se-á a partir de múltiplas tessituras que se entrelaçam e se ramificam nas camadas do pensamento, das idéias, dos valores, dos signos. A conotação da palavra “contexto” não pode ser vinculada apenas à dimensão territorial do “aqui” a “um lugar”, uma territorialidade fixa. Ela deve incluir os vários “aquis” que atravessam a constituição da nossa realidade – contida, por exemplo, nas tecnologias. Isso porque “as pessoas não estão de forma alguma soltas no ar, no tempo, à mercê das eventualidades. Elas estão inseridas numa cultura, num modo de vida; estão ligadas a uma memória, a uma linguagem de sentido prático (...)” (MARTINS; 2006; p. 240). Portanto, contextualizar-descolonizar significa problematizar e reconstruir visibilidades e dizibilidades instituídas, permitindo aos “outros” – trabalhadores rurais, quilombolas, indígenas, etc. – recuperarem a palavra e tornarem pertinentes as suas questões, a sua realidade próxima. Isso significa sair do “lugar comum” e produzir outros lugares e outras saídas possíveis, quer seja através da elaboração de livros didáticos específicos, quer seja através de discussões nas reuniões entre pais, mestres, alunos e direção da escola, sobre os rumos da educação. 3.4 O livro didático, a história e a escola. Oliveira (2007a) argumenta que cada livro é recorte, escolha e produtor de visibilidades, e como tal acaba discutindo questões dos tempos e espaços educacionais. Ele referenda a necessidade dos livros didáticos de História questionarem as cartografias das “verdades” histórico-educacionais, uma vez que os conhecimentos, os saberes pedagógicos, o currículo devem ser objetos de constantes problematizações e reformulações. Nesse sentido, Diversos aspectos considerados “naturais” nos Livros Didáticos são frutos da tecnologia que os tornou possíveis, rebentos do encontro entre poder e 56 linguagem, uma operação que articula um lugar social, uma disciplina do conhecimento e a elaboração de um texto. A importância de se interrogar a conexão entre linguagem e poder sugere a percepção da relação saber/conhecimento como um diálogo com outros saberes, e não como uma transmissão arbitrária de conhecimentos, pela qual os estudantes e consumidores são vistos como mônadas, receptáculos de conceitos, de teorias e interpretações. (OLIVEIRA; 2007ª; p. 68) Levando em consideração essas conexões entre saber/conhecimentos e os “outros saberes”, podemos perceber como, tanto o contexto social em que o conhecimento é concebido e produzido quanto o processo de “tradução” desse conhecimento são importantes quando visam o seu uso em ambiente educacional. Compreendemos que esse questionamento também deve ser feito pelo professor no momento em que está discutindo o conteúdo com os alunos. Daí a necessidade de “desnaturalizar” aquilo que já se ritualizou a ponto de ser considerado “natural” no livro didático. É importante perceber que a escola, a História (disciplina escolar e acadêmica) e o professor necessitam atualizar os seus saberes diante das novas questões que o mundo apresenta. Dessa forma, quando se fala em educação para a Convivência com o Semi-Árido, estamos falando de uma Convivência “atualizada” em função de novos saberes e novas demandas. É o presente que qualifica a discussão e sua pertinência. É abrir a possibilidade de agenciar o ensino de história como promotor de uma prática pedagógica aberta e dinâmica, preocupada fundamentalmente com a questão da cidadania do aluno, capacitando-o a agir e transformar o seu contexto social. Lembrando sempre que o poder socializador da escola se expressa, sobretudo, nas práticas e experiências que ela propicia. É compreender a instituição escolar como locus possibilitador de construções e reconstruções do “novo” no processo de ensino/aprendizagem, é reconhecê-la como “(...) dotada de uma dinâmica própria – saberes, hábitos, valores, modo de pensar, estratégias de dominação e resistências, critérios de seleção constitutivos da chamada ‘cultura escolar’” (FONSECA; 2003; p. 34.). Talvez essa seja a grande contribuição que os movimentos sociais do campo e a sociedade civil organizada estão possibilitando quando pensam a educação para a Convivência com o Semi-Árido e a contextualização do livro didático. É entender que o Semi-Árido e os seus saberes são frutos de um processo longo que se desenvolveu no seio de uma mestiçagem e de um hibridismo cultural que compõe o perfil humano dos sertões – sertão negro, indígena, branco, estrangeiro, etc. (MARTINS; 2006; p. 247). É tecer redes de saberes que se vinculam às condições particulares de vida, sem, no entanto, se encerrarem neles. Por isso mesmo, exige uma postura de não aceitar os conteúdos 57 prontos. É produzi-los com os sujeitos envolvidos nas situações concretas de ensinoaprendizagem e fazer, por dentro disso, com que as histórias negadas possam ser contadas, faladas, descritas, escritas e re-escritas. Dessa forma, os debates podem ganhar contornos interessantes para a apropriação em sala de aula, contribuindo para o que Malvezzi (2007) chamou de visão holística do SemiÁrido40. Nessa perspectiva, a escola deve ultrapassar os limites de uma educação meramente conceitual voltada apenas para questões práticas de aprender a ler, escrever e contar. Ela deve estabelecer vínculos com a realidade onde está inserida, atendendo todas as dimensões que constituem o ambiente educativo dos atores sociais envolvidos. Seria recuperar a idéia de que a educação é antes de tudo um trabalho em equipe, pois nas palavras de Joana Neves “uma escola, qualquer escola, dever ser uma agência de produção de conhecimentos, onde alunos e professores estejam em permanente situação de estudo e de pesquisa” (NEVES; 2000c; p. 130). Seria, pois retornar a discussão sobre cultura histórica, levando em consideração as contribuições e antagonismo entre memória e história. Discussão que acaba sendo produtiva quando apropriada pelo ensino de história e/ou pelas culturas escolares. Isso significa perceber as verdadeiras tramas da história, o que se desenrola nas diferentes realidades socioculturais e apropriar-se dos conhecimentos produzidos, para referendar o ensino pertinente nas escolas da/do cidade/campo. Ao trazer as discussões sobre os processos de formação das distintas realidades, os movimentos sociais e a sociedade civil organizada estão ampliando os horizontes da educação nacional, uma vez que produzem outras representações, imagens, valores, etc, a partir de práticas sociais e históricas que passam a dotar de sentido os processos educativos. Significa dizer que a educação contextualizada vem consolidando/transformando os “saberes” evidenciados a partir da realidade em práticas sociais apropriáveis ao contexto da sala de aula. Referendando a necessidade da história/historiografia articular-se com a educação, a política e a arte, Rüsen (2007) afirma que o conhecimento da ciência da história deve manter sempre relação com a prática. Para o autor, essa relação pode e deve englobar a didática do ensino de história, aproximando o campo da historiografia do ensino de história, pois o saber histórico elaborado nas pesquisas guardariam relação direta com a práxis. Nesse sentido, 40 No livro “Semi-Árido: uma visão holística”, Malvezzi (2007) desenvolve várias discussões sobre os atuais rumos para a questão do Semi-Árido brasileiro, enfocando o aspecto cultural e religioso; a importância do Rio São Francisco; o Semi-Árido e o bioma caatinga; os problemas-chaves – terra e água concentradas; e a entrada dos novos atores sociais nessa discussão. 58 (...) refletir sobre o uso prático do saber histórico é um requisito básico da ciência da história (...). Deve-se investigar, explicitar e fundamentar os pontos de vista e os particulares que se aplicam ao uso prático do saber histórico. A relação para com a vida, inerente à práxis científica mesma, precisa ser refletida. Essa relação pode então ser utilizada conscientemente quando a ciência da história (melhor: os historiadores) é chamada a explicitá-la. E os especialistas são constantemente chamados (quando não, forçados) a isso, por exemplo, na elaboração de diretrizes curriculares para o ensino de história, na elaboração de projetos de pesquisa ou nos comitês de planejamento de museus. Só essas circunstâncias já bastariam para evidenciar que a relação do saber histórico com a prática não se esgota no debate sobre a objetividade (...) (RÜSEN; 2007; p. 15-16) Essa preocupação com o uso prático do saber histórico pode contribuir para a autoafirmação e autocompreensão das crianças e dos jovens ao longo do tempo de suas vidas. Seria, pois extrair do lastro da história pontos de vista e perspectivas para a orientação do agir, nos quais tenha espaço a subjetividade e a busca de uma relação livre consigo mesma e com seu mundo – cultura histórica. É ler nas entrelinhas, aprofundando e ampliando o entendimento sobre o conhecimento histórico, no intuito de descobrir como e onde a experiência do presente influenciou a compreensão sobre o passado. Segundo Jacques Le Goff (1992), o termo cultura histórica se apresenta como possibilidade de entendimento desse diálogo entre história/saber/sociedade, visto que mantém relação direta com as demais áreas de conhecimento que lidam com a cultura. Este termo se estabelece a partir da busca pela nomeação de tudo aquilo que, nas sociedades, constitui ou produz práticas e/ou discursos. Partindo dessa premissa, o saber histórico escolar é fundamental, pois dele depende em grande parte a compreensão que a sociedade tem de si. Para Seffner (2000), é especialmente na escola que a grande maioria da população tem contato com a produção de conhecimentos das humanidades. Isso pressupõe a importância e a necessidade de desenvolver uma vivacidade que conduza os alunos a se apropriar do saber histórico como parte de sua vida pessoal. É, sem dúvida, um grande desafio articular essas preocupações com a prática de ensino. No entanto, não devemos abrir mão de tentar, pois as pessoas se utilizam cotidianamente dos próprios lugares de produção de saberes para construir mecanismos de sobrevivência, forma de reinventarem o cotidiano e a prática. Práticas que podem/são evidenciadas na proposta de Convivência com o Semi-Árido – mandallas, barragens subterrâneas, etc.. E, ao trazer essa discussão para dentro da sala de aula, a escola dá início a 59 (re)significação do ensino tão propalada pelos movimentos sociais e sociedade civil organizada. Para Martins (2006): O que está por traz, portanto, da idéia de “educação para a Convivência com o Semi-Árido” é, antes de qualquer coisa, a defesa de uma contextualização da educação, do ensino, das metodologias, dos processos. (...) É uma questão de romper com uma forma de nomeação operada “de fora”, sem sequer dá tempo para que os sujeitos possam organizar uma auto-definição