terça-feira, 22 de maio de 2012

A FAMÍLIA FUGGER

AMATO E OS NASCI Alfredo Rasteiro ........................................................................................................................................................... 4 PANACEIAS NOSSAS DE CADA DIA, “ONTEM E HOJE” Fanny Andrée Font Xavier da Cunha ........................................................................................................................12 À PROCURA DA IDADE DO CANCRO NAS CENTÚRIAS DE AMATO LUSITANO António Lourenço Marques .......................................................................................................................................22 ACHEGAS PARA O ESTUDO DA ECOLOGIA (...) DA BEIRA INTERIOR António Manuel Lopes Dias ......................................................................................................................................26 TUBERCULOSE E IDADES DO HOMEM Maria Adelaide Neto Salvado ...................................................................................................................................32 O SANATÓRIO DAS PENHAS DA SAÚDE - TEMPLO DO TEMPO Elisa Pinheiro ............................................................................................................................................................40 A IDADE MILITAR (...) DO HOMEM DA GARDUNHA Albano Mendes de Matos ..........................................................................................................................................42 A IDADE DE SER “RATINHO” Maria da Assunção Vilhena Fernandes .....................................................................................................................48 A IDADE DO QUOTIDIANO António Maria Romeiro de Carvalho .........................................................................................................................53 O FIO DE “LÂQUESIS”... NAS PALAVRAS DOS POETAS Maria de Lurdes Gouveia da Costa Barata ................................................................................................................58 AS IDADES DO HOMEM - IMUNDÍCES E CONSPURCAÇÕES Victor Saínhas ...........................................................................................................................................................64 AS IDADES DO HOMEM - VIAGENS NO TEMPO E NA MEMÓRIA J. Ribeiro Farinha ......................................................................................................................................................67 CONCLUSÕES - V JORNADAS DE ESTUDO ...........................................................................................................71 SUMÁRIO 2 Medicina e História É quase uma banalidade dizer que o estudo da história da medicina, infelizmente descurado na formação universitária das últimas gerações de médicos, se apresenta imprescindível para compreendermos, em toda a sua extensão, o estado dos conhecimentos actuais, a natureza da própria prática médica e qual pode vir a ser a sua orientação futura. Estudo indispensável também para atingir o mais cabal conhecimento do Homem, se integrado no concerto da interdisciplinaridade. E que só analisando esse passado, perscrutando nele o que foi efémero e o que persistiu para alimentar o desenvolvimento de edifício tão assombroso, só captando a genuína luz da vida transcorrida, que vivifica o presente, poderemos penetrar os fundamentos das preocupações e de muitos dos problemas éticos que se erguem neste campo, hoje, e que reclamam satisfação. Não pretendemos, obviamente, substituir-nos ao papel que a Escola deve exercer neste domínio. Queremos tão somente contribuir, ainda que de forma despretensiosa, mas com a exigência do rigor científico e do contributo das diversas ciências sociais, para que o estudo deste nosso passado, tão significativamente enriquecido pela obra de Amato Lusitano, não esmoreça e se mantenha, dando seguimento ao trabalho vultuoso e muito profícuo de investigadores notáveis, como foi o caso do médico historiador Dr. José Lopes Dias e do linguista Dr. Firmino Crespo. A esta última figura, que acabamos de perder, devemos esse trabalho notável que foi a tradução das Sete Centúrias de Curas Médicas, sem a qual, a obra do grande médico albicastrense da Renascença seria menos conhecida e talvez arredada da investigação dos estudiosos, que assim, a pouco e pouco, lhe têm relevado a singular grandiosidade, marca eloquente daquela época e dos homens que a fizeram. Dívida que aqueles que pela História da Medicina se interessam jamais saldarão. Escolheu-se para enquadrar os trabalhos das VII Jornadas de estudo “Medicina na Beira Interior - da pré-história ao séc. XX”, a figura da Mulher nas suas relações com a Medicina. A Mulher como alvo desta disciplina, mas também como agente. Aqui, Amato Lusitano é de uma riqueza extraordinária. Esperamos que os trabalhos que vão surgir sejam bem comprovativos de uma realidade fundamental, mas ainda assim tantas vezes dissimulada. A direcção 3 AMATO E OS NASCI por Alfredo Rasteiro* Na Torre do Tombo, em Lisboa, neste mês de Novembro de 1994, esteve patente uma exposição intitulada «O Testamento de Adão», inspirada num dito atribuído a Francisco I (1515-1547), quando se interrogava sobre a divisão do mundo feita em 1494 entre D.João II e Reis Católicos. Porém, o que figura no Génesis, 3, 17-20 será qualquer coisa como: «Porque seguiste a tua mulher e comeste o fruto proibido, terás que trabalhar. A terra produzirá espinhos e abrolhos e comerás erva. Comerás pão amassado com suor do rosto...» e o actual Chefe da Igreja Católica, João Paulo II, em Fevereiro de 1992, no Senegal, mantendo esta linha de pensamento, reconhece que a pobreza ofende a dignidade humana e impede o exercício da Liberdade. Cientes deste facto, muitos médicos desde sempre se sentiram na obrigação de trabalhar e embora alguns possam ter mais do que o necessário, haverá outros que talvez passem dificuldades e não têm apoios. Sempre assim foi e para melhor poderem cumprir obrigações livremente assumidas perante as comunidades em que se inserem, sem quebra da dignidade própria e provavelmente sem as palhaçadas que algumas vezes se observam onde menor probabilidade haveria para que surgissem, sempre houve médicos que tiveram de procurar apoio junto de detentores do poder instituido. O patrono das Jornadas de História da Medicina de Castelo Branco João Rodrigues (1511-1568) foi médico das poderosas famílias Mendes Benvenides, Nasci e Yahia, de Manuel Cirne, Feitor em Antuérpia, do embaixador em Roma Afonso de Lencastre, de D. Jacoba dei Monte e de Vicencio de Nobilibus, irmã e sobrinho do Papa Júlio III, buscou a protecção de Cosme de Médicis, de Hipolito de Este, Cardeal de Ferrara, do Papa Júlio III. Garcia de Orta (1500-1568) acompanhou Martim Afonso de Sousa e foi médico de vice-reis. Pedro Nunes (1502-1578) foi despachado para a corte de D. Luis e esteve muito socegado em Coimbra, onde Tomaz Rodrigues da Veiga (1513-1579) cuidava do seu jardim botânico, atendia alunos, escrevia lições, fazia versos, conversava e jogava cartas com o reitor, não fazia ondas... Andres Laguna (1499-1563) trabalhou para Carlos V. Em 1544 Andreas Vesal (1514-1564) foi médico de Carlos V e em 1559 passou a assistir Felippe II. Em 1564 Carolus Clusius (1526-1609) orientava uma viagem de estudo de Jacobo Fugger em Portugal. Ambroise Paré (1510-1590) acompanha o chefe militar Monte- Jean antes de pertencer ao Conselho e ser Cirurgião do rei de França ... No corrente ano de 1994, o aparecimento, em Fevereiro, de uma tradução portuguesa do romance LA SENORA, 1992, de Catherine Clément, evocando boas relações entre herdeiros do banqueiro Francisco Mendes e o médico Amato Lusitano e a apresentação entre 21 de Junho e 4 de Setembro da exposição documental «Os Judeus Portugueses entre os Descobrimentos e a Diáspora» na Fundação Gulbenkian, foram actos culturais que podem ter contribuído para um melhor conhecimento de Amato e dos Nasci no quadro da cultura portuguesa, na história do Renascimento europeu. Catherine Clement contactou Pierre Amado, da Ecole Pratique des Hautes Études, da família a que pertenceu Amato e falou com Alain Oulman, da família Benveniste, regressada a Portugal durante o holocausto nazi. A exposição que esteve patente em Lisboa mostrou a bela medalha de Pastorino de Pastorini, 1553, da Colecção George Halphen, Paris, com o retrato de Beatriz de Luna, Hannah Garcia Mendes, Gracia Nasci (1510-1569), La Senora, Ha-Geveret, Glória de Israel, casada em 1528 com o banqueiro de Lisboa Francisco Mendes Benveniste, falecido em 1536, irmão do banqueiro da praça de Antuérpia Diogo Mendes, falecido em 1542, mãe de Brianda Mendes (1531- Figura 1 - Amato Lusitano in DIOSCORIDIS ANAZARBEI DE MEDICA MATERIA LIBROS QVINQVE, Venetiis, 1553 4 1599) dita Reyna ou Regina, casada em 1545 com João Micas, Miquez, Joseph Nasci (1515-1579), presumível autor do BEN PORAT JOSEF, 1576, duque de Naxos, filho de Agostinho Micas, Miguel, Samuel Nasci, que fora Lente de Prima de Medicina na Universidade Portuguesa, em Lisboa, entre 1515 e 1526, falecido em 1532. Antes de iniciar a minha tentativa de desenvolvimento do tema AMATO E OS NASCI