e uma auto-qualificação; uma auto-representação. Antes disso, já estão nomeados, qualificados, representados numa caricatura na qual sequer podem se reconhecer. (p. 235) Baseado nesse entendimento, o livro didático aparece como fruto das discussões que se configuraram através das práticas e conhecimentos/saberes que se elaboraram a partir das escolhas, recortes e visibilidades decorrentes dessa nova – e da velha – forma de perceber o Semi-Árido. E a escola, na medida em que é considerada como espaço institucional, cuja função social é a de promover a sociabilidade, a produção e a ampliação de saberes acumulados, se torna peça fundamental e estratégica para a formação crítica do indivíduo, permitindo ao aluno fazer uso desse conhecimento para a melhoria da qualidade de vida, bem como a produção de novos conhecimentos. Nesse sentido, o conhecimento histórico e todos os outros conhecimentos têm que estar enraizados, se sua interpretação do tempo busca ter influência sobre as disposições mentais profundas do agir. (RÜSEN; 2007). No entanto, não devemos cair num grosseiro presentismo, num mero estudo do meio ou mesmo numa simples “apologia” do cotidiano. O professor de História deve ser alguém que entenda de história, não no sentido de conhecer tudo o que aconteceu com a humanidade, mas que saiba como a história é produzida e que consiga ter uma visão crítica do trabalho histórico existente. Questionar o “saber pronto, acabado e localizado”, expressos nos currículos, nos materiais didáticos, é uma tarefa que compete tanto à escola, quanto ao professor. É preciso referendar um novo modelo de ensino de História que não seja apenas reprodução de nomes e datas, mas que discuta a complexidade do mundo, que permita a produção de outras leituras de mundo fora dos padrões dominantes de saber. Pois: “não há saber mais nem saber menos, há saberes diferenciados, identidades várias.” (OLIVEIRA; 2007a; p. 71) Nesse sentido, o ensino de História se apresenta como elemento de compreensão da realidade, uma vez que possibilita entender a sociedade enquanto um todo constituído por diversas partes que envolvem sujeitos e construções éticas, de cidadania, democracia, valores, relações de poder, conceitos e preconceitos, direitos e deveres, etc. 60 Segundo Souza e Reis (2003), para obter êxito nesse “novo ser” é necessária a interação entre o conhecer/refletir/intervir, no intuito de redirecionar a ação em sala de aula, pois ao “conhecer a realidade”, a escola ampliará as possibilidades de conhecimento promovendo cultura e fazendo emergir os potenciais de cada lugar. Também se torna possível, a partir da “reflexão”, desmistificar as visibilidades e dizibilidades construídas para o Semi-Árido brasileiro. Ou seja, a escola deve provocar questionamentos, inquietações, permitindo atitudes mais propositivas e conscientes por parte da comunidade e dos próprios alunos, modificando hábitos, atitudes, comportamentos, valores e conceitos41. Isso implicaria numa mudança de perspectivas quanto a realidade “sombria” e “assustadora” identificada nas discussões e representações sobre essa região. Assim a educação contextualizada se apresenta como (...) um novo significado às práticas sociais, (re)desenhando a realidade que começa a ser transformada a partir da ação mais conscientes das pessoas movidas pela inconformidade e pelo desejo autêntico e tão necessário à ação educativa: o da transformação (...) expandindo essa nova escola, essa nova sociedade. (SOUZA e REIS; 2003; p. 31) Só assim, a escola estará contribuindo para a (re)significação das formas de relação entre homens, mulheres e natureza, proporcionando novas possibilidades de vida (transformação da realidade local), de inclusão e melhoria do Semi-árido Brasileiro - SAB (construção do desenvolvimento sustentável e de implementação de políticas públicas), além de expandir o conceito de Convivência para outras esferas da vida (econômica, política, sócio-cultural e ambiental). 41 No entanto, isso não vai acontecer só com a mudança do conteúdo que aparece no livro didático. É uma mudança que implica fatores outros, que têm uma dimensão muito mais complexa do que esta. 61 4. (RE)SIGNIFICANDO O ENSINO DE HISTÓRIA NO ASSSENTAMENTO ACAUÃ. Pensar o ensino de História na sua historicidade significa buscar, se não soluções definitivas, ao menos uma compreensão mais clara sobre o que significa, hoje, ensinar História nas escolas de ensino fundamental e médio. Nesse sentido, é preciso perguntar que conhecimento estamos ensinando ou queremos ensinar, levando em consideração a própria proposta de (re)significação da educação apresentada pela nova compreensão de SemiÁrido. Nosso desafio nesse capítulo é apresentar até que ponto a discussão sobre a Convivência com o Semi-Árido tem possibilitado a (re)construção de novos conhecimentos, em especial, os que se referem ao conhecimento histórico, tendo como base a discussão sobre cultura histórica/escolar. 62 4.1 O processo educativo no Assentamento Acauã: subjetividades de uma contextualização. Localizado no município de Aparecida, no sertão paraibano, distante 412 quilômetros da capital João Pessoa, o assentamento Acauã iniciou a sua história de luta e conquista pela terra no ano de 1995. Cerca de 250 famílias, com apoio político da Comissão Pastoral da Terra – CPT/Sertão, (sediada no município de Cajazeiras), no dia 02 de dezembro de 1995, ocuparam os 2.852 ha da “Fazenda Acauã”, situada no Distrito de Aparecida42, no município de Sousa, considerada improdutiva pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Em 06 de dezembro, após serem expulsas da área por ordem judicial, as famílias montam acampamento às margens da BR-230, na porteira de acesso à Fazenda. Uma nova ocupação é realizada no dia 14 de dezembro, sendo que, desta vez, o acampamento se localiza na área do Patrimônio Histórico da Fazenda. Nesse mesmo dia, a Polícia Militar, por determinação do Governo do Estado, expulsa os trabalhadores rurais da terra. A Fazenda Acauã tem uma área de 15 ha. tombada pelo Patrimônio Histórico da Paraíba, onde estão localizadas a sede da Fazenda, uma Capela bicentenária e armazéns que, em períodos passados, serviam de entreposto para a Rede Ferroviária que corta a Fazenda e nela dispunha de uma estação para embarque e desembarque de passageiros e mercadorias. O interesse histórico reside nos aspectos arquitetônicos da Igreja e da Casa Grande da Fazenda, construções barrocas de mais de dois séculos, e, também, por terem servido de abrigo e pouso a Frei Caneca e outros revolucionários durante a Confederação do Equador. (MOREIRA NETO, 2001). 42 Na época da ocupação da fazenda, Aparecida ainda era Distrito e pertencia ao município de Sousa. Sua emancipação somente aconteceu em 1996, quando foi eleito seu primeiro prefeito. 63 Patrimônio histórico de Acauã. A Casa Grande, a Igreja e o armazém ao lado direito da Igreja43. (FARIAS, A. E. M. 10-09-08) Os acampados permaneceram às margens da rodovia até o dia 31 de janeiro de 1996, quando nova ocupação é empreendida. A reação dos proprietários e da polícia é imediata e, no mesmo dia, os trabalhadores são novamente expulsos da terra44. Com o avanço das negociações com o INCRA para a desapropriação das terras, os trabalhadores rurais permaneceram no acampamento às margens da BR-230 até o dia 24 de abril, quando ocuparam novamente a Fazenda. No dia 09 de maio um decreto presidencial declara desapropriada a Fazenda Acauã para fins de reforma agrária. A justiça, contudo, caminha na contramão e, no final de junho, o Tribunal de Justiça da Paraíba acata agravo de instrumentos impetrados pelos advogados dos proprietários e determina o despejo das famílias acampadas. Negociações com o Governo do Estado autorizam a montagem do acampamento na área da Fazenda tombada pelo Patrimônio Histórico Estadual. (MOREIRA NETO; 2001; p. 9-10) Em 19 de setembro, desconsiderando o acordo a Segunda Vara de Justiça da Comarca de Sousa, determina o despejo das famílias acampadas na área do Patrimônio Histórico. O acampamento volta às margens da BR-230 ali permanecendo até 14 de outubro, quando o INCRA anuncia a imissão da posse e as famílias podem entrar como donos da terra 43 Essa foto foi tirada antes do início das obras de restauração do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional. Foto tirada em setembro de 2008. 44 Utilizando a força, a polícia prende quatro membros da equipe da CPT/Sertão, um pequeno agricultor de uma comunidade sertaneja que estava prestando solidariedade aos trabalhadores rurais e duas estudantes alemãs que estudavam o problema fundiário brasileiro. 64 em Acauã. São 117 famílias beneficiárias, sendo 30 famílias chefiadas por mulheres e 87 homens. Das cerca de 250 famílias que iniciaram a ocupação da Fazenda Acauã, em 02 de dezembro de 1995, apenas 27 chegaram ao final, ou seja, obtiveram a posse da terra. A grande maioria desistiu no processo de quase um ano de luta. A partir desse momento, dá-se início ao processo de cadastramento das famílias beneficiárias e da constituição do assentamento, inicialmente com o levantamento de barracas de lona. Atualmente, são 125 famílias assentadas, sendo que destas 11 são filhos de assentados que constituíram família e acabaram morando com os pais no assentamento. Em termos de infra-estrutura, o assentamento conta com uma escola municipal de ensino fundamental I (de primeira a quarta série), com a sede da associação dos assentados, com 114 casas próprias, abastecimento de água e energia provenientes das prestadoras de serviço, além de uma estrada que dá acesso a Acauã ainda em fase de conclusão pelo Governo do Estado da Paraíba. Vale lembrar que no assentamento Acauã são desenvolvidas experiências de Convivência com o Semi-Árido, como: as barragens subterrâneas, as cisternas de placas, mandallas, criação de ovinos e caprinos, hortas orgânicas, fundos de pasto, bancos de sementes comunitárias, etc. Na tabela a seguir, podemos ver a descrição de algumas das experiências desenvolvidas no assentamento Acauã. - A mandalla é uma tecnologia desenvolvida no sertão da Paraíba, que combina a segurança alimentar e nutricional com a melhoria de renda na agricultura familiar. É um tanque cilíndrico, com capacidade de, aproximadamente, dois mil litros de água, que serve para criatório de peixes e aves (patos e marrecos), além de servir para a irrigação de pequenas hortas e pomares. A irrigação é feita por microaspersores, que são fabricados a partir de material reciclado. A produção das Mandallas é voltada para a segurança alimentar, e o excedente é vendido no comércio local. 