seja-me permitido registar cinco curtos comentários ao interessante livro de Catherine Clement: - Primeiro, de agradecimento, por se lembrar do LUSITANO; - Segundo, não creio que Amato tenha desempenhado algumas das tarefas que Catherine Clement lhe atribui, pois mais depressa poderiam ter sido desempenhadas por um amigo de Amato, Diogo Pires, dito Jacob Flavio, de Évora (1517-1597), que até poderia ter tido alguma formação como médico e cujo itinerário muitas vezes se cruza com o de Amato, poeta que até poderia ter acrescentado algum picante a umas pouco poéticas relações havidas neste romance entre o «Nasi» e uma Faustina, prostituta veneziana. A obra poética e as viagens de Diogo Pires, a sua composição dedicada «AO MÉDICO JOÃO RODRIGUES, ESTANDO O AUTOR DE PARTIDA PARA LOVAINA» com recordações de Salamanca («águas alouradas do Tormes»), o poema DE LVSITANORVM TVMVLO IN VRBE FERRARA, as suas composições ragusinas como as que dedicou a Simão Benesso, os louvores a Solimão e o EPITÁFIO DE AMATO LUSITANO, 1568, enquadram-se naquele ciclo, sem esquecer que uma tal hipótese exploratória é contrariada pela aparente ausência de qualquer obra de Diogo Pires dedicada a José Nasci, que até poderia ser como aquelas em que são lembradas as searas da pátria distante, as uvas à espera da colheita, o brilho das folhas de oliveira, ou simplesmente Rufa, tocadora de cítara e Mamertina Cloe, flautista de bairro, dadas à libertinagem, vergonhas do bordel de Valência mesmo para Diogo Pires, pois «um poeta ou faz versos, ou bebe»: «Aut uersus facit, aut bibit poeta.»; - Depois, chamar Lusitano ao Amato, à semelhança de autores como Mario Santoro em AMATO LUSITANO ED ANCONA,1991, I.N.I.C., Coimbra, não é habitual na terra portuguesa em que a tragédia dos exílios forçados e a qualidade e número de quantos adoptaram o epónimo impedem que se diga «Lusitano só há um, o Amato e mais nenhum». É certo que Catherine Clement, na página 78 da tradução do seu romance apresenta João Rodrigues de Castel(o) Branco (e) que se tornou o grande, o querido Amato Lusitano, nosso médico, que por sua bondade e paciência bem terá merecido o ápodo de «Angelicus» e que depois o nomeia por três vezes Amato Lusitano entre esta página e a página 105, mas depois passa a designá-lo simplesmente Lusitano umas 36 vezes até à página 175, até se despedir de Juan Rodriguez que nesta página é despachado numa viagem sem regresso para Salonica. Índice, dedicatória, invocação, texto, cronologia, elementos bibliográficos e agradecimentos, são 361 páginas. Creio que o bom nome de Amato terá de algum modo contribuído para que na terra portuguesa o epónimo Lusitano caísse em desuso, chamo a atenção para o facto de que durante o século XIII sempre os portugueses se consideraram Hispanos e se diziam Portugalenses, como o Pedro Hispano Portugalense (1210-1277) que foi Chefe da Igreja de Roma, mas que após o discurso de Garcia de Meneses ao Papa Sisto IV em 31 de Agosto de 1481 alguns adoptarão o epónimo Lusitano, como L(ucio) Andr(e) Resendii Lvsitani em 1 de Outubro de 1534 que encurtará o nome na Oratio habita Conimbricae in gymnasio regio de Julho de 1551, assinada como L. Andr. Resendii sem epónimo, e será simplesmente como «Conimbricences» que em 1 de Outubro de 1552 Hilario Moreira dedicará a sua Oração de Sapiência ao «inuictissimum Lusitaniae Regem D. Joanem Tertium », enquanto por toda a Europa Homens orgulhosos das suas raízes no ocidente peninsular juntavam Lusitano aos seus nomes, tal como Amato Lusitano, seu sobrinho neto Filipe Montalto Lusitano (1567-1616) e o seu companheiro de infortúnio Didacus Pyrrus Lusitanus (1517-1597), Roderico a Fonseca Lvsitano (1550-1622) e seu sobrinho Gabrielis a Fonseca Lvsitani, Stephani Roderici Castrensis Lvsitani (1559- 1637), Zacuto Lusitano (1575-1642) e muitos, muitos mais, parecendo-me demasiadamente curto e pouco elegante dizer-se que Lucio André de Resende terá deixado de usar o epónimo Lusitano porque ficaria com um nome muito comprido... Desgraçadamente, porém, tais danças de nomes não traduzem apenas incertezas relativas à identidade nacional, antes se apresentam como contraponto a infelizes movimentos xenófobos que será impossível erradicar completmente e que voltam sempre com afloramentos cíclicos de que são tristes exemplos as recentes alcunhas de «mouros» e «cristãos novos» atribuídas por profissionais da política a habitantes da margem sul do Tejo e a militantes de última hora de algum partido de sucesso; - Catherine Clément coloca Dona Garcia em 1553 a regressar sòzinha, «clandestinamente a Veneza, para comprar a esmeralda do vice-rei das Indias». Não se tratava de nenhuma pedra «veryl», como aquelas que Garcia d’Orta descreveu no COLOQUIO 43, quando Figura 2 - Dona Beatriz de Luna 5 diz que «na Índia ha berilo q he assi como Cristal, e a o em grandes pedaços de q faze jaros. e escudellas» e de que em Lisboa se faziam lentes para óculos. Amato sabia que Dona Gracia tinha adquirido um bezoário que pertencera a um vice-rei. Trata-se de uma concreção que pode surgir em estômagos de ruminantes e do próprio homem em resultado da deposição de sais calcáreos sobre fibras de plantas e pelos ingeridos e que na época era utilizada como antídoto universal; - Finalmente, utilizo a grafia Nasci (príncipe), por ser a que estava em uso na casa de Abraham aben Usque em 7 de Setembro de 1553 e figura na CONSOLACAM AS TRIBVLACOENS DE ISRAEL, composto por Samuel Usque e dedicado à ILLUSTRISSIMA SENHORA DONA GRACIA NASCI destinado a servir como um «piqueno ramo de fruta nova a nossa nação Portuguesa». AMATO E OS NASCI trilharam na vida itinerários que parece coincidirem entre 1536 e 1553 e no ano 5320 da Criação do Mundo que para os Hebreus começou 3760 anos antes de Cristo, em Salonica, Amato Lusitano dedicou a CVRATIONVM MEDICINALIVM CENTVRIAE QUINTA, 1560, ao Senhor José Nasci, «pessoa ornada de ilustres e insignes virtudes», com votos de felicidades na companhia de Regina sua esposa e da muito ilustre Senhora Grécia e seus aderentes e esta dedicatória mais parece uma despedida. Registe-se que a publicação da QUINTA CENTÚRIA, quinta série de cem casos clínicos e respectivos comentários e não a obra completa «sete volumes de um Ensaio de Medicina » como consta na página 175 da tradução portuguesa do livro de Catherine Clement, surge numa época em que Amato reencontrara condições propícias ao estudo e à reflexão, podendo dedicar-se a doentes e aos livros, conviver com parentes e amigos, cobrar honorários clínicos parcimoniosos e, de alma limpa, fazer testamento, o célebre Amati lusurandum, onde afirma ter rejeitado grandes salários e nunca ter procurado ser rico, desejando apenas ser útil aos seus doentes, recusando publicar livros sem outra ambição que não fosse contribuir de qualquer modo para a saúde da humanidade. A QUINTA CENTÚRIA oferece-nos dados muito interessantes para o conhecimento do mundo em que viveu Amato, suas viagens e suas relações. Começa pela dedicatória a José Nasci e a partida de Ancona para Pesaro, onde já estava no dia 5 de Fevereiro de 1556 (Cura LXXXIV) e onde continuava em Maio deste ano (Cura XCVIII ) ao registar que um determinado indivíduo chegado há pouco a Pesaro fora seu companheiro em viagem no Oceano Atlântico cerca de vinte anos antes, possibilitando datar com alguma segurança a sua partida de Lisboa para Antuérpia, que se terá realizado em 1536 e não em 1534 como pensava Maximiano Lemos. Este quinto conjunto de cem assuntos clínicos e respectivos comentários, inclui diálogos com o sobrinho e discípulo Brandão, recorda no Caso LXX a Cura Lll da PRIMEIRA CENTÚRIA e a sua muita admiração por Vesálio e especialmente na Cura LXXXVI não deixa de lembrar a família de Leão Abravanel e sua esposa Dona Luna, referindo lembrar-se de que em Castelo Branco tratara um rapaz de nome Silva, certamente recordado do infeliz caso clínico XX da SEGUNDA CENTÚRIA, Roma, 1551, em que ilibara de negligência o médico Calaphurra, que não conseguira salvar uma filha de Leão Hebreu, atestando o que pensava Amato Lusitano de Castelo Branco, em Ancona, em 17 de Maio de 1550. A partir da Cura LXIX, as Curas da QUINTA CENTURIA referemse a casos de Pesaro e é especialmente interessante a Cura LXXIII, não pelas tropelias que fizeram ao pobre doente que durante seis dias bradou por socorro, mas por apontar a preocupação de Miguel relativamente ao estado de saúde de Lourenço de Gentílibus, notário em Pesaro, assistido por Amato e dois médicos Disauranos e este Miguel, preocupado com a saúde de um notário moribundo, poderia ser a pessoa ornada de ilustres e insignes virtudes a quem a Centúria é dedicada, o filho do lente de Prima de Medicina de Lisboa Agostinho Miguel, João Miguel (Micas) / José Nasci. Nesta QUINTA CENTÚRIA a referência a itinerários que cruzam Ancona e podem ter a ver com actividades da Casa dos Mendes, é digna de registo: - Cura IV - João Edido Gradu, teutónico, mercador de Antuerpia, - Cura V - António Carrion, de 30 anos, vindo de Nápoles, em trânsito para Bruges, Flandres, sua terra natal - Cura XXIV - Joannito, teutão, mercador em Antuerpia - Cura XXVI - Naaman, sacerdote, vindo da Grécia, - Cura XLIII - João Thomasi, mercador em Veneza, regressado de Antuerpia, - Cura LVI - Luca, da Ligúria, marinheiro, regressado Figura 3 - Biblia de Ferrara, 1552 6 de Alexandria, - Cura LXI - Raphael Thadeu, florentino, trabalhador em Ancona, adoeceu em Antuérpia e regressou a Itália para tratamento, - Cura LXXVII - Maalem de Castro, cobrador de impostos no Egipto, de passagem por Pesaro - Cura LXXXVII - Pisaurina casada com indivíduo que trazia víboras de Ancona - Cura XC - Anna Pinta, senhora que viveu em Inglaterra, casada com indivíduo que passou muitos anos na índia. A aproximação entre os herdeiros de Francisco Mendes e Amato terá sido consequência de recurso aos serviços médicos do profissional de grande prestígio João Rodrigues, nascido em Castelo Branco, licenciado em Salamanca, conhecedor profundo da MATÉRIA MÉDICA de Dioscórides (40-90) e essas relações sofreram e foram resultado de condicionalismos determinados por factores económicos e religiosos que nem o Lusitano nem os Nasci desencadearam. Em 1535 Portugal foi assolado por uma fome que obrigou o rei a comprar cereais em Dantzig e na Flandres, mas em 1534, já «D. João III devia por juros vencidos, dívidas das casas da India e câmbios de Flandres, quatro anos das receitas do reino, ou oitocentos contos», segundo Oliveira Martins, História de Portugal, 1879, e então, como hoje, a solução mais fácil era procurar dinheiro onde o havia. O comércio europeu era dominado por grandes firmas alemãs (Fugger, Welser, Hochstetter) e italianas (Affaitati, Frescobaldi e Gualterotti). A família Benveniste que após o decreto de expulção dos reis católicos assinado em 31 de Março de 1492 procurara refúgio em Portugal, sob orientação de Henrique Nunes iniciou a Casa dos Mendes que prosperou no comércio de pedras preciosas e especiarias. Por morte de Henrique Nunes seus filhos tomaram conta do negócio, Francisco Mendes em Lisboa e Diogo Mendes em Antuérpia e em 1525 pagaram ao rei de Portugal cerca de um milhão de cruzados pelo monopólio da Pimenta, que tranzaccionam por toda a Europa. Refere J. Lúcio de Azevedo em ÉPOCAS DE PORTUGAL ECONÓMICO, 1928, que Diogo Mendes, associado a João Carlos Affaitati, mandava comprar pimenta em Lisboa por seu irmão Francisco Mendes, montando o valor de cada vez a 600, 800, mil, até um milhão de cruzados e mais. Outros negociantes, de menos cabedal, em Lisboa e Antuérpia, participavam na operação em quotas de 10, 12, 20 mil cruzados, consoante as posses. Diogo Mendes e o sócio manejavam as vendas, firmando o preço em Antuérpia e certamente por sua influência as companhias alemãs perderam privilégios em Lisboa e o comércio da Pimenta, objecto de especulação, proporcionou a Antuérpia um desenvolvimento extraordinário. Francisco Mendes casa com Beatriz de Luna em 1528, têm uma filha, Brianda, em 1531 e D. Gracia fica viúva em 1536. O cheiro da pimenta determinou uma actividade diplomática muito intensa por parte do rei português João III (1502-1577) e seus conselheiros junto do papado, onde procuravam ingloriamente soluções expeditas e patrocinadas. Clemente VII, expedira em 17 de Dezembro de 1531 a bula CUM AD NIHIL MAGIS que instituiu o primeiro inquisidor, cabendo a nomeação sob pena de excomunhão a frei Diogo da Silva, que terá recusado tal cargo, suspenso em 17 de Outubro de 1532, sendo os iudeus «perdoados» por bula de 7 de Abril de 1533 que deve ter ficado tranquilamente esquecida em alguma secretaria até novo «perdão» de Paulo III, datado de 12 de Outubro de 1535, sem que D.João III deixasse de estar atento aos judeus, cerceando- -lhes até onde lhe foi possível os direitos, as liberdades e as garantias, como regista Maria José Pimenta Ferro Tavares em JUDAISMO E INQUISIÇÃO, 1987, surgindo por fim a famigerada bula da inquisição de 23 de Maio de 1536, publicada em 22 de Outubro, regulamentada em 18 de Novembro. Os principais prejudicados, o País todo, tristes portugueses que viviam embalados no gosto da cobiça, nada fizeram e apenas um reduzido grupo dos então chamados cristãos novos, apoiados pelo príncipe D.Luis (?-1555) se dirigiu ao rei a solicitar benevolência. Ao contrário do que escreveu Aquilino Ribeiro em PRINCIPES DE PORTUGAL, SUAS GRANDEZAS E MISÉRIAS, o infante D. Luis, aluno de Pedro Nunes (1502-1578) e pai assumido do futuro Prior do Crato D. António (1531-1595), que dizem ser filho de uma Senhora hebreia, mais do que «tipo acabado de parasita nacional» com seiscentos e trinta criados e barcos no mar, capaz do acto de rebeldia que foi a sua participação na campanha de Tunes em 1535, ao lado de Carlos V, contra as ordens de seu irmão D. João III, antes parece ter sabido comportar-se, até à sua morte em 1555, como um factor de equilíbrio na Figura 4 - Matiolo e Amato em desacordo 7 vida portuguesa, cuja moral entrara em derrapagem. Esgotadas as providências diplomáticas e comprovada a ineficácia das redes da corrupção, Beatriz de Luna / Gracia Nasci, sua filha Brianda / Reyna / Regina, a irmã Brianda Luna e o sobrinho João Miguel / José Nasci fogem para Antuérpia. O «Lusitano», que por essa época era apenas o doutor João Rodrigues, de Castelo Branco, estaria muito atento ao que chegava da Índia e organizava os apontamentos que lhe permitiriam uma primeira abordagem da Matéria Médica de Dioscórides, o INDEX DIOSCORIDES, que publicará em Antuérpia com data de 1536, o que não invalida a possibilidade de a sua partida para o exílio ser apenas no final deste ano. Em Antuérpia Amato passou sete anos felizes, observando doentes que por vezes lhe pagavam principescamente, como o encarregado da feitoria, Manuel Cirne, «trecentos largitus est aureos ducatus» por uma febre terçã dupla, estudava matéria médica e teria acesso ao jardim de Diogo Mendes, onde poderia colher plantas com interesse medicinal, como a Lactuca sylvestris «Nostra sylvestris Lactuca est, quam semel hic Anthuerpiae, in horto nobilis Domini Diodoci Mendi vidi» (Fl. 45 v, citado por Maximiano de Lemos em Amato Lusitano, correcções e aditamentos, 1922). Em 4 de Setembro de 1546 Amato estará em Ferrara a assistir doentes, cultiva a amizade de António Musa Brassavola (1500-1555) que o aconselha a aceitar um convite do senado de Ragusa / Dubrovnick para abandonar Itália e incentiva Giovanni Baptista Canano (1515-1579) a tornar-se anatomista de renome. Em Ferrara, com Canano, em 1547, descobre «ostíolos ou operculos» na veia ázigos, observados em doze corpos de homens e de animais e descritos na Cura LIl da Primeira Centúria, Ancona, 1547 e na Cura LXX da Quinta Centúria, Salonica, 1560, salva do esbulho que sofreu em Ancona e oferecida a José Nasci. Entre 1547 e 1556 Amato vive em Ancona e recolhe elementos para o IN DIOSCORIDIS ANAZARBEI DE MEDICA MATÉRIA LÍBROS QVINQVE, ENARRATIONES, Veneza, 1553, publica as quatro primeiras centúrias e prepara a quinta. Os Comentários a Dioscórides registam pedaços da história de Amato e referem contactos com os Mendes. Assim, no libri 1, Enarratio CXXXVII, «Palmitos», em resposta a LVDOVICVS, Luis Nunes de Santarém, professor em Lisboa de 1529 a 1535, professor em Coimbra de 1541 a 1544, editor do DICTIONARIUM AELLI ANTONII NEBRISSENSIS, Antuérpia, 1545, «Amatvs: Scio certe, quum nos due è Salmamticessi, nobili apud Hispanos gymnasio, in Lusitaniam reuerteremur, te publicè medice nam apud Colimbrienses, regis mandato legisse, imo ibidem tibi in eo munere primas delatas recordor. Sed ego relicta Lusitania, vt qui in ab hinc decem & octo annis praesagieram, que nunc euenisse audio, regios contem psi honores, & in Anthuerpiam me recepi, vbi septénium egi, & inde lilustrissimi ducis Ferrariae Herculis secundi iussu, Ferrariam veni, sub cuius clientela sexennium moratus sun, vbi quoq; publice artem medicam professi sumus & multa à viris doctissimis, in re anatomica & herbaria didicimus» e estes dados são importantes para o conhecimento do itinerário de Amato que poderia ter Partido para Antuérpia dezoito anos depois de ter iniciado estudos em Salamanca e que, depois de sete anos em Antuérpia, não teria partido para Itália antes da chegada de Luis Nunes. No que se refere a contactos com os Mendes, Maximiano Lemos chama a atenção para o IN DIOSCORIDIS, Enarratio CXX, «De rosis» e Enarratio XXXIX, «De Cervi mascvli Genitale», que transcrevo da edição de Lyon,1558: Contacto com Diogo Mendes: «De rosis», Enarratio CXX - «Ego verò noscens medicamentum potentissimum & fere venenum esse, eam monui, ab illo abstineret, nec eo amplius vteretur: putanerat euim liberalissima haec domina, côditum illud ex rosis incarnatis à nobis dictis paratum esse, quo alias Anthuerpiae saepe usa erat, ad quam, meis votis, viuente Didaco Mendio huius cognato, & omnium mercatorum suae aetatis ditissimo: Sebastianus Pintus, e Ferraria miserat, valut ad alios principes, tanquam donum praecipuum, & sanitati humanae deserviens, Hae vero rosae moschatae in Hispania raro videntur: sunt enim albae subcitrinae similes vt paucis dicam, rosis caninis inter spinas nascentibus, quae ad sumum tria quatuor folia habet». Clientes de luxo, rosas encarnadas! Quando a rainha e senhora D. Isabel de Aragão se viu na necessidade de administrar um decocto de pétalas de rosa ao seu senhor e rei D. Diniz que tinha um frenesim desgraçado, para