65 - As hortas orgânicas: consiste na técnica correta de plantio e acesso à água de barreiros, trincheiras, poços artesianos viabilizando a produção de hortaliças. O manejo adequado do solo (cobertura morta), a variedade de plantas, o uso de adubos orgânicos (esterco, compostos, biofertilizantes) e o uso de inseticidas naturais garantem a produção de alimentos saudáveis para o abastecimento familiar e para a geração de renda com a venda do excedente. - Fundo de pasto é uma prática tradicional no Semi-Árido brasileiro. Caracteriza-se pela ocupação e uso da terra de forma comum, por uma coletividade que, além dos laços de parentesco e compadrio, tem em comum a criação de animais de pequeno e grande porte, soltos na área; e pequenos roçados de subsistência das famílias e de suplementação alimentares para o rebanho. - Os bancos de sementes comunitárias é um modelo de gestão coletiva do estoque de sementes necessário para o plantio. As famílias se associam e têm direito a tomar emprestada uma certa quantidade de sementes, que são restituídas após a colheita numa quantia superior, segundo valores definidos pelos associados. Resgata e incentiva uma prática que é tradicional no Semi-Árido. O Banco permite aumentar o número de famílias beneficiárias e formar estoques de reserva para os períodos de estiagem prolongada, funcionando como guardiões estratégicos das variedades adaptadas e por isso têm incentivado a variedade de sementes de milho, feijão, gergelim, mamona, fava, girassol, jerimum, melancia, melão, pepino arroz, algodão, amendoim e outras espécies de plantas nativas e medicinais. Na Paraíba, as ONG´s e o Governo Estadual promovem a festa da “Sementes da Paixão” e incentiva ampliação dos bancos comunitários. Existem outras experiências apropriadas ao Semi-Árido. - Feiras de agricultura familiar e agroecologia: a promoção das feiras livres é uma alternativa para o escoamento da produção da agricultura familiar, para melhoria da renda e para a aproximação entre produtores e consumidores. Ultimamente, têm surgido várias iniciativas no Semi-Árido, que organizam feiras especiais e a participação de agricultores nesses espaços de comercialização. Na Paraíba, há uma experiência de “pontos ecológicos” nas feiras livres, estimulando novas relações dos agricultores com os consumidores. - Caprinovinocultura: além de se adequar às condições ambientais e socioculturais da Região, a criação de caprino e ovino não exige grandes investimentos, e permite a geração de renda. Além da criação de rebanhos, tem sido incentivado o 66 beneficiamento de seus produtos, com industrias de laticínios, curtumes, etc. O desenvolvimento da caprinocultura implica resgatar e valorizar a rusticidade desses animais por meio de processos de seleção natural. Em busca de agregar valor ao produto, reduzir custos e incentivar o manejo sustentável do rebanho; a Embrapa Semi-árido tem pesquisado um modelo de produção orgânica de caprinos, com as forrageiras nativas da Caatinga, aumentando a eficiência no controle das verminoses. - Apicultura e meliponicultura: o Semi-árido brasileiro é uma grande região produtora de mel, tendo em vista que a flora da Caatinga é constituída por uma riqueza de flores. As abelhas nativas e africanizadas contribuem para a polinização das flora local e fornecem diversos produtos (mel, própolis, cera, etc) para a alimentação e a saúde da população. - Psicicultura: a psicicultura nos sistemas integrados de agricultura familiar, aproventiando a água acumulada em açudes, pode contribuir para melhoria da renda no Semi-árido. Diversas tecnologias têm sido desenvolvidas para a implantação de projetos de psicicultura sustentável, como os tanques redes e a produção de ração, com aproveitamento de matéria prima disponível no local. - Avicultura (galinha de capoeira ou caipira): a Embrapa contribuiu para o desenvolvimento de um conjunto de técnicas de manejo de aves e de produção local de ração, que melhoram a produtividade na criação de galinha de capoeira destinada à produção de carnes e ovos, gerando trabalho e renda, e contribuindo para a segurança alimentar nas áreas rurais. Os projetos implementados incentivam sobretudo a participação das mulheres na gestão das atividades. Fonte: ASA (2003, 2004) A partir desse contexto, buscamos apreender por meio da metodologia da história oral até que ponto a proposta de Convivência com o Semi-Árido proporciona a (re)significação da educação, e do ensino de história no assentamento Acauã. Trabalhar com a História Oral é mergulhar em visões subjetivas dos sujeitos sociais e evocar as experiências desses sujeitos e suas relações com passado e o presente para poder produzir conhecimentos históricos significativos, distintos dos que já existem em relação à “História Oficial”. 67 Como se sabe, durante muito tempo, a História privilegiou o documento escrito em detrimento da história oral e o passado em detrimento de temas contemporâneos como qualidade para a imparcialidade. No final dos anos 1980, a determinação cultural dos agentes e das práticas sociais passou a influenciar a história produzida na academia. Como “resposta” à história econômica e política que até então predominava nos cursos de graduação e pós-graduação no Brasil a história oral passou a ser utilizada. Aos poucos, foram se desenvolvendo estudos sobre as subjetividades, o imaginário e o campo simbólico. A partir da ampliação do campo da história, os temas contemporâneos foram ganhando visibilidade e com isso a história oral foi sendo incorporada nessa discussão. A História Oral despontou nos Estados Unidos e Europa basicamente na década de 50 do século passado, mas somente nos anos 1960 houve uma maior aceitação de suas práticas por parte dos historiadores e cientistas sociais. Entretanto, a expansão de pesquisas aconteceu mais tarde (décadas de 1980 e 1990), com a publicação de trabalhos acadêmicos utilizando o novo método. Como metodologia de pesquisa, a História Oral45 se constitui a partir da “fabricação” de fontes orais que abrem possibilidades para o estudo da história contemporânea e para “o afloramento de múltiplas versões da história e, portanto, potencializa o registro de diferentes testemunhos sobre o passado, contribuindo para a construção da consciência histórica individual e coletiva”. (NEVES, 2000c, p.115). No seu início, ela esteve atrelada à História militante, no sentido de dar “voz” aos excluídos – trabalhadores das fábricas, camponeses, mulheres, velhos – o que propiciou um diálogo com a história “vista de baixo”, assumindo a postura de uma Contra-história, possibilitando uma inversão radical nos métodos e objetos consagrados da História tradicional. Assim como as outras fontes históricas, a fonte oral é passível de questionamentos quanto a sua validade. Entretanto, a grande crítica que é dirigida à História Oral reside no fato da entrevista/depoimento ser uma fonte que trabalha com a “variante memória”. Variante no sentido de cambiante, de ser um “produto” inacabado, sempre sujeita as influências do presente, ou seja, uma (re)elaboração/representação do passado, uma vez que a memória não é um registro fotográfico da experiência. Alberti (2006) afirma que a “(...) riqueza da História oral está evidentemente relacionada ao fato de ela permitir o conhecimento de experiências e modos de vida de 45 Concordando com Montenegro (1998) - citando o estatuto da Associação Brasileira de História Oral (ABHO) - entendemos: “Por História Oral (...) o trabalho de pesquisa que utiliza fontes orais em diferentes modalidades, independente da área do conhecimento na qual essa metodologia é utilizada”. (MONTENEGRO, 1998; p. 14) 68 diferentes grupos sociais (...)” (ALBERTI; 2006; p. 166), ampliando o saber sobre determinados períodos da História. Essa ampliação acontece porque para realizar as entrevistas, o pesquisador/historiador necessita fazer pesquisas em fontes escritas, sejam elas bibliográficas, arquivistas, etc. Em outras palavras, se faz necessário um conhecimento intelectual e empírico, previamente adquirido para que se tenha uma maior segurança no trato com as informações provenientes das entrevistas. De acordo com essa compreensão, as entrevistas foram realizadas a partir de um esquema básico de questionamentos, que permitiu a flexibilidade dos temas abordados – entre os temas pesquisados constavam o livro didático da RESAB; os conceitos de Convivência referendados pelas professoras; entre outros. À medida que as informantes se expressavam espontaneamente, o entrevistador pode solicitar acréscimos, ampliando e aprofundando as informações colhidas – entrevista semi-estruturada. As entrevistas foram realizadas no segundo semestre de 2008 – setembro e outubro – com três professoras46 da Escola Municipal de Ensino Fundamental Lili Queiroga – Aparecida/PB. A professora da 2ª série (Joana) fez pedagogia e tem 4 anos de experiência. A professora da 3ª série (Elis) é formada em pedagogia e trabalha há 5 anos como professora. Já a professora da 4ª série (Simone) não possui formação de nível superior e há 8 anos trabalha como professora. Todas as professoras terão nomes fictícios para resguardar as suas imagens de possíveis transtornos. Convém enfatizar que as entrevistas realizadas são importantes para se pensar como as discussões sobre a Convivência estão sendo incorporadas pelas professoras na (re)significação da educação, e como elas passam a integrar/interagir com a cultura histórica/escolar. Trata-se, pois, de compreender como são apropriados e socializados os conhecimentos/saberes no processo de ensino/aprendizagem e como eles influenciam direta ou indiretamente na apreensão sobre a realidade mais próxima. Dessa forma, daremos início às falas, tentando compreender como as professoras trabalham com as questões do cotidiano do aluno e da comunidade nas suas aulas. A gente trabalha a história da comunidade porque eles [os alunos] têm que crescer sabendo. Porque tem deles que já nasceu aqui no assentamento e ainda não sabe da história dele. Então nós que somos professores temos o dever de dizer pra eles como surgiu, como foi essa história... O processo todo. Falar do patrimônio histórico, mostrando a realidade do dia-a-dia (...) A História do lugar que eles nasceram. A história do assentamento, por exemplo, já trabalhei com eles, contei tudo como começou o processo, fiz 46 As entrevistas foram realizadas com as três professoras, porque na época da pesquisa a Escola pesquisa contava com um professore de ensino infantil, uma professora da 1ª serei, uma professora da 2ª série, uma professora da 3ª série e uma professora da 4ª série. 