ver se acalmava e governava a república como era necessário, teve de contentar-se com umas rosas pobrinhas e desbotadas de quatro pétalas, colhidas no meio de espinhos onde nem os cães as viam, mas que fizeram erguer este paíz que a não esquece nem ao «Milagre das rosas». Contacto com Dona Gracia: - «De Cervi masevli Genitale ... Hispanicè, vergalho de cervo; Italicé, verga del ceruo; Gallice, verge de cerf», Enarratio XXXIX - «Nom solum contra viperaae venenum virga cervi valet: sed etiam vt testatur Rasis, ad colicas affectiones, & vrinae retentionem, vel vt aliis placet, ad stimulandam venerem. Caeterum, circumfertur hodie lapillus quidem ex India ad Lusitanius primo aduectus, vt plurimum, magnitudine & figura glandis colore civeritio, ad cyaneum inclinante, multis compositus laminis, quem cerui lachrymam quidam, alijvero lapidem belzahart appellant, & illum tanquam praestantissimum ac divinum antidotum, cõtra omne genus veneni approbant, De quo Abinzoar libro sui Theisir testatur, se illo quendam deploratu à perniciosissimo ingurgitato 8 veneno liberasse, cui granorum bordei trium põdere belzoharti, in quinq; vncis aquae cucurbitatae propinaverat.... ... Nunc quu haec literis commendabamus, illustris Domina Beatrix à Luna, mulier opulentissima, venetiis agens, lapillum vnum ex iis quos describimus ab Indiae animali extractu à quodam nobili Lusitano, qui apud Indos Pro rex fuerat, centum & triginta aureis ducatis emit: erat enim lapillus ille, vt hoc quoq; dicamus oualis sere magnitudinis. Caeterum, non ab re quoq; esset, in praesenti postquàm de praestãtisimis antidotis contra venena egimus, de vnicornio quoque memoriam facere, sed quoniam capite de cornu cervi, de illo sermonem facimus, ideo supersedimus, lectorem ad citatum locum relegantes.» ... «Raspas» de Bezoário eram antídoto poderoso contra qualquer veneno e serviam para as «dores de barriga» ou afecções cólicas, muito antes dos COLOQUIOS DOS SIMPLES..., Goa, 1563, de Garcia de Orta que no Colóquio 58, ao tratar das «cousas novas», avisa serem de difícil obtenção e que lhe parecia não haver «tantas como isso, poré(m) o tempo que descobre tudo a descubrirá, ... porq(ue) por mais meezinhas q(ue) (h)aja contra a peçonha mais sam neces(s)arias, e tãbém parece ser que em Roma teria esta pedra muyta valia» «brilhante» final, possivelmente em lembrança do IN DIOSCORIDIS, publicado dez anos antes e provável acha numa fogueira que serviu para queimar os ossos de Garcia d’Orta em 4 de Dezembro de 1580. Amato viajava. Em 1 de Maio de 1551 publica em Roma a SEGUNDA CENTÚRIA, dedicada a Hipólito de Este cardeal de Ferrara, um interessante livro que abre com o caso clínico da irmã do papa Júlio III e insere uma Cura XXXI que toca ao sobrinho papal, Vicêncio, governador de Ancona e é dedicada ao sumo pontífice. Em 1553 Amato publica em Veneza os comentários a Dioscórides, ao mesmo tempo que nos prelos de Abraham Usque, em Ferrara, surge a CONSOLACÃO ÀS TRIBULACOENS DE ISRAEL, de Samuel Usque, patrocinado por dona Gracia Nasci, que no ano anterior patrocinara a publicação das duas edições da famosa BIBLIA, Ferrara, 1552. Após o papado de Júlio III, que se dilatou sem perigos para os Judeus de 1500 a 1555, reinou durante vinte e dois dias Marcelo II, sucedendo-lhe o cardeal Caraffa, de 77 anos, que reinou de 1555 a 1559, confirmou a Universidade dos Jesuitas de Évora e promoveu a política de desertificação intelectual que levou Andres Laguna (I499-1563) a deslocar-se para Antuérpia e terá empurrado Amato para os braços dos Nasci, que muito o apoiaram perante os despautérios de Pietro Andrea Mattioli (1501-1577) que não se coibiu de açular contra o Lusitano a voracidade dos esbirros inquisitoriais com a viperina APOLOGIA ADVERSUS AMATHUM CUM CENSURA IN EJUSDEM ENARRATIONES, Veneza, 1558. A política anti-judaica do cardeal Caraffa, papa Paulo IV, criou instabilidade por toda a Europa e D. Gracia viu as suas empresas confiscadas um pouco por todo o lado, o que a determinou a deslocar-se a Istambul a procurar a protecção do Solimão, já que nessa época o império Turco funcionava como uma sociedade aberta e progressiva e por isso era muito diferente das monarquias europeias em geral e do Portugal europeu e zonas administradas por Roma, onde existia uma autoridade dogmática bloqueadora de quaisquer iniciativas que não partissem da sociedade dominante in nomine Dei. Dona Gracia, que fora obrigada a sair de Antuérpia e se vira obrigada a empurrar a própria filha para os braços do sobrinho a fim de evitar arranjos palacianos e casamentos ruinosos com pretendentes impostos pela regente D. Maria irmã de Carlos V e pelo próprio imperador, vê-se em guerra com a cidade de Veneza que expulsou os Judeus em 1550 e se recusa a cederlhe a ilha de Chipre para aí instalar a comunidade israelita expulsa, restando-lhe fugir para a Turquia em 1552, estabelecer residência em Constantinopla em 1554 e enviar José Nasci junto de Selim, filho e sucessor do Solimão o magnífico (reinou de 1520 a 1566) pedindo-lhe que conquistasse Chipre, contactos estes que valeram a Joseph Nasci o título de duque de Naxos, nas Cidades, em 1567, tendo Veneza ficado sem Chipre em 1571. Por outro lado, como a França dos sucessivos governos de Henrique II, Francisco I e Carlos IX se recusasse a pagar uma dívida de 150 mil escudos à Casa dos Mendes com a desculpa de que eram Judeus, o imperador Selim II (reinou de 1566 a 1578) ordenou que fosse sequestrado um terço da carga de todos os navios franceses que aportassem em portos turcos até que a dívida fosse inteiramente saldada. Autêntico ou forjado, existe um soneto atribuído a Luis Vaz de Camões (1524 - 1580) que canta La Senora: é o Soneto LXIX das OBRAS DE LUIS DE CAMOES, nova edição, tomo terceiro Paris, à custa de Pedro Gendron, 1759, página 398: ILLUSTRE Gracia, nombre de uma moça Primera malhechora en este casso, A Mondonedo, a Palma, al coxo Trasso, Sugeto digno de immortal coroça. Si en medio de Ia Iglesia no reboça El manto a vuestro rostro tan devasso, Por vós diràn Ias gentes rezio, y passo; Veis quien cor el Demonio se retoça. Puede mover los montes siri trabajo; Con palavras el curso al agua enfrena; Por Ias ondas hara camino enxuto. A verguenza su Patria, y rico Tajo, Que por ella hombres feva más que arena De que paga al Infierno gran tributo. 9 Que me permito “traduzir” e “adaptar” da seguinte forma: GRACIA, nome ilustre, nome de moça Quantas lágrimas choraste neste caso, Correndo contra o tempo e ao acaso, Quantos poetas terão a tua força! Se nas sombras da Igreja roça O manto que te encobre do devasso, O povo reza e passo, Enquanto o demo se retoça. Mover montanhas é trabalho! Páras o rio com a meia E caminhas na água a pé enxuto. Portugal tenha vergonha. Pelo Tejo Saíram homens como areia, E pagaram tributo! Beatriz de Luna foi obrigada a fugir para Antuérpia em 1536, em 1549 partiu para Veneza, em 1550 fixouse em Ferrara, em 1552 seguiu para a Turquia. Expulsa da Europa, Dona Gracia reinou em Tiberíades e construiu Safed, tentou criar condições para o desenvolvimento de comunidades responsáveis e introduziu a sericicultura na Palestina. Não se sabe como nem quando La Senora se despediu do mundo. João Rodrigo nasceu em Castelo Branco em 1511, uma vez que em 17 de Setembro de 1553, em Ancona, o Autor da QUARTA CENTÚRIA andava no seu quadragésimo segundo ano de idade. Terá começado os estudos em Salamanca com 9 anos e quando teve idade para isso, entrou para a Universidade, depois de ter praticado Cirurgia, durante dois anos, quando tinha d e z o i t o anos. No final de 1536 fugiu para Antuérpia, num desses barcos da carreira da Índia que passavam por Lisboa a caminho da Flandres e que, enquanto navegassem, quando chegava a primavera zarpavam de novo para o Oriente. Sete longos anos em Antuérpia e em 1545 reside em Ferrara, a convite de Hércules II. Entre 1547 e 1556 vive em Ancona, deslocando-se por vezes a Veneza, a Roma e outros locais. Em 1556 Amato foge para Pesaro e em 1557 refugia-se em Ragusa/Dubrovnick, passando a Salonica no final de 1558 e em 21 de Janeiro ro de 1568, a tratar pestíferos «aquele que tantas vezes reteve a chama da vida em corpos que morriam, amado por muitos, nascido em Castelo Branco, chegou ao fim dos seus dias longe da Pátria e descansa na Macedónia. Quando o azar bate à porta, é sempre a descer» (Diogo Pires: AMATI LVSITANI EPITAPHIVM, tradução livre). Não sabemos como era a figura de Amato. O seu retrato vem reproduzido na portada da HISTORIA PLANTARUM UNIVERSALIS de Johann Bauhin (1541 -1613) editada por Johann H. Cherler em 1650, em companhia com outros dois autores de opiniões diferentes «Dissentimus» - Matthiolus e Guilandinus. Infeliz e ironicamente a única representação conhecida de Amato, que pertenceu a Annibal Fernandes Thomaz e correspondente a uma destas três figuras, reproduzida por Maximiano Lemos e Ricardo Jorge, é uma gravura alemã do final do século XVII e parece antes representar Matiolo em traje de combate... Amato será antes o único dos três que se apresenta em trajo civil, de cabeça recoberta com larga boina, como quando herborizava. Em toda a sua vida Amato sempre procurou prestigiar a terra que lhe serviu de berço e a profissão que escolheu e sempre se refere a Portugal e aos portugueses como «patria mea» e «lusitani nostri» ou «nostri portugalenses». Foi perseguido por razões ditas religiosas... José Lopes Dias, numa obra infelizmente pouco divulgada, COMENTARIOS AO «INDEX DIOSCORIDIS» DE AMATO LUSITANO, apresentados no XXI Congresso Internacional de História da Medicina, em Sena (Itália), em Setembro de 1968, recorda o expressivo desabafo do grande albicastrense: «Que outra profissão julgou Cristo, grande e santo salvador do género humano, mais digna de ser estimada que a medicina? Ele bem sabia que exceptuada a Teologia, nenhuma coisa havia de tão útil ao género humano como a medicina... - quaeso quot aliut officium Christus optimus maximus humani generis servatur sibi diligendu(m) proeter unã medicinã putavitiq (sic) nempe sciebat ille que(m) nihil sallere posset, nullã existere re(m) Derinde humano generi, theologiã excipio, conducibile(m) atq medicina...» (Liv. II, XIX). * Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra Figura 5 - Matiolo em farda de combate, legendado como se fora Amato Lusitano 10 Resumo Cronológico 1492 - Início da construcão do Hospital de Todos os Santos. Fernando e Isabel expulsam os Judeus e conquistam Granada. 1494 - Tratado de Tordesilhas. 1495 - Morre D. João II. 1500 - Descoberta do Brasil. Nascimento de Garcia de Orta. 1503 - Estatutos da Universidade. Regimento do Hospital de Todos os Santos. 1506 - Holocausto em Lisboa. 1510 - Hannah Gracia Nasci/Beatriz de Luna, nasce em Lisboa. 1511 -Nascimento de João Rodrigues, de Castelo Branco. Amato Lusitano. 1515 - Nascimento de João Micas/Joseph Nasci, filho de Agostinho Micas (Miguel). 1517 - Entre 1517 e 1522 o «doctor Micas» é lente de prima de Medicina na Universidade Portuguesa, em Lisboa e terá falecido em 1532. 1519 - O menino João Rodrigues inicia estudos em Salamanca (?). Partida de Fernão de Magalhães para a volta ao mundo. 1521 - Morre D. Manuel. 1525 -D. João III inicia acções diplomáticas para implantação da inquisição. 1528 - Beatriz de Luna casa com o banqueiro Francisco Mendes Benvenides. 1529 - João Rodrigues pratica cirurgia nos Hospitais Santa Cruz e D. Branca. 1531- Tremor de terra, recomeçam perseguições e assassinatos. Gil Vicente defende os Judeus. Nomeação do primeiro inquisidor. 1535 - DIALOGHI D’AMORE. D. Luis participa na acção contra Tunis. 1536 - Partida de João Rodrigues para Antuérpia. INDEX DIOSCORIDIS, Antuérpia, 1536 Estabelecimento da chamada santa inquisição em Portugal. Morte de Francisco Mendes. Partida dos Nasci para o exílio. 1542 - Morte do banqueiro Diogo Mendes, em Antuérpia. 1544-1545 - Chegada de Luis Nunes a Antuérpia. Partida de Amato para Ferrara. Concílio de Trento. Os Mendes/Nasci, fogem de Antuérpia para Itália. 1547 - Amato reconhece «ostiolos» ou «opérculos» na veia ázigos. Morte de Lutero. 1549-1553 - Amato fixa-se em Ancona. PRIMEIRA CENTÚRIA, Ancona, 1549. 1550 - Beatriz de Luna / Dona Garcia / La Señora fixa-se em Ferrara. 1552 - BIBLIA DE FERRARA. 1553 - Amato: IN DIOSCORIDIS ANAZARBEI DE MEDICA MATERIA. Veneza. Samuel Usque: CONSOLACAM AS TRIBULACOENS DE ISRAEL, Ferrara. Os Nasci fogem para Istambul. 1555 - Morte de Paulo III. Morte de Marcelo II. Coroação do cardeal Caraffa, Paulo IV. 1556 - Amato foge para Pesaro. La Señora embarga o porto de Ancona. 1557 - Amato instala-se em Ragusa/Dubrovnick. 1559 - Amato fixa-se em Salonica. 1560 - QUINTA CENTÚRIA, com dedicatória a Joseph Nasci. 1568 - Amato morre em Salonica, no dia 21 de Janeiro (?), a tratar pestíferos. Garcia de Orta morre em Goa. Resumo Bibliográfico Amato Lusitano: CENTÚRIAS DE CURAS MEDICINAIS, Tradução Firmino Crespo, Universidade Nova de Lisboa, 1980. Castelo Branco, M.S.: «O amor e a morte ... nos antigos registos paroquiais albicastrenses». CADERNOS DE CULTURA (Castelo Branco) 7, 7- 32, 1993. Lopes-Dias, J.: COMENTÁRIOS AO «INDEX DIOSCORIDIS» DE AMATO LUSITANO, Gráfica de S.José, Castelo Branco, 1968. Maximiano-Lemos: AMATO LUSITANO. A SUA VIDA E A SUA OBRA, Eduardo Tavares Martins, Porto, 1907. Maximiano-Lemos: AMATO LUSITANO. CORRECÇÕES E ADITAMENTOS, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1922. Rasteiro, A.: MEDICINA E DESCOBRIMENTOS, Almedina, 1992. Ricardo-Jorge: AMATO LUSITANO. COMENTOS À SUA VIDA, OBRA E ÉPOCA, I .A.C., Lisboa, 1962. Santoro, M.: AMATO LUSITANO ED ANCONA, Imprensa Nacional, Lisboa, 1991. 11 A Arte de Curar em Amato Lusitano (1511-1568) e o Quotidiano Terapêutico Português no Século XVIII PANACEIASNOSSAS DE CADA DIA, “ONTEM E HOJE” por Fanny Andrée Font Xavier da Cunha* «O verdadeiro fim da química não é fazer ouro, mas preparar medicamentos.» Paracelso Devido à sua industriosidade, o Homem disfruta de alimentação uniforme, que lhe assegura a vida. Porém o homem, para conservar essa vida, tem frequentemente de recorrera fármacos, e ao seu emprego racional, para aliviar ou curar as doenças. A arte de curar tem ocupado o Homem através dos tempos. Por essa arte se podem avaliar os progressos dos conhecimentos humanos, e podem mesmo considerar-se dois períodos subjacentes a essa arte: ante e post Descobrimentos. De todos os tempos os navegadores, os cronistas, os naturalistas, os boticários, os missionários e os médicos portugueses contribuiram para o desenvolvimento da ciência médica e ciências subsidiárias (bioquímica e farmácia). Os Portugueses e os Espanhóis foram os primeiros viajantes europeus a adquirir e transmitir vastos conhecimentos de doenças, de animais e plantas (frutos, sementes, raízes, gomas, etc), completamente desconhecidos antes das Descobertas marítimas. A prioridade de algumas grandes descobertas cabe aos portugueses, como consequência directa da sua experiência na Ásia, África e América, entre 1420- 1690. Bastaria citarmos o boticário Tomés Pires, o médico e naturalista Garcia de Orta (Índia), os viajantes Pero de Magalhães Gandavo, Gabriel Soares de Sousa (Brasil), os missionários Padres José d’Anchieta, Fernão Cardim, Frei João dos Santos, etc. Através destes viajantes científicos, e do seu poder de observação, Portugal deu a conhecer ao mundo culto da época elementos e observações sobre várias doenças exóticas e sua terapêutica (uso do aloés, do ópio, do óleo dericino, da quinquina, do ruibarbo, do copahu, etc). O conhecimento dessas novas doenças, dessas floras exóticas, tiveram um impacto considerável sobre o progresso da Medicina. Para Portugal o século XVIII é um século de progresso e de evolução nos métodos terapêuticos. E se para Tácito 15 anos constituíam um lapso importante da existência humana, que dizer dois séculos? (grande mortalis aeve spatium) Este é o século das ciências exactas; das ciências naturais; das viagens e viajantes científicos; das Figura 1 - Laboratório de química do séc. XVIII 12 técnicas. É neste século, o das Luzes, que surge em Portugal a 1ª publicação médica periódica, intitulada «Zodíaco Lusitano-Delphico, Anatomico, Botanico, Chirugico. Dendrologico, Ictylogico,...», em Janeiro de 1794. No ano de 1726 fôra publicado por Brás Luís de Abreu o livro «Portugal Médico», verdadeira glorificação dos médicos. Na sua dedicatória ao Sereníssimo e sempre Augusto Príncipe do Brasil, diz mesmo que «Ja houve quem entendeo, que não devia ser Príncepe, quem não fosse medico...». O autor considera o legítimo Médico superior a todos os outros homens e que «a verdadeira Medicina domina sobre todos os Monarchas...» É também neste século que se publicam as 1ªs Farmacopeias, para servirem de guia aos farmacêuticos. Na 1ª metade do século XVIII era ainda a «Polyanthea medicinal» de João Curvo Semedo,1697, uma verdadeira enciclopédia médica, «o novo evangelho dos médicos portugueses», a qual continha remédios verdadeiramente repugantes, reeditada pelos tempos fora, que dominava. Porém o verdadeiro século das Farmacopeias é o século XVIII. A 1ª farmacopeia que se publicou em língua portuguesa foi a «Farmacopeia Lusitana» em 1704, por D. Caetano de S.t° António, Boticário do Real Mosteiro de S.ta Cruz de Coimbra, o qual diz no «Prologo ao Leitor»: «moveume a sair a publico com esta obra, a experiencia certa, e continuada, da pouca, ou nenhuma noticia que tem da lingua latina a mayor parte dos Praticantes, que aprendem a arte Pharmaceuthica; e ver também que (ou seja, por impericia do latim, ou por falta de cabedal) não comprão, nem uzão aquelles livros, por onde segura, e acertadamente / podião dirigir-se, contentando-se só com os treslados manuscritos de um methodo de obrar, a que elles chamão Pharmaca,...». No Index encontramos a indicação de várias Aguas, Vinagres e Vinhos; Electuarios (pérolas, safiras, granadas, esmeraldas); Emplastros; Infusões; Mucilagens; Óleos (de minhocas, de lacraus); Pedras: pedra sardónica, jacintos, granadas, esmeralda, coral; Metais (ouro e prata); Pírulas; Pós (contra flatos; cordiais com pedras preciosas; digestivos, epilépticos; para fluxos de sangue; para gallico; para lombrigas; para sarna; pós restritivos); Triaga de Esmeraldas; Vinhos; Unguentos (unguentos desopilativos de curros, do baço, do estômago, do ligado); Xaropes e Zaragatoas. Em 1713, D. António dos Mártires (1698-1768), publica «Colectaneo Farmacêutico» ou «Farmacopeia