69 os trabalhos com eles. Falei sobre o patrimônio histórico, falei quantos anos tem a igreja, mandei eles fazerem desenhos (...). (Joana) Cabe ressaltar que essa professora não mora no assentamento e o seu primeiro contato com a realidade do assentamento se deu a partir do momento que foi designada para ensinar na escola. É significativo notar nessa fala, que apesar de afirmar que trabalha com a realidade do aluno, partindo do que Joana chamou de “história do lugar”, ela não nos oferece maiores informações de como isso se processa efetivamente na sala de aula. Ao trabalhar com o patrimônio histórico, várias discussões são possíveis de serem elencadas, sem falar que o próprio assentamento é dotado de um conjunto arquitetônico riquíssimo próximo a escola. Essa discussão pode/deve ser desenvolvida pela professora a partir de questões referentes ao turismo histórico, entre outras coisas, atentando para o uso da história local. Já a professora Elis elenca a temática “vegetação” como possibilidade de se trabalhar o cotidiano em sala de aula, (...) a gente trabalha mais a realidade deles [os alunos], principalmente os que moram no campo. A gente tenta fazer a relação campo/cidade (...). [Pesquisadora: De que forma você traz pra sala de aula as questões referentes ao cotidiano?]. Por exemplo, [no item] vegetação... Os alunos e pais de alunos trabalham com hortaliças, ai a gente trabalha, e por sinal na escola também tem viveiro [horta comunitária]... A gente trabalha mais com essas coisas que eles convivem no dia-a-dia. (Elis) Com o depoimento da professora Elis, podemos perceber que ao trabalhar com a “vegetação”, abre-se a possibilidade de discutir a realidade do aluno em sala de aula. Nesse sentido, ela estabelece as relações necessárias entre a construção de conhecimentos no espaço escolar e apropriação deste pelo aluno. No caso da professora Simone, podemos perceber como ela tenta articular a realidade do assentamento com as suas aulas A gente trabalha o dia-a-dia do aluno. A gente traz questões que são debatidas lá fora. A gente traz para a realidade do aluno, coisa que o aluno vê no dia-a-dia. Por exemplo, a falta de água na comunidade (...). Teve uma época que a comunidade estava sem água e a gente trouxe isso pra sala de aula, ai veio a prática com a Convivência com o Semi-Árido. A questão da cisterna, dos poços, os tanques que eles tem em casa, a questão da preservação da água e do armazenamento de água. Então a gente trouxe esse problema que era da comunidade (...) trouxe para dentro da sala de aula procurando desenvolver as discussões. (Simone) É importante esclarecer que a falta de água foi um episódio muito marcante no assentamento durante os anos de 2007/2008, uma vez que os assentados foram 70 impossibilitados de utilizar a água do Canal da Redenção47 que corta o assentamento Acauã. Essa situação trouxe vários transtornos, entre eles, a inviabilização das experiências de Convivência de onde provém boa parte do sustento da comunidade48. Ao apropriar-se dessa discussão, Simone conseguiu estabelecer as articulações necessárias entre conhecimento e o cotidiano suscitando questões e entendimentos sobre a realidade local. Ela pôde desenvolver discussões acerca do desenvolvimento sustentável, tecnologias apropriadas, além das discussões que ela mesma elencou sobre preservação e armazenamento de água. Nas palavras de Martins (2006), seria entender “o homem como parte da natureza, as suas relações sociais (inerentes à segunda natureza, a natureza humana) e os problemas que se produzem nesses domínios (...)” (p. 284). Dessa forma, ao discutir essa problemática da água na sala de aula, Simone mostrou aos seus alunos os vínculos entre a educação e a própria realidade do assentamento onde trabalha, ou seja, entre a teoria e a prática, favorecendo questionamentos relativos à vivência no assentamento. Ao serem questionadas sobre o que entendiam por Convivência com o Semi-Árido, tivemos algumas surpresas “desagradáveis”. Algumas chegaram a afirmar que não tinham condições de conceituar. Vejamos o caso de Elis. Após uma longa pausa, ela não soube responder ao questionamento, demonstrou insegurança e gaguejou muito, sem conseguir articular uma resposta. Mesmo trabalhando com a questão da vegetação no Semi-Árido, a partir da realidade do assentamento, ela não formula um conceito. A partir disso ficamos nos questionando como essa professora consegue trabalhar com o livro didático contextualizado sem ao menos conseguir conceituar o que é Convivência com o Semi-Árido? Isso nos deixou bastante preocupados, visto que a proposta da Convivência já vem sendo trabalhada desde 2005 pela equipe da Rede Educação do Alto Sertão sobre responsabilidade da CPT/Sertão. Sem falar que os cursos de capacitação de professores realizados pela Rede são freqüentes e têm como eixo norteador as problemáticas da utilização do conceito de Convivência, suas relações com o debate sobre educação do campo e a utilização do livro didático pelos professores e alunos. 47 O Canal da Redenção aduz água do reservatório Coremas Mãe D’água que tem sua capacidade máxima de 1.358.700.000 m³ de água, o maior reservatório do Estado da Paraíba, são 37 Km de distância desde sua tomada d’água no município de Coremas até o projeto de irrigação Várzeas de Sousa entre os municípios de Sousa e Aparecida. 48 O excedente de hortaliças produzidas nas mandallas são vendidas nas feiras agro-ecológicas realizadas em algumas cidades da região, como as que acontecem toda sexta-feira na cidade de Cajazeiras. A venda do excedente favorece a complementação da renda dessas famílias. 71 Esses cursos de formação continuada desenvolvidos pela Rede sempre contaram com a participação dos professores da escola do assentamento pesquisado. A prefeitura do Município de Aparecida possibilita o deslocamento desses professores para a sede da CPT/sertão em Cajazeiras, onde são realizados os cursos. Cursos que geralmente ocorrem nos finais de semana para evitar o choque com os horários de trabalho. Da mesma forma que Elis, a professora Joana não conseguiu responder nosso questionamento. Ela também participou das capacitações que tinham sido realizadas pela CPT/Sertão. Ao formularmos a pergunta, Joana se mostrou muito nervosa, ficou preocupada com a possibilidade dos organizadores da capacitação “descobrirem” que ela não sabia conceituar o que seria a Convivência. Dessa maneira Joana afirma: Eles [os integrantes da rede educação do Alto Sertão] falaram demais sobre isso (...) o pouco que entendo sobre a Convivência... É... A escola não pode ficar de fora desse projeto (...) a escola tem que “tá” por dentro desse tema. Como as crianças vão crescer sem saber qual a importância que tem um pé de Juá? Pé de Juá pra quem é de fora acha que não tem importância nenhuma, mas tem. A gente tem que explicar pra eles [os alunos] que é uma árvore permanente que tem utilidade, assim como o mandacaru e as outras árvores nativas do Semi-Árido. (Joana) Mais uma vez essa situação mostrou-se problemática, já que a escola vem desenvolvendo essa proposta de Convivência, chamando a responsabilidade de tal tarefa para os professores. Então nos perguntamos: que formação essa professora pode oferecer para seus alunos sem conseguir formular uma conceituação sobre Convivência? Ou melhor, que educação contextualizada essa escola está oferecendo? Certamente essa professora tem noção do que seja Convivência, até mesmo, pelo simples fato de citar o Juazeiro e o mandacaru como “árvores” importantes para o Semi-árido. No entanto, o que se observa é que ela não soube expressar esse conceito. Elis e Joana, por exemplo, relataram que não haviam participado das capacitações realizadas no ano de 2007 porque a primeira estava tendo aula na Universidade Estadual do Vale do Acaraú – UVA –, e a segunda estava fazendo outro curso de capacitação do programa Jovens e Adultos na cidade de Sousa – PB, impossibilitando a participação na Rede49. 49 Essa realidade se mostra mais grave quando passamos a analisar a situação do professor em âmbito Nacional. É público e notório que o professor precisa ter uma carga horária de trabalho maior se quiser garantir o mínimo de conforto, tendo em vista a defasagem salarial. Nesse sentido, a maioria busca outros trabalhos, o que, em certa medida “justifica” essa falta de “apego” a realidade da escola onde ele trabalha. 72 Isso demonstra a complexidade entre a proposta da Convivência, a utilização do livro e o próprio distanciamento das professoras com relação à educação pela qual são responsáveis. As pesquisas e experiências educacionais referendadas pela RESAB e pelos movimentos sociais têm salientado a redefinição dos papéis e das relações que se estabelecem entre professores, alunos e conhecimentos no espaço da sala de aula – e fora dela. Relação que se mostra bastante frágil no caso do assentamento estudado, uma vez que há uma quebra entre a utilização e efetivação da proposta de educação contextualizada e sua concretização em sala de aula. É com base nessa teia de relações e comunicações que se configuram as novas concepções do que é ensinar e do que é aprender no contexto do Semi-Árido. Isso significa reconstruir os processos de ensino/aprendizagem com base nos diferentes espaços da vida cotidiana, o que infelizmente não foi possível notar nas falas das professoras, que não estão levando em consideração as discussões quando elaboram as suas aulas. Diferentemente das duas primeiras professoras, Simone oferece um conceito de Convivência, [Convivência] é o que a gente é capaz de fazer para se dar bem no lugar onde a gente vive. É se habituar ao clima do lugar e tentar conviver com ele da melhor forma possível, procurando métodos para que a gente possa viver bem no Semi-Árido. (Simone) Uma coisa que nos chamou a atenção na fala de Simone está relacionada à palavra “habituar”. Segundo o dicionário escolar da Língua Portuguesa de Bueno (1979), habituar significar “fazer tomar o hábito de; acostumar; avezar; exercitar (...)”. O seu entendimento perpassa, mesmo que sutilmente, a compreensão de que a Convivência significa procurar os “métodos para viver bem no Semi-Árido”. Nesse sentido, ela não “fugiu” do princípio norteador dessa proposta que é o de construir conhecimentos, organizar e criar alternativas – nas suas palavras “métodos” – de produzir soluções a partir dos limites e possibilidades que a natureza semi-árida oferece. Quando questionadas sobre a forma como utilizavam o livro didático “Conhecendo o Semi-Árido”, todas afirmaram que há certa dificuldade, por parte do aluno em entender a linguagem utilizada no livro. Vejamos as falas: Esse ano [2008] a gente não trabalhou com esse livro, nós trabalhamos o ano passado, mas esse ano devido à falta de leitura deles e tudo... e praticamente o livro de Geografia também é mais assim, campo e cidade, ai já pega um pouco o assunto. [Pesquisadora: O ano passado quando você usou o livro tinha alguma dificuldade em trabalhar com ele?] Logo no início foi difícil, assim pra começar... Mas é como diz a história, a gente só 73 consegue fazendo, ai eu comecei, principalmente trabalhando a vegetação, eu fiz passeio com eles mostrando as plantas da nossa região, e foi muito bom, eles gostaram muito também. Eu dava a teoria, mostrando tudo e depois fomos para o campo mostrar pra eles os cactos, aquela vegetação... A gente ia até gravar o estudo junto com a outra professora que ia falar sobre a questão da água, mas não deu certo... Ai depois a gente até plantou palma, mandacaru na escola. Mas esse ano eu não trabalhei esse livro com eles. (Elis) Não utilizo o livro porque as crianças sentem dificuldade, mas o ano passado ele era utilizado. Talvez ano que vem a gente volte a utilizá-lo. [quando ela utilizava o livro didático...] Sinceramente, eu acredito que ele é muito bom na questão de conteúdos, tem muita informação, mas acho que ele precisava de mais atividades para mexer com o raciocínio das crianças (...). Algumas perguntas, questionamentos, palavras cruzadas, esse tipo de coisa que mexesse com o raciocínio do aluno. Ele é muito bom em questão de conteúdo, mas falta alguma coisa para ajudar o professor, atividades que ajudem o professor (...). Eu utilizava esse livro junto com o livro de Ciências, Geografia integrava os dois. (Simone) No ano de 2007, quando esse material didático foi adotado pela escola, Elis afirma ter conseguido realizar discussões pertinentes junto com a outra professora (Simone). Discussões que se pautavam nas temáticas relativas a vegetação e a água no Semi-Árido. Mas para justificar a não utilização no ano de 2008, ela relatou uma série de dificuldades, que vão da linguagem complicada para o entendimento do aluno, até a “semelhança” do conteúdo do livro didático de Geografia adotado pela escola que “trabalha com o campo e a cidade”. Essa dificuldade é sintomática da falta de preparo das professoras que acabaram abandonando o livro contextualizado. O fato de não participarem das capacitações e de não conseguirem conceituar a Convivência, e afirmarem (Elis) que um livro produzido em outra realidade “também” trabalha com a relação campo/cidade são reveladoras dessa dicotomia. De um lado vemos todo o esforço em se pensar/produzir um livro que trabalhe com o cotidiano, respaldado pelos PCN’s, e de outro o abandono desse material. Essa situação contradiz a própria idéia de contextualização, uma vez que o livro didático tenta englobar uma realidade que é “silenciada” na narrativa oficial, proporcionando a identificação entre a realidade e o processo de ensino aprendizagem desenvolvida na escola. As discussões desenvolvidas nos livros “Conhecendo o Semi-Árido 1 e 2” vão muito além das relações campo/cidade. Elas buscam vincular o conhecimento a um conjunto de saberes, estimulando o estudo sobre a realidade, perpassando pelas temáticas sobre fauna e flora no Semi-Árido; paisagens; histórias; tecnologias de capacitação da água; entre outros, 74 com o intuito de construir uma compreensão integradora/integrante entre as pessoas e a natureza; entre alunos/professores, disciplinas/realidade. Nesse sentido, devemos atentar para o fato de que é o professor que transforma o saber a ser ensinado em saber apreendido – ação fundamental no processo de produção do conhecimento. Para Monteiro (2007), os professores mobilizam em seu ofício os saberes das disciplinas, os saberes dos currículos, os saberes da formação profissional e os saberes da experiência. E é na pluralidade desses saberes que o trabalho do professor se define enquanto “saber docente”. Ao desenvolver a discussão em torno do saber escolar e do saber docente, Monteiro (2007) define o saber escolar como “o conhecimento com configuração cognitiva própria, relacionada, mas diferente do saber cientifico de referência” (p. 14). Para a autora, o saber escolar é criado a partir das necessidades e injunções do processo educativo, que envolve questões relativas à transposição didática e às mediações entre conhecimento científico e conhecimento cotidiano. Nesse sentido, o saber também engloba as dimensões históricas e socioculturais da sociedade onde a escola está inserida. Já o saber docente tem “como foco as relações entre os saberes que os professores dominam para poder ensinar e aqueles que ensinam efetivamente” (p. 14). Eles são expressos como saberes práticos e que são considerados fundamentais para a configuração de uma identidade e de competência profissional, implicando reconhecimento de subjetividades e apropriações. Dessa forma, a ação docente não pode e não deve ser entendida como um ato individual e isolado da realidade. Ela deve ser entendida como uma ação coletiva. Isso significa dizer que a ação docente é perpassada pelos saberes dos outros agentes envolvidos com o processo de ensino/aprendizagem. É entender o conhecimento escolar a partir das necessidades do contexto sociocultural. E, ao utilizar o livro didático, os professores devem ter em mente que os discursos que circulam em qualquer livro didático são práticas socioculturais, discursivas e extradiscursivas. Sob essa perspectiva, não é apenas produto do trabalho de “escrita” de um único autor. Ele nasce de seu relacionamento com outros textos e estruturas da própria linguagem. Logo, os discursos têm a ver com as relações de poder e com os saberes produzidos nestas relações. Para Oliveira, “a narrativa não é (nem pretende ser) um discurso neutro, um tipo de “espelho” que teria o poder e a pretensão de “revelar” o interior dos sujeitos, reproduzindo e 75 atendendo seus desejos, pensamentos e sentimentos”. (OLIVEIRA; 2007a; p. 71). Como qualquer “obra” humana, o livro didático é passível de questionamentos, que devem ser feitos, pois como afirma Julia (2001), elas também expressam as normas e finalidades que perpassam a cultura escolar. É pertinente a crítica e as sugestões feitas pelas professoras ao livro didático. No entanto, a nossa preocupação/questionamento parte da necessidade de identificar até que ponto essa critica é fundamentada pela prática na sala de aula? Entendemos que essa crítica seria uma espécie de “desculpa” – pelo menos para algumas professoras – para a não utilização do livro, levando em consideração a não participação nos eventos da Rede Educação, a falta de tempo para o estudo efetivo do material utilizado, além das dificuldades do alunado com a linguagem, entre outros fatores, apontados nas falas. No que se refere ao ensino de história realizado por essas professoras, encontramos desde a menção à “história do lugar”, até a sua depreciação como saber subordinado as outras disciplinas. Nosso questionamento foi: como você trabalha os conteúdos de História? O livro de história [de História] é um pouco ruim... Assim, ele é bom e ao mesmo tempo ruim, principalmente porque tem coisa assim... de outros países e de outros estados, ai às vezes a gente trabalha um pouco as coisas dele e trabalha também os conteúdos da nossa região. A gente tem outras cartilhas e a gente vai trabalhando uma semana com um livro na outra com outro. A gente trabalha a cidade [Aparecida] o início e tudo no mês de maio, e o assentamento a gente costuma trabalhar mais no mês de dezembro que é o mês do aniversário. Ai a gente tem um livro que conseguiu que fala sobre a história do assentamento, só que a gente trabalha nessa época. Só que a gente nunca foge do assunto não. A gente fala sobre o MST e essas coisas falando sobre os assentamentos já pegando a realidade deles. Isso já ajuda a ligar uma coisa com a outra. (Elis) História? É porque história... a gente trabalha história também só que a secretaria de educação manda que explore mais o Português e a Matemática, porque ela disse que História e Geografia tem que ensinar sim, mas não é tão “elevada” como (...) A Geografia é porque a gente trabalha as questões do lugar. O conteúdo de História eu trabalho com o livro didático, as regiões, mando os alunos fazer mapas, estudamos os rios... (Joana) Não há, por parte de Joana (e da Secretaria de Educação do Município, citada na fala), a compreensão de que o aluno necessita entender/conhecer sobre a história. Aqui aparece de forma explícita, a segregação entre os conteúdos de história e geografia e os conteúdos das Ciências, que, nas palavras da professora, são mais “elevados”, privilegiando assim, as “ciências de ponta”, inviabilizando a interdisciplinaridade como forma de se trabalhar na educação. Essa fala é reveladora das dicotomias estabelecidas durante muito 76 tempo entre as ciências e as humanidades. Dicotomias essas que podem ser vistas também em outras situações que perpassam o contexto da educação, como é o caso da separação entre teoria/prática; bacharelado/licenciatura; pesquisa/ensino. Atentando para a importância do ensino de história, Simone afirma que procura Ensinar história da maneira mais criativa possível, porque eu gosto de ensinar história. O que aconteceu há 10 minutos atrás já é história, já faz parte do nosso passado. Então eu procuro ensinar história nesse sentido, de que é importante estudar, porque faz parte da nossa vida e é interessante que ele [o aluno] seja lembrado disso todo dia. Foram fatos importantes, marcantes, que ficaram na nossa história que estão acontecendo hoje e que futuramente serão lembrados. Então é por isso que eu gosto de ensinar história, por esse motivo, e eu procuro fazer da melhor forma possível minhas aulas de história, pelo menos mais dinâmica, trago uma música, uma poesia, uma coisa que esteja relacionada com o texto para aquela aula. (Simone) Essa professora afirmou que gosta de história e pretende fazer um curso universitário nessa área. Por esse motivo ela demonstra maior “sensibilidade”, mesmo entendendo a história atrelada à visão de “fatos importantes que aconteceram no passado”. Nesse sentido, Seffner (2000) chama atenção para a necessidade de se compreender que o ensino de história é fundamental para a formação da cidadania do aluno. Para ele, ensinar história nas escolas de ensino fundamental e médio significa ir além das datas e fatos – que são importantes, mas não devem constituir-se na razão única do ensino de História. Para o autor, o professor “é alguém que coloca o aluno em contato com os processos de construção/reconstrução do passado, ou, em outras palavras, abre um diálogo acerca do presente, valendo-se das interpretações a que é submetida à produção do conhecimento histórico”. (SEFFNER; 2000; p. 260). 4.2 A cultura histórica/escolar no assentamento Acauã A discussão entre o modo de conceber a educação em qualquer circunstância ou nível é de importância fundamental, principalmente quando vem acompanhada do nosso posicionamento no presente e as concepções de conhecer e fazer o ensino. É na produção de conhecimentos em sala de aula, e no reconhecimento das especificidades do campo educacional aonde são produzidos os saberes que se efetiva a importância da educação. 77 Saberes que devem manter um diálogo ativo com o conhecimento cientifico e com os demais saberes presentes na sociedade. É na construção ou na elaboração das propostas curriculares, dos livros didáticos, que se define que tipo de sociedade e de cidadão se quer construir, o que a escola faz para quem faz, ou deixa de fazer. É também na construção ou definição das propostas, que são selecionados conteúdos, que vão contribuir para que os alunos entendam a sua história e o mundo que os cercam. Partindo disso, entendemos que a cultura escolar – enquanto tempo/espaço estruturado para que se processa o percurso educativo – se constitui pelas experiências, atividades, conteúdos, métodos, formas e meios empregados para cumprir os “fins da educação”. Fins que podem e devem ser pensados como possibilidades de articular os anseios, necessidades e interesses das pessoas envolvidas no processo (professores, alunos, sociedade). Ao “insistir” na necessidade de incluir o contexto social nas discussões educacionais, referendando a importância de trabalhar com as diversas relações que se estabelecem entre os sujeitos, o conhecimento e a realidade, o movimento pela educação contextualizada constrói e reconstrói “novos” saberes. Realidade que não é um elemento externo à prática educativa, mas um elemento constituinte/constitutivo do processo pedagógico. É a realidade – social, econômica, política e cultural – que propõe como desafios as necessidades históricas educacionais situadas num determinado tempo e lugar. Ou seja, são as condições objetivas e subjetivas de sobrevivência, convivência e transcendência que mediam, orientam e constituem experiências e conhecimentos a serem desvendados, apreendidos, assimilados, ensinados e re-elaborados. A educação contextualizada para a Convivência com o Semi-Árido se caracteriza, portanto, pela evidência dos diversos e múltiplos sabores e saberes do Semi-Árido. “É nesta perspectiva, que o currículo contextualizado exige a inclusão de questões locais, regionais e de contextos que, historicamente não mereceram atenção nem destaque dentro do ensino, das metodologias e processos de educação (...)” (MENEZES e ARAÚJO; 2007; p. 36). A riqueza dessa definição encontra-se na diversidade de interlocutores e experiências que estão sendo desenvolvidas, bem como na construção de políticas públicas que atendam as necessidades e potencialidades dessa região. Significar pensar e propor ações permanentes para que todos tenham acesso incondicional aos direitos sociais e políticos. É reconhecer a 78 importância dessas ações e aceitar as suas contribuições como base para as “práticas, representações e apropriações” no campo da educação/ensino/aprendizagem. Situação essa que não foi percebida na escola do assentamento Acauã. O abandono do livro didático; a pouca atenção dispersada ao ensino de história; a falta de capacitação das professoras para o exercício do magistério pautado na proposta de Convivência com o SemiÁrido e da educação contextualização; a falta de interesse/condições das professoras em participarem das capacitações da rede e da secretaria de educação, são questões que inviabilizam o processo educativo nessa escola onde se processou a pesquisa. Nessa perspectiva, ao chamar atenção para o desenvolvimento de experiências educativas inovadoras no Semi-Árido, Reis (2007) destaca a RESAB e as ações transformadoras da educação pautadas nos desafios da Convivência. Desafios que devem servir de incentivos para novas ações que considerem o Semi-Árido como parte integrante do universo maior da educação nacional. Citando Menezes e Araújo (2007), a educação contextualizada referenda o princípio político da valorização e articulação dos saberes; bem como a valorização dos espaços de aprendizagem, como a comunidade, o bairro, (...) a preocupação fundante é não restringir os saberes e os conhecimentos apenas ao ambiente da escola, mas articulá-los com os saberes da vida, nas suas variadas dimensões: afetiva, social, prática, estética, cultural. (p. 36). É considerar as particularidades e dinâmicas próprias desse espaço, suas relações identitárias, sua simplicidade e sua complexidade que passa pela compreensão do estado de constituição das subjetividades. Sem esse reconhecimento não é possível o respeito e o diálogo. Em outras palavras, significa criar vínculos com os modos de vida e os saberes locais, fazendo com que esses conhecimentos sirvam de leitura de mundo, para que todos possam perceber que o mundo – e a educação – ultrapassa a “identidade universal e homogeneizante” que desvaloriza as “outras” realidades que se encontram à margem da história/conhecimento/saber. É justamente na falta de vínculos entre os conhecimentos/saber e a realidade que residiram nossas preocupações quando fizemos as entrevistas com as professoras do assentamento. Elas não conseguiram – pelo menos de forma satisfatória – articular esses desafios ao processo de ensino/aprendizagem do qual são responsáveis diretas. Ao demonstrarem insegurança e falta de objetividade nas respostas, anulou-se as possibilidades de desenvolvimento do entendimento da multiplicidade temporal e histórica que compõe o cotidiano escolar. Além disso, perde-se o que existe de mais importante na proposta da 79 educação Convivência, ou seja, seu potencial de (re)construir o entendimento dos alunos sobre a realidade mais próxima. O professor, dentro dessa proposta de contextualização, precisa atentar para a cultura vivida pelos indivíduos, os sentidos, valores, crenças dos grupos e comunidades no qual a escola está inserida. Só assim poderão contribuir, com intensidade e fecundez, nos processos de afirmação das singularidades, da identidade e da diversidade cultural, de formação da sensibilidade crítico-criadora, da imaginação criante, no cuidado com os valores humanos. (ARAÚJO, 2007) Partindo desse pressuposto, “os próprios conteúdos de cada matéria/disciplina podem ser mobilizados e redimensionados, de forma sensível e criativa, inspirando a imaginação criante, a sensibilidade poética e o espírito inventivo de educandos e educadores”, ao mesmo tempo em que estes conteúdos passam a ter “carnalidade” e são melhor compreendidos. (ARAÚJO; 2007; p. 93). De acordo com Araujo, só quando passam a ser “ruminados” e vivenciados, os conhecimentos passam a ter sentido e pertinência, atravessando assim, o “abismo” que separa os diversos saberes evidenciados no cotidiano, da produção de conhecimento que são vivenciadas na escola. É a construção e (re)construção desses conhecimentos que permeiam todo o desenrolar da proposta de Convivência com o Semi-Árido. A nosso ver, devem ser usadas todas as estratégias necessárias para atingir os objetivos propostos pela educação contextualizada – descolonização dos currículos, ampliação das abordagens do desenvolvimento sustentável, o vínculo com os diversos e múltiplos saberes, etc. Só através desse vínculo é que o conhecimento construído vai sendo sistematizado no decorrer das ações, e a educação vai sendo (re)significada, ganhando novos contornos. “É esta implicação que permite que o conhecimento e as tecnologias – talvez menos ‘científicos’ e mais ‘afetivos’ –, não sejam apenas ‘comunicados’, mas sejam ‘desenvolvidos’ e, por isso mesmo, sejam mais efetivos”. (MARTINS; 2006; p. 194). É essencial que o professor trace linhas gerais de seu trabalho, tendo como eixo norteador as formas de organização, seleção e didatização das diversas áreas que compõem o trabalho com a educação. É na complexidade das práticas e dos discursos que configuram a noção da educação para a Convivência com o Semi-Árido. Nas palavras de Martins (2006) “é importante fazer com que a educação escolar ‘perceba a vida’ e ‘faça da vida um objeto de conhecimento’, rompendo com a perspectiva pretensamente neutra, racionalista e universalizante” (p. 213). 80 Trazendo essa discussão para o ensino de história, as contribuições da história local podem ser “gigantescas”, no sentido de possibilitar ao aluno apreender as relações sociais que se estabelecem, na realidade mais próxima. Seria, pois apresentar a historia cotidiana, através de varias formas, entre elas, o uso de fontes disponíveis na própria localidade – a literatura de cordel, músicas e poesias, as fotografias, o patrimônio histórico material e imaterial, os documentos dos arquivos, bem como, descobrindo e explorando as fontes vivas através de depoimentos orais. (BARBOSA; 2005.) Para tanto, os profissionais envolvidos com a educação tem que entender que ensinar é mais do que transmitir conteúdo. Significa manter uma relação ativa, aberta e flexível com os diversos/diferenciados saberes que perpassam a vida social, educacional, cultural, etc. Significa produzir conhecimentos/saberes com os sujeitos envolvidos nas situações concretas do ensino/aprendizagem. Concebida como produção histórica, a escola se constitui enquanto forma de cultura própria, caracterizada pelos dispositivos de normatização pedagógica, além de práticas e táticas reveladoras dos vários saberes acumuladas no processo de escolarização dos agentes que dela fazem parte. Seria, pois, trabalhar com o conceito de cultura escolar, focalizando os dispositivos de organização do tempo/espaço escolar, dos saberes a ensinar e condutas a inculcar. A articulação da proposta de Convivência com o Semi-Árido na escola do assentamento Acauã, a nosso ver, não vem favorecendo de forma efetiva a (re)significação da educação e do ensino de História. Isso pode ser expressa na não utilização do livro, na falta de “habilidade” em articular as aulas aos problemas da realidade mais próxima, e até na não participação das discussões desenvolvida pela Rede Educação. Nesse sentido, entendemos que os debates sobre a educação contextualizada para a Convivência com o Semi-Árido se encontra no nível teórico, inviabilizando a (re)significação da educação e do conhecimento histórico no assentamento Acauã, uma vez que não há vínculos entre os conhecimentos/saber/ciência/senso comum e a realidade do próprio assentamento. Essa proposta pode/deve ser melhor trabalhada com o intuito de entender as especificidades dos alunos e da comunidade, de ser reveladora da cultura histórica/escolar que são apresentadas pela Convivência. Seria, pois atenta para a articulação dos interesses do presente com as possibilidades de futuro, (re)significando essa prática. Trabalhar/problematizar essa proposta, mostrando o comprometimento com as bases e 81 princípios da educação contextualizada, possibilitando o redimensionamento, além de oportunizar o entendimento da educação contextualização e a vida no Semi-Árido. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Organizada sob a vida e a partir dela, uma pesquisa é sempre capaz de associar a imprecisão do viver e a precisão de navegação e, com isso, sempre se projetarão, continuamente, novos planos de viagem para ir tocando em frente e continuar tentando ver as coisas de modo diferente. (Sônia Regina Miranda) 82 Se as mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais propagadas pela proposta de Convivência com o Semi-Árido vêm redimensionando as leituras sobre essa região do país. Se, nessa perspectiva, as concepções sobre o papel da instituição escolar e a própria formação dos professores têm grande destaque nas discussões desenvolvidas pela sociedade civil organizada e os movimentos sociais, infelizmente essa mesma preocupação não perpassa a educação referendada pela escola pesquisa. Embora a educação seja uma prática social que veicula representações, valores, crenças que consolidam/transformam os saberes da realidade, infelizmente não foi possível ver como as professoras entrevistadas valorizam os conhecimentos/saberes dos alunos e da comunidade na qual a escola está inserida. Se a educação contextualizada para a Convivência com o Semi-Árido deve se constituir como possibilidade de construção e veiculação de saberes e práticas numa determinada realidade social e histórica, ela não se configura como realidade cotidiana do processo educativo na escola do assentamento Acauã. Nesse sentido, a valorização do cotidiano e da cultura deveriam se apresentar como imprescindíveis para a mobilização dos novos saberes vinculados pela contextualização. Os debates que têm sido travados nas Conferências, Seminários e demais fóruns de discussão sobre a educação para a Convivência com o Semi-Árido vêm evidenciando a diversificação dos interlocutores, proporcionando a consolidação da idéia da relação entre educação e a melhoria da qualidade de vida da população. Preocupações com a formação inicial e continuada dos professores, a gestão compartilhada e a contextualização dos currículos e dos livros didáticos vêm ganhando maior visibilidade em âmbito nacional. Nesse sentido, a RESAB traz em sua pauta a proposta de uma política educacional contextualizada no Semi-Árido que tem favorecido a reflexão da escola/educação desde a sua estrutura física, formação de professores, organização do currículo, até produção de materiais didáticos, tentando mobilizar a escola/educação, para que esta não se dê ao luxo de ignorar o chão que pisa. (MARTINS; 2004). Proposta essa que não se reflete de forma efetiva nas ações empreendidas pela escola pesquisa. Ao produzir o livro didático destinado às crianças, a RESAB possibilita o reconhecimento e a identificação delas com o mundo onde vivem. Dessa forma, o livro tem seu traço “inovador” justamente por favorecer o diálogo entre experiência, sentido, conhecimento e vida humana. Ou seja, “os livros didáticos ‘Conhecendo o Semi-Árido 1 e 2’ (...) vão dar sentido ao que somos e ao que nos acontece, ao que nos toca, que nomeia o que 83 fazemos, e nesse sentido não se trata de um falatório vazio, mas de potentes mecanismos de subjetivação” (LINS; 2007; p. 71) A valorização dos conhecimentos produzidos no cotidiano fortalece a relação entre a prática escolar e o contexto sociocultural. Dessa forma, a especificidade do lugar e os elos com a escola podem e devem funcionar como elementos mediadores do saber do professor e do aluno. Esperamos que este trabalho auxilie uma reflexão coletiva a respeito de como essa proposta de (re)significação da educação, e do ensino de história, a partir da lógica da Convivência, serve para a compreensão da constituição dos saberes e da própria cultura histórica/escolar. A esperança é que ele possa proporcionar novos planos e percursos de pesquisas na mesma área, contemplando essa realidade educacional que carece ainda de estudos mais pontuais. Assim, o nosso ponto de chegada é apenas um convite para que novas “viagens” possam ser empreendidas. Nossa reflexão a respeito desses recortes, dentre eles a História Regional e o Ensino de História, devem extrapolar os muros da academia e buscar outros interlocutores que possam contribuir para o engrandecimento/problematização desses temas, revelando outras realidades. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, C. B. (Org). Fontes históricas. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2006. p. 155-202 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. de. A Invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. 84 ARAÚJO, Miguel Almir Lima de. O vigor das tradições culturais dos sertões Semi-Áridos na ação de educar. 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Acesso em 04/07/2008 CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 FARIAS, A. E. M. de; MOREIRA NETO, M. e FORTUNATO, M. L. Políticas públicas de educação e relações de poder em assentamentos. Relatório PIBIC/CNPq/UFCG 2004/2005 e 2005/2006. Relatório da I Conferência Estadual sobre Educação para a Convivência com o semiárido. Patos-PB, RESAB. Junho de 2004. RELATÓRIO CPT/Sertão, 2005, s/p. RESAB. Educação para a convivência com o semi-árido: reflexões teórico-práticas. Juazeiro: Secretária Executiva da RESAB. 2004 90 7. ANEXOS ANEXO 1 I CONESA – CONFERÊNCIA NACIONAL EDUCAÇÃO PARA A CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO “Articulando Políticas Públicas de Educação para a Convivência Com o Semi-Árido” DECLARAÇÃO FINAL 91 Somos 340 participantes reunidos na I CONESA – CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO PARA A CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIO; advindos de 11 estados, representantes de Movimentos Sociais, Movimento Sindical, Universidades, Pastorais, ONG’s, Escolas Familiares Agrícolas, UNDIME, Prefeituras Municipais, Secretarias municipais e estaduais de educação e ministérios (MEC, MMA), Agencias de cooperação nacionais e internacionais (UNICEF, CESE, Fundação Abriq, GTZ, Save the childreen) com o objetivo de discutir e construir diretrizes norteadoras para políticas públicas de educação para a convivência com o Semi-Árido brasileiro. A nossa luta por uma educação contextualizada para a convivência com o Semi-Árido decorre de longos processos em que se inscrevem diversas experiências de educação, governamentais e não governamentais formais e não formais situadas no Semi-Árido brasileiro, que vêm fazendo inflexões curriculares e metodológicas e colocando importantes questões no sentido de fazer a educação do Semi-Árido vincular-se às formas de vida e às problemáticas aqui existentes. A nossa caminhada surge quando em 1998 diversas instituições reuniram-se em Juazeiros, Bahia, no Simpósio Escola e Convivência com a Seca, apoiado pelo Projeto Nordeste, pela UNDIME e pelo UNICEF. Em 2000 realizou-se, entre os dias 04 e 06 de setembro, também em Juazeiros, Bahia, o I Seminário de Educação no Contexto do Semi-Árido Brasileiro. Deste seminário foi aprovado um protocolo de compromissos, visando à ampliação das discussões e das formas de ação conjunta e articulada visando à melhoria das políticas públicas no campo educacional e da qualidade do ensino e dos sistemas educacionais do Semi-Árido brasileiro. É nesse contexto que surge a RESAB – Rede de Educação do Semi-Árido Brasileiro, sendo um espaço de articulação política regional da sociedade organizada, congregando instituições Governamentais e Não-Governamentais, que atuam na área de Educação no Semi-Árido Brasileiro, sem preconceitos de cor, raça, sexo, origem política, social, cultural ou econômica, com o intuito de elaborar propostas de políticas públicas no campo educacional e desenvolver ações que possam contribuir com a melhoria do ensino e do sistema educacional no Semi-Árido brasileiro. O QUE DENUNCIAMOS 92 Temos chamado a atenção do Estado Brasileiro acerca da situação da educação no SemiÁrido e da necessidade de se construir um novo olhar para esta região, desconstruindo o imaginário de seca e destruição que tem permitido a invisibilidade de outros problemas tão ou mais sérios do que ela, como imensa concentração da terra e a falta de acesso à água, que empurra milhões de famílias para pobreza no campo e nas cidades. Da mesma forma, a realidade da educação no Semi-Árido é escandalosamente excludente como pode ser percebida nos indicadores abaixo: · Mais de 350 mil crianças, entre 10 e 14 anos não freqüentam a escola; · Os alunos demoram 11 anos para concluir o ensino fundamental; · Mais de 390 mil adolescentes (10, 15%) são analfabetos; · Mais de 317 mil crianças e adolescentes trabalham; · No Semi-Árido brasileiro existe o dobro de não alfabetizados quando comparados com a média nacional; · E quase o dobro de ocupados que a média nacional, na faixa etária entre 7 e 14 anos; · A maioria das escolas funciona de maneira precária e sem nenhuma estrutura; · A infra-estrutura atual da educação atende a menos de 20% das necessidades do SAB; · Ausência de políticas de formação inicial e continuada para educadores e educadoras que contemple a discussão sobre a convivência com o Semi-Árido; · Os educadores e educadoras são mal remunerados; · Os currículos são desarticulados da realidade semi-árida e propagadores das vulnerabilidades da região; · Os materiais didáticos utilizados nas escolas são produzidos em outras regiões, especialmente no Sudeste do Brasil. O QUE DEFENDEMOS Lutamos por um Semi-Árido justo e igualitário, com reais condições de inclusão de toda a sua população através de políticas públicas apropriadas e que sejam capazes de responder às demandas dos povos do Semi-Árido. E uma política pública educacional pautada pelos princípios da educação para convivência com o Semi-Árido que se baseia em: 93 · Integridade dos direitos dos atores e atrizes do processo educacional; · Com gestão democrática garantindo e plena participação dos vários setores, atores e atrizes na sua execução; · Equidade na distribuição de renda e no acesso do conhecimentos cultural, cientifico, moral, ético e tecnológico em todos os níveis da educação; · Intersetorialidade nas definições das políticas públicas educacionais; · Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade na construção do conhecimento; · Sustentabilidade ambiental, social, econômica e cultural como pilares dos processos e projetos educacionais; · Formação contextualizada e integral de educadores e educadoras abrangendo os aspectos socioculturais, político e ambientais do Semi-Árido; · Re-orientação curricular que valorize o diálogo permanente dos saberes locais com o universal; · Materiais didáticos pedagógicos re-significando os discursos e imagens atribuídos ao Nordeste e ao Semi-Árido; · Respeito à pluralidade e à diversidade de culturas, credos, etnias, raças, idéias e de opções metodológicas no processo de ensino-aprendizagem; · Descentralização, transparência e gestão compartilhada; · Valorização do magistério e garantia de condições de aperfeiçoamento e de formação continuada e permanente dos educadores e educadoras; · Respeito e promoção dos direitos humanos, do meio ambiente e dos princípios e direitos constitucionais; · Aplicabilidade dos instrumentos legais que visam à construção de uma educação pública e de qualidade no Semi-Árido e no Brasil; · Respeito e promoção dos direitos das crianças, adolescentes e jovens. NOSSOS COMPROMISSOS 1. Publicação das diretrizes construídas na I CONESA; 2. Realização em 2008 da II CONESA; 3. Fortalecimento dos grupos gestores estaduais da RESAB; 4. Fortalecer a estrutura de gestão da RESAB , garantindo a permanente articulação das instituições pertencentes à rede; 94 5. Garantir a fluência das informações (comunicação) dentro e fora da RESAB; 6. Investir na qualificação e garantir o funcionamento do grupo de formadores; 7. Articulação junto às diversas esferas dos governos; 8. Manter a luta permanente por políticas públicas integradas; 9. Garantir a participação da RESAB nos espaços de articulação das políticas públicas educacionais; 10. Lutar pela garantia da inclusão do livro didático “Conhecendo o Semi-Árido” no programa nacional do livro didático do MEC; 11. Manter e ampliar a parceria com agências de cooperação nacionais e internacionais; 12. Fortalecer a parceria junto às entidades integrantes da ASA; 13. Reservar espaço nos meios de comunicação que as instituições já mantêm para publicizar as diretrizes da I CONESA; 14. Fortalecer a articulação entre a RESAB e os Conselhos Municipais e Estaduais de educação; 15. Fortalecer os instrumentos de controle social das políticas de educação em todas as instâncias; 16. Fortalecer o selo editorial da RESAB; 17. Intensificar a articulação junto às universidades públicas. Juazeiro – BA, 20 de maio de 2006. ANEXO 2 Conselho Nacional de Educação Câmara de Educação Básica Resolução CNE/CEB 1, de Abril de 2002. O Presidente da Câmara da Educação Básica, reconhecido o modo próprio de vida social e o de utilização do espaço do campo como fundamentais, em sua diversidade, para a constituição da identidade da população rural e de sua inserção cidadã na definição dos rumos da sociedade brasileira, e tendo em vista o disposto na Lei nº 9.394, de 290 de dezembro de 1996, e na Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que aprova o Plano Nacional de Educação, e no Parecer CNE/CEB 36/2001, homologado pelo Senhor Ministro de Estado da Educação em 12 de março de 2002, resolve: 95 Art. 1º A presente resolução institui as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do campo a serem observadas nos projetos das instituições que integram os diversos sistemas de ensino. Art. 2º Estas Diretrizes, com base na legislação educacional, constituem um conjunto de princípios e de procedimentos que visam adequar o projeto institucional das escolas do campo às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e Médio, a Educação de Jovens e Adultos, a Educação Especial, a Educação Indígena, a Educação Profissional de Nível Técnico e a Formação de Professores em Nível Médio na modalidade Normal. Parágrafo único. A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social de vida coletiva no país. Art. 3º O Poder Público, considerando a magnitude da importância da educação escolar para o exercício da cidadania plena e para o desenvolvimento de um país cujo o paradigma tenha como referência a justiça social, a solidariedade e o diálogo entre todos, independente de sua inserção em áreas urbanas ou rurais, deverá garantir a universalização do acesso a população do campo à Educação Básica e à Educação Profissional de Nível Técnico. Art. 4º O projeto institucional das escolas do campo, expressão do trabalho compartilhado de todos os setores comprometidos com a universalização da educação escolar com qualidade social, constituir-se-á num espaço público de investigação e articulação de experiências e estudos direcionados para o mundo do trabalho, bem como para o desenvolvimento social, economicamente justo e ecologicamente sustentável. Art. 5º As propostas pedagógicas das escolas do campo, respeitadas as diferenças e o direito à igualdade e cumprindo imediata e plenamente o estabelecido nos artigos 23, 26 e 28 da Lei 9.394, de 1996, contemplarão a diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia. Parágrafo único. Para observância do estabelecido neste artigo, as propostas pedagógicas das escolas do campo, elaboradas no âmbito da autonomia dessas instituições, 96 serão desenvolvidas e avaliadas sob a orientação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica e a Educação Profissional de Nível Técnico. Art. 6º O Poder Público, no cumprimento das suas responsabilidades com o atendimento escolar sob à luz da diretriz legal do regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, proporcionará Educação Infantil e Ensino Fundamental nas comunidades rurais, inclusive para aqueles que não concluíram na idade prevista, cabendo em especial aos Estados garantir as condições necessárias para o acesso ao Ensino Médio e à Educação Profissional de Nível Técnico. Art. 7º É de responsabilidade dos respectivos sistemas de ensino, através de seus órgãos normativos, regulamentar as estratégias de atendimento escolar do campo e a flexibilidade da organização do calendário escolar, salvaguardando, nos diversos espaços pedagógicos e tempos de aprendizagem, os princípios da política de igualdade. § 1º O ano letivo, observado o disposto nos artigos 23, 24 e 28 da LDB, poderá ser estruturado independente do ano civil. § 2º As atividades constantes das propostas pedagogias das escolas, preservadas as finalidades de cada etapa da educação básica e da modalidade de ensino prevista, poderão ser organizadas e desenvolvidas em diferentes espaços pedagógicos, sempre que o exercício do direito à educação escolar e o desenvolvimento da capacidade dos alunos de aprender e de continuar aprendendo assim o exigirem. Art. 8º As parcerias estabelecidas, visando ao desenvolvimento de experiências de escolaridade básica e de educação profissional, sem prejuízo de outras exigências que poderão ser acrescidas pelos respectivos sistemas de ensino, observarão: I- articulação entre proposta pedagógica da instituição e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a respectiva etapa da Educação Básica ou Profissional; II- direcionamento das atividades curriculares e pedagógicas para um projeto de desenvolvimento sustentável; III- avaliação institucional da proposta e de seus impactos sobre a qualidade da vida individual e coletiva; IV- controle social da qualidade da educação escolar, mediante a efetiva participação da comunidade do campo. 97 Art. 9º As demandas provenientes dos movimentos sociais poderão subsidiar os compromissos estruturantes das políticas educacionais, respeitado o direito à educação escolar, nos termos da legislação vigente. Art. 10. O projeto institucional das escolas do campo, considerado o estabelecido no artigo 14 da LDB, garantirá a gestão democrática, constituindo mecanismos que possibilitem estabelecer relações entre a escola a comunidade local, os movimentos sociais, os órgãos normativos do sistema de ensino e os demais setores da sociedade. Art. 11. Os mecanismos de gestão democrática, tendo como perspectiva o exercício do poder nos termos do disposto no parágrafo 1º do artigo 1º da Carta Magna, contribuirão diretamente: I- para a consolidação da autonomia das escolas e o fortalecimento dos conselhos que propugnam por um projeto de desenvolvimento que torne possível à população do campo viver com dignidade; II- para a abordagem solidária e coletiva dos problemas do campo, estimulando a autogestão no processo de elaboração, desenvolvimento e avaliação das propostas pedagógicas das instituições de ensino. Art. 12. O exercício da docência na Educação Básica, cumprindo o estabelecido nos artigos 12, 13, 61 e 62 da LDB e nas Resoluções 3/1997 e 2/1999, da Câmara da Educação Básica, assim como os Pareceres 9/2002, 27/2002 e 28/2002 e as Resoluções 1/2002 e 2/2002 do Pleno do Conselho Nacional de Educação, a respeito da formação de professores em nível superior para Educação Básica, prevê a formação inicial em curso de licenciatura, estabelecendo como qualificação mínima, para a docência na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino fundamental, o curso de formação de professores em Nível Médio na modalidade Normal. Parágrafo único. Os sistemas de ensino, de acordo com o artigo 67 da LDB desenvolverão políticas de formação inicial e continuada, habilitando todos os professores leigos e promovendo o aperfeiçoamento permanente dos docentes. Art. 13. Os sistemas de ensino, além dos princípios e diretrizes que orientam a Educação Básica no país, observarão, no processo de normatização complementar da formação de professores para o exercício da docência nas escolas do campo, os seguintes componentes: 98 I- estudos a respeito da diversidade e o efetivo protagonismo das crianças, dos jovens e dos adultos do campo na construção da qualidade social de vida individual e coletiva, da região, do país e do mundo; II- propostas pedagógicas que valorizem, na organização do ensino, a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso ao avanço científico e tecnológico e respectivas contribuições para a melhoria das condições de vida e a fidelidade aos princípios éticos que norteiam a convivência solidária e colaborativa nas sociedades democráticas. Art. 14. O financiamento da educação nas escolas do campo, tendo em vista o que determina a Constituição Federal, Np artigo 212 e no artigo 60 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, a LDB, nos artigos 68, 69, 70 e 71, e a regulamentação do fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização e do Magistério – Lei 9.424, de 1996, será assegurado mediante cumprimento da legislação a respeito do financiamento da educação escolar no Brasil. Art. 15. No cumprimento do disposto no § 2º do art. 2º, da Lei 9.424,d e 1996, que determina a diferenciação do custo-aluno com vistas ao financiamento da educação escolar nas escolas do campo, o Poder Público levará em consideração: I- as responsabilidades próprias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios com o atendimento escolar em todas as etapas e modalidades da Educação Básica, contemplada a variação na densidade demográfica e na relação professor/aluno; II- as especificidades do campo, observadas no atendimento das exigências de materiais didáticos, equipamentos, laboratórios e condições de deslocamento escolar não poder ser assegurado diretamente nas comunidades rurais; III- remuneração digna, inclusão nos planos de carreira e institucionalização de programas de formação continuada para os profissionais da educação que propiciem, no mínimo, o disposto nos artigos 13, 61, 62 e 67 da LDB. Art. 16. Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, ficando revogadas as disposições em contrário. FRANCISCO APARECIDO CORDÃO Presidente da Câmara de Educação Básica. 99 100 COPYRIGHT ANA ELISABET MOREIRA DE FARIAS

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