Bateana». João Vigier, no ano de 1716 publica a «Pharmacopêa Ulissiponense»; Manuel Rodrigues Coelho (1735-1751) publica a «Pharmacopêa Tubalense» (o primeiro volume no ano de 1735; o segundo em 1751). A sua Farmacopeia foi classificada por Pedro José da Silva como «um verdadeiro e colossal monumento da polifarmácia». Em 1766, A. Rodrigues Portugal publica a «Pharmacopêa Portuense». Contudo, a 1ª farmacopeia oficial portuguesa, a «Pharmacopeia Geral para o Reino e domínios de Portugal» foi publicada em 1794, reimpressa em 1823, em Coimbra, de acordo com o Estatuto Universitário de 1772. É na 2ª edição da «Farmacopeia Lusitana», que se fala, pela 1ª vez, em Química. Podemos mesmo considerar que a oficina do farmacêutico foi o primeiro laboratório químico, e que o Dr. Curvo Semedo (1635-1719) foi o pioneiro da indústria farmacêutica. Contudo, pelos fins do século XVIII ainda não se tinham adoptado, em Portugal, as teorias químicas que noutros países iam tomando vulto. No dealbar do século XVIII eram inúmeras as fórmulas medicamentosas mais ou menos mágicas que enchiam as farmacopeias: pós medicamentosos e mágicos, pedras, etc. Ontem como hoje! Bem recentemente ainda um diário fazia referência a talismãs mágicos, pós egípcios e cuecas magnéticas..., não esquecendo os proclamados efeitos milagrosos de umas pulseiras! Mas regressemos ao século XVIII, bem semelhante no seu quotidiano terapêutico ao dos séculos anteriores, nomeadamente ao do século XVI, aconselhado por Amato Lusitano. Na «Pharmacopea Tubalense» vamos encontrar o pó de múmia que entrava na composição de pós para descoagularem o sangue e contra infecções da pele: os pós de víboras; as pedras, como a pedra bezoar, e os metais suspensos do pescoço ou presos aos pulsos. Amato Lusitano, na CURA LXIV, 1ª Centúria-Duns envenenamentos con sublinsdo (Sublimato) e sua cura, receita remédios vomitivos. Entre eles cita a pedra bezar (lapis bezarticum) extraída do estômago de uma certa cabra da Índia; raspadura de unicórnio, e principalmente o vomitório que levou a palma entre os outros: água de flor de laranjeira. Depois do vomitivo, passa ao antídoto: “feito de víboras a que chamamos teriaga”. Na CURA VIII, 1ª Centúria-De Febre Quartã, aconselha purgar com remédios que limpam a bilis negra, como: pílulas de fumária da India, de pedra da Arménia, de lapis lazuli, chamada turqueza (cyaneus) e semelhantes. Aconselha igualmente dar teriaga Figuras 2, 3 e 4 - Gravuras do Hortus Sanitatis (1517). Alquimistas trabalhando com substâncias minerais então empregues no tratamento de doenças. 13 com vinho branco e em jejum. No capítulo da petroterapia, Curvo Semedo, na «Polyanthea medicinal», refere: «varios effeytos de algumas pedras, remedios que obrão por virtudes e qualidades occultas e que obrão por sympathia e antipathia; pois vemos que as pedras de cobra, que vem da India, postas sobre a mordedura de qualquer bicho venenoso tem huma virtude occulta tão rara, que atrahe a si todo o veneno da mordedura; e é digno de admiração ver que estando algumas vezes a parte mordida muyto inchada, se desfaz toda a inchação em poucas horas...» «Vemos que a pedra Zafira, sendo de cor azul muyto subida roçada ao redor de Antrás, ou Carbunculo venenoso, tem virtude occulta tão prodigiosa para fazer exhalar o veneno do Antrás como se fosse tumo pelo meyo de huma chaminé....». «A pedra de estancar, pendurada ao pescoço supprime os fluxos de sangue; e o mesmo faz a pedra Emathitis, retida na mão até aquecer. A pedra de Aguia, atada na perna esquerda facilita o parto; e atada no braço esquerdo, faz reter a crianca no ventre da mãy. A pedra Nephritica, que tem cor verde, trazida sobre a cruz das cadeiras, faz deitar as pedras dos rins». D. Caetano de S. António, na 1ª Farmacopeia portuguesa inclui inúmeras fórmulas com pedras nobres: pérolas, safiras, granadas, esmeraldas, coral. Unguentos com corais vermelhos são usados por Amato na CURA LXXI,1ª Centúria «Dun Menino que sofria de disenteria» “R:.... de po de corais vermelhos....”, com o qual se untaria toda a região do fígado. Na CURA XXI, 1ª Centúria - «Duma febre despresada apos uma, pleurite....» refere uma confeição cordeal fria, e que se preparava assim: R: de safiras, de jacintos, de esmeraldas, de carabes, de coral branco, de coral vermelho, ...; de raspadura de marfim de chifre queimado de Veado.... de goma arábica, de todos os sandalos,...de cânfora, de almíscar, de ouro e de prata, do osso do coração do veado,». Destes ingredientes se fazia um pó. O século XVIII é igualmente o século das «viagens filosóficas» e dos viajantes científicos. Estes faziam-se acompanhar de «boticas». Neste século o papel dos boticários, em consequência dos descobrimentos e das viagens por mar, é de capital importância, porque são eles que elaboram as listas das boticas necessárias a bordo. As «boticas» eram caixas de madeira ou de folha de Flandres, de várias dimensões, que continham as drogas e medicamentos mais necessários e urgentes. Aliás uma parte importante da actividade farmacêutica seria futuramente a produção de medicamentos para as diferentes possessões do império, principalmente para o Brasil. Comparemos as boticas «mais urgentes e necessárias» no século XVIII, com os remédios usados no século XVI por Amato Lusitano. As boticas do Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista em missão científica ao Brasil, incluíam Sal de víboras; isto já em fins do século XVIII. Estes pós viperinos eram obtidos cortando em pedaços miúdos corpos, corações e fígados de víboras que depois eram secos e reduzidos a pó subtil. Delas constavam também olhos de caranguejo, almíscar oriental (excreção do Moschus moschiferus) e Triaga ou Teriaga, a mais célebre das preparações oficinais farmacêuticas; ela era o electuário mais famoso, representante máximo da velha polifarmácia, e panaceia universal. Tão antiga que já Camões a canta como antídoto dos venenos das setas: Que o veneno espalhado pelas veias Curão no ás vezes ásperas triagas. .................................................... Isto acontece às vezes, quando as setas Acertam de levar ervas secretas. (Canto IX, est. 33, 27) Na sua CURA I, 1ª Centúria, feita em Portugal, em que se trata do curativo da mordedura de víbora, Amato Lusitano mandou aplicar ao sítio mordido um emplastro feito de alhos e cebolas azedas... com teriaga à mistura. E para beber, uma poção de três dracmas de teriaga dissolvidas em XV onças do mais puro vinho. A teriaga era realmente aconselhada contra a peçonha, tendo como fundamento a víbora peçonhenta; ela continha mais sessenta e três mézinhas, como a pimenta, o ópio, a rosa damascena, a mirra, o gengibre, o ruibarbo, o aloés, a eoma arábica e betume da Judeia, e quase todas as drogas da Índia. Note-se que o betume judaico ou «Asphaltus», por ser originário do Mar Aspháltico «a que chamão Mar Morto», ainda nos nossos dias é utilizado contra a tosse. O pó de víbora foi introduzido na fórmula primitiva da teriaga pela 1ª vez, por Andrómaco. A teriaga de Veneza, teriaga fina, teve fama mundial, e só no ano de 1747 Veneza utilizou 2300 víboras. O fabrico da teriaga, simultaneamente técnico e ritual continha inúmeros espécimens sem valor: chifre de veados: pó de cloporte (crustáceo isopode), etc, e um só alcaloide, a morfina. 14 Apesar da teriaga ter sido um dos remédios aplicados a uma doente por Amato, CURA XIII, 4ª Centúria - De sintomas originados de plenite nos vasos e ao mesmo tempo de excesso de sémen genital. Por se tratar de uma viúva e como os remédios pouco ajudassem, Amato aconselhou-a a casar pois já dizia Galeno: «De que Vénus é saudável para tais viúvas». A teriaga, a imortal Teriaga, herdada da Antiguidade, foi usada em Portugal até cerca do século XIX, referida em todos os formulários oficiais. Panaceia universal, não só como antídoto contra todos os venenos, como também remédio para todas as doenças. A farmacopeia de D. Caetano cita três teriagas: a teriaga fina, ou magna, a teriaga reformada, apenas com 11 componentes, e a dos pobres, apenas com cinco, e sem víboras. A teriaga magna nunca foi preparada em Portugal, usando-se a italiana. Diz D. Caetano:«Esta receita da teriaga magna ou de Andrómaco, é a que se faz no Grande Hospital de Génova, por ordem da sua república, e a mesma que se faz em Veneza pelos melhores boticários daquela cidade, porém primeiro que se faça, põe o artífice os simplices todos em público, depois de escolhidos, e os mostra ao Proto médico e aos mais doutores e boticários, para serem vistos por eles, e examinados; depois de reduzidos a pó subtil os tornam a ver, e com essa aprovação dá o Senado licença para que se possa fazer teriaga, e só a que se faz com simplices expostos a todos e é que se pode gastar na dita cidade e mandar para outras terras; e se nesta nossa não houvesse o mesmo zelo, também se poderia fazer a dita teriaga». Ora nas duas listas de boticas do Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, o qual por indicação de Domingos Vandelli, professor da Universidade reformada pelo Marquês de Pombal, dava início a uma viagem de estudo ao Brasil no ano de 1783, a qual lhe permitiu escrever a obra «Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá 1783-1792» encontram-se referidas 4 libras de Teriaga ou triaga magna; 3 de sal de víboras e 6 de de olhos de caranguejos. Na 2ª lista encontramos a requisição de 1/2 libra de Triaga, como antídoto, de 2 onças de olhos de Caranguejos, como absorvente. O sal de víboras, cuja preparação consta da Pharma-copea Tubalense, era considerado um dos melhores remédios «que há na Medicina para as quenturas malignas, para as bexigas, Apoplexia, Parlesia, Affectos hystericos, peste, e para os venenos coagulantes». Os olhos de caranguejos, ricos em carbonato de cálcio entravam na composição de um unguento de caranguejo e de rãs, contra o cancro, e seriam recalcificantes e também usados contra os vómitos sob a forma de laudano, contra a cólera. Na terapêutica persistia o mito da Natureza forçosamente benfeitora, donde o seu uso. A lista das enfermidades para que se dispunham remédios, era tanto no séc. XVI como no século XVIII bastante vasta; achaques da garganta, apoplexias, asma, bubões galicos, carbúnculo, catarro, chagas, desinteria, dores de cabeça, edemas, epilepsia, escorbuto, erisipela, doenças eruptivas da pele, hemorragias, gangrena, inflamações, lombrigas, obstruções do fígado, do pancreas, pneumonias, escrofulose, tísica, sarna, tinha, tumores, envenenamentos, vómitos, artrites, melancolia, paixão amorosa diarreias, cólicas intestinais, úlceras, tumores, etc. Para algumas destas enfermidades Amato Lusitano apresenta Curas, e também a “Pharmacopea Tubalense” é pródiga em composições terapêuticas de grandes virtudes. Tanto no quotidiano do século XVI como no do século XVIII, os medicamentos mais usados eram os estomáquicos, os eméticos, os purgantes, os calmantes, e os febrífugos, em cuja composição entravam as drogas que Tomé Pires e Garcia de Orta deram a conhecer ao mundo, como o aloés, o ruibarbo, o tamarindo, a canela, a pimenta negra, o gengibre e o ópio. As mais utilizadas eram: o aloés (Aloes socotrin), cujas folhas carnudas contêm um suco amargo que constitui o aloes oficinale, estomáquico e tónico, ou purgativo consoante a dose. Esta indicação terapêutica era assinalada por Garcia de Orta: «conforta o estomago por acidente, a que os físicos chamão de per acidens scilicet, tirando- lhe os maus humores do estômago sem nucumento algum ou ao menos cõ pouco». Entra, nos nossos dias na composição de pílulas de aloés e quina, e outras. Amato Lusitano, na CURA VI, 1ª Centúria - Cura de lombrigas, manda dar pílulas de aloés e beber vinho generoso! A canela, que também fazia parte do rol das drogas estomáquicas pedidas por Alexandre Rodrigues Ferreira, em pleno século XVIII, também foi aplicada em curas de Amato Lusitano. Dela escreveu Garcia de Orta (col. 15): «He muyto gentil mèzinha para o estomago, e para tirar a dôr de coliqua, que he procedente de causa fria; porque tira a dôr de improviso como eu muytas vezes». Faz o 15 rosto vermelho e de boa côr; tira o mao cheiro da boca». Isto é, a canela é um vasodilatador, e nos nossos dias esta especialidade obtida por dissecação da casca da árvore da canela de Ceilão (Cinnaromum zeylanicum), é utilizada na cozinha e em pastelaria, e como aromático nas pastas dentífricas; dela se extrai um óleo essencial farmacêutico. Amato Lusitano usa-a na CURA X, 1ª Centúria - Duma febre sanguínea, propinando: “R: de polpa de caneleira tirada recentemente, meia onça; de ruibarbo bom, uma dracma,...” Com este remédio a doente vomitou muito, expulsando alguns vermes. Na CURA XI, 1ª Centúria - Duma tersã e de quantidade do xarope a usar, receita, além de um xarope, um purgante no qual entra também o ruibarbo, e um bolo, constituído por casca de caneleira e ruibarbo. Tomé Pires, boticário e primeiro naturalista na Índia, já por nós referido, descreve o ruibarbo (do latim rhabarbarum, raiz bárbara) Rheum officinale Baillon e Rheum palmatum LINN), como uma planta de raízes e caules laxativos e tónicos, em carta escrita a EIRei D. Manuel, em 27 de Janeiro de 1516. Cristovão da Costa chama-lhe «medicina singular e digna de ser venerada por toda a Humanidade», 1578. Ainda hoje considerado como tónico, amargo, eupéptico e adstringente. Dentre os purgativos, a botica do Dr.Alexandre Ferreira incluía 4 onças de ruibarbo em pó, o qual é laxativo em doses médias e purgante em doses fortes, 1/2 libra de seno (Cassia acutifolia DEL ); 2 de polpa de tamarindo, de jalapa em pó, purgante drástico (Exogonium jalapa H. BAILL), e os calomelanos (cloreto mercuroso sublimado, dos quais reza a Pharmacopeia Tubalense Químico Galénica: «...medicamento mercurial, o mais usual na Medicina, entre todos os que se elaborão do Mercúrio, usa-se dele para tirar todas as obstrucções, para depurar a massa do sangue, para untar as lombrigas, e para curar as Boubas, purga por câmara os humores serosos, e em particular se se misturar com algum medicamento hidragogo...Aplicado exteriormente cura a sarna, as pústulas venenosas, e as demais emoções da Cutis, mixto com unguentos, ou com água de cal, ou cozimentos mundifica, e desseca as ulceras venéreas antigas...» Quanto à polpa de tamarindo, (Tamarindus indica LIN), leguminosa arbórea das regiões tropicais obtida da respectiva vagem reduzida a massa consistente, ácida e doce, entrava na preparação do electuário de sene. Na antiga farmácia havia electuários antifebris, diaforéticos, escorbúticos, soniferos, etc. Dele diz Garcia da Horta «tâ mediçinal que não tem preço», col.59. Amato usa de ruibarbo, de seno e de polpa de tamarindo na confecção de um purgante que aplica na CURA LV - 1ª Centúria - um que sofria de afecções com certo calor não natural espalhado por todo o corpo. R: .... de ruibarbo do meIhor, meia dracma; de decocção confeccionada com foliculos de sene e alguns tamarindos, quatro onças.... O sene, também pedido por Alexandre Ferreira, é, com o ruibarbo, ainda hoje utilizado na expressão: «Receite o ruibarbo, receitar-lhe-ei o sene», para referir duas pessoas que mutuamente fazem concessões interesseiras. Visto serem ambos purgativos, não é difícil chegar a acordo. Na CURA XVI; 1ª Centúria - Duma febre hórrida e do decocto de sene, utiliza o seno em decocto simples, ou associado ao gengibre, etc. O gengibre (Zingiber officinale ROSCOE) zingiberácea da Índia e da Conchichina, com um rizoma de sabor aromático e picante, utilizado como condimento e droga medicinal, como estimulante estomáquico e diaforético, e que foi um dos primeiros produtos anunciados pelos descobridores portugueses. A Pharmacopeia Tubalense considera-o incisivo, atenuante e estomáquico. Um purgante que veio até aos nossos dias, os calomelanos ou calomelanos turquescos, dos quais constavam 6 onças na 1ª lista, e 2 na 2ª, sendo utilizado não só como purgativo, mas também como vermífugo, antisséptico intestinal, colagogo, diurético, anti-infeccioso, e externamente, principalmente no século XVIII, como anti-sifilitico, pois que se tratava de um sal de mercúrio. O mercúrio já tinha uma longa história para uso de doenças da pele, e manifestando-se o mal venéreo com alterações cutâneas e das mucosas, passou a ser também usado naquela doença. Usado e abusado a pontos de Spick referir que durante a campanha da Austria, um correio saíu de Viena para Paris, em malaposta, com um cinto recheado de moedas de ouro. À sua chegada dá com elas brancas e acusa os agentes do Tesouro de o terem roubado. Porém ele sofrera à partida de França um tratamento mercurial enérgico. Fricções e fumigações mercuriais eram o tratamento preferencial. Amato Lusitano já o utilizava, como na CURA XLIX, 1ª Centúria De alguns infectados de sarna galicana aplicado em unguento feito de substancias aromáticas e mercúrio (unguentum ex aromatibus e mercúrio confectum. Na CURA XVIII, 4ª Centúria - De “choilades”, isto é, escrófulas, e também de nodosidades, fê-las arrancar por meio de sublimado (cloreto de mercúrio) ou seja, sublimado corrosivo. Quanto aos eméticos, ou vomitivos, muito usados por Amato Lusitano, as composições mais utilizadas no século XVIII tinham como base a ipecacuanha, o sene e o tártaro emético, com propriedades vomitivas, e que entrava na composicão do vinho emético. 16 De ipecacuanha ou cipó emético, cujas propriedades eméticas eram assinaladas, desde 1560 pelo Padre José d’Anchieta, constam na 1ª lista 4 onças, e na 2ª, 5. No Brasil era o medicamento antidisentérico por excelência. A ipecacuanha ou cipó emético, rubiácea vivaz do Brasil (Cephaelis ipecacuanha RICH e WILT, Calliocca GOMES e BROT), ainda entra nos nossos dias nos seguintes preparados: tintura de ipecacuanha, vinho de ipecacuanha, xarope de ipecacuanha, composto. Também os electuários, mistura de pós medicamentosos, hoje caídos em desuso, mas aos quais ainda se encontram referências, como na obra de Aquilino Ribeiro, «Quando ao gavião cai a pena»: «um vinagrinho fenomenal que lhe vinha dum primo, mestre em pivetes e electuário», sendo a teriaga o mais notável, constituíam terapêutica muito usada, contendo a lista do Dr. Alexandre Ferreira o pedido de frascos de todas as qualidades de vinagres. O uso de electuários já vinha de longe. Assim no Livro da virtuosa Benfeitona, do Infante D. Pedro, referencias são feitas aos electuários: «...e deu leytoayro ao cavaleiro com q o fez dormir prollongadamente»...«e quall leytoayro trazerá espécies tão estremadas q faça delectaçom mais saborosa». Amato Lusitano também os utiliza, nas CURA X, 1ª Centúria - Duma febre sanguínea e na CURA XV - Da supressão da menstruação e de exantemas que aparecem por todo o corpo, terminando, neste último caso com a prescrição de banho feito de água doce em que foram cozidas rosas vermelhas. Já vimos a importância que Amato Lusitano dava à água de flor de larangeira como vomitivo; na higiene corporal dá à rosa a importância que os antigos lhe davam no Oriente, segundo a afirmação do árabe Abd-er-Razzak:. “Esta gente não pode viver sem rosas, que consideram tão necessárias quanto os alimentos!” Chegados ao Oriente os Portugueses verificaram que a rosa e o seu perfume eram um dos elementos da higiene dos corpos. Com as pétalas de rosas se atapetava o chão das casas, para os pés descalços das pessoas, homens e mulheres muito mais cuidados que os dos europeus. Com pétalas de rosa (Rosa centifolia e Rosa damascena MILL), rosáceas arbustivas da Ásia, prepara-se água de rosas. Orta refere a Rosa persica como “mézinha muito usada”; “e pera hum nome se purgar levemente tomão rosas em boa quantidade e cozenas muyto...” Amato na CURA XXXIII, 6ª Centúria receita um lavacro para os pés do doente com rosas vermelhas, e um decocto de rosas secas. Os calmantes mais usados externamente no século XVIII eram os láudanos e os bálsamos. Nos primeiros procuravam-se os efeitos sedativos do ópio. Do ópio, suco leitoso da papoula (Papa ver sonniferum LINN), do qual Tomé Pires escreveu: «os homens costumados a comêllo andam sonorentos, desvairados, os olhos vermelhos; nem andam em seu sentido. Custuma-se, porque hos provoca luxuria; he de pranta de dormideiras. He boa mercadoria; gasta-se em grande cantidade e vall muito. Costuma-se a comer, os reis e senhores em cantidade de «avellã», a gente baixa come menos, poque custa caro». A medicina utiliza-o ainda e sempre, assim como os alcalóides que contém (morfina, codeína, papaverina), como calmante e como sonífero e analgésico. Continua sendo uma droga preciosa. Entra em certos preparados opiados como o láudano. Amato Lusitano, na CURA XLIV, 4ª Centúria - De disenteria curada com a poção de Filónio o Romano, em virtude dos três opiados que continha, receita-o como medicamento estupefaciente, ou para dores fortíssimas ou para longas insónias. Nas listas do Dr. Alexandre Ferreira, encontramos 6 onças de cada um dos láudanos que nela figuram. Láudano líquido, que é o Láudano de Sydenham, ainda usado, e o láudano opiado, citado na Pharmacopeia Tubalense, e do qual diz: «he louvado em todas as dores»; «he sagrada Anchora nos vómitos e cameras, que acompanham as febres terçãs». O paludismo tem por principal sintoma a febre, febres intermitentes que surgem por acessos, com variedades chamadas terçãs, febre quartã, febre palustre, febre dos pântanos, etc. Conhecido desde a Antiguidade, existia em estado endémico em muitos países. Note-se que já no início do século XIX a febre era um substantivo cujo singular era mais claro que o plural. No século XVI, era desconhecida a sua origem, e desconhecida a quinina, que ainda hoje é considerada pela Organização Mundial de Saúde, como o remédio mais eficaz contra o paludismo, pois que, se não elimina o parasita no sangue, evita a crise. Ora no século XVI Amato Lusitano procurava apenas evitar a crise, e assim, na CURA VIII, 1ª Centúria- De Febre Quartã, deu ao doente muitos e variados medicamentos, que ora diziam respeito à bílis negra, ora ao baço. Por fim deu-lhe um medicamento purgativo, comentando que tanto nas febres quartãs como nas falsas terçãs é bom conselho purgar-se no dia da aflição. Também diz ser de bom conselho dar teriaga, no dia da crise, com vinho branco e em jejum, estabelecendo um método de alimentação especial. Recomenda que o doente tome coisas salgadas, mostarda, pimenta, um purgante especial (dios politicum) e um remédio de três espécies de pimentas, para deitar todos os dias nos caldos e na alimentação. - Uma notícia da pimenta como agente terapêutico, 17 já se encontra na Crónica de D. Dinis. O valor terapêutico da pimenta declinou; no entanto a farmacopeia portuguesa ainda a emprega, em pílulas arsenicais (ed. de 1936). Na CURA XI, 1ª Centúria - Duma terçã e da quantidade de xarope a dar, Amato, depois de praticar uma sangria, estabeleceu uma dieta de alimentação, mandando dar um xarope, e de seguida um purgante na composição do qual entrava, entre outros s í m p l i - ces, o ruibarbo, e de seguida persuadiu-o a comer um bolo, na composição do qual entravam casca de caneleira, e ruibarbo.”Depois disso ficou bom”, afirma. Quão longe estava esta terapêutica da do século XVIII, em que os febrífugos teriam por base a quinina! Da lista da Botica que o Dr. Alexandre requisitou em 1788 constavam 32 libras de quina em casca e 16 libras da mesma em pó, e só de Água de Inglaterra, antiga água das sezões, talvez a 1ª especialidade nacional, levava 12 garrafas. Amato Lusitano achava de bom conselho dar purgantes,e, no dia da crise, dar teriaga com vinho branco e em jejum, e como febrifugo, duas heminas de água gélida. CURA XI, V Centúria Duma terçã e da quantidade de xarope a dar; CURA XVIII, 4ª Centúria De Um doente com febre, curado com beber água gelada; deixou o doente beber água gelada até se saciar, acabando por ficar totalmente são. Na lista das doenças que afligiam os portugueses não podemos esquecer o escorbuto ou mal de Luanda contra o qual se usava o xarope de tamarindos. As astenias eram tratadas com estimulantes. As hiperastenias reprimidas com sangrias. A sangria permanecia um dos pilares da terapêutica. Aconselhada ou praticada por Amato Lusitano em inúmeras curas, como na CURA LXI, 4ª Centúria - De uma dupla terçã, em que primeiro mandou tirar ao doente 6 onças de sangue, seguindo-se a tomada de xarope e de purgante, com alimentação adequada mas bebendo vinho branco. Na CURA XXV, 4ª Centúria - De febre sanguínea, mandou, logo no segundo dia da doença dar ao doente um clister seguido de uma sangria de uma libra de sangue; e ainda uma 2ª sangria, o que, com a tomada de xaropes fez com que o paciente ficasse bom antes do 7° dia. Na CURA XXVI, 4ª Centúria De una aflitiva febre continua com grande dor de cabeça, depois de purgas e sangrias, mandou por duas vezes abrir a veia da testa e correr até 6 onças de sangue, afirmando que após a 2ª abertura, a convalescença do doente fôra total. Na CURA XXXVIII, 4ª Centúria - De febre errática que degenerou em quartã - mandou praticar a sangria, seguida da toma de purgantes; na CURA XXVIII, Wª Centúria - De desinteria, depois de vários clisteres, como lhe aparecesse uma febre violenta, mandou fazer uma sangria de 15 onças de sangue, bebendo de seguida um xarope, e dados clisteres com propriedades constrigentes, tal como o seguinte: R: de água de cevada...; de sebo de bode, ... ;de pelos de lebre, uma dracma. Misture e faça-se um clister que será retido até ser possível. Por último utilizou defumaduras, em cuja receita se incluía laúdano, incenso e outros símplices. Ainda na 4ª Centúria, CURA XLVIII - De febre contínua com erisipela ulcerada; Apanhando a face e toda a cabeça, mandou primeiro fazer uma extracção de sangue e dar um purgante, e de seguida mandou aplicar duas sanguessugas nas hemorróidas, tendo o doente voltado a ter saúde, e CURA LXII - De febre contínua maligna; com exantema, chamada pulicaria: nesta tão grossa febre, de tipo maligno e de mau cariz, e como se tratava de uma criança de 6 anos, depois de praticar a sangria, engendrou dois processos a fim de a melhorar. Um, ventosas às costas, outro, aplicação de uma sanguessuga às veias do ânus. Também em outros exantemas, chamados vanolas e sarampos, refere que “todos os médicos doutos permitem uma abundante sangria”. No século XVIII também os clisteres (clisteis) e ventosas continuavam sendo pilares da terapêutica. Os primeiros estão indicados na «Pharma-copeia Tubalense» como antiapopléticos; anti-cólicos; carminativos; !axantes e febrífugos. Também indica «clister de Tabaco». O Dr. Alexandre R. Ferreira requisitára 30 ataduras para sangria, e borrachas de couro, com os seus pipos prontos para os clisteis...9. Doenças da pele requeriam o uso de calmantes, como o Láudano opiado Ludovico, que levava mercúrio; os calomelanos ou mercúrio sublimado doce, externamente usado como tónico, antisséptico e anti-sifilítico; o láudano líquido que é o Láudano de Sydenham, uma tintura de ópio com açafrão, canela e cravo da Índia. Utilizado como analgésico em aplicações sobre a pele, puro ou misturado, sob a forma de linimento com outros analgésicos. Deste calmante requisitára o Dr. Alexandre 2 libras. No «Portugal Médico», 1726, é dito do Láudano opiado: «Deve ser hoje remédio familiar, pella admiravel virtude de que he dotado para varios achaques», e cita alguns casos de doenças e sua cura. Enquanto que a Pharmacopeia Tubalense diz: Loja de boticário do séc. XVII 18 «Este é o medicamento anodino mais seguro, que tem toda a Medicina...tira todas, e quaisquer dores que sejão, suspende todas as hemorrhagias ou fluxos, e todas as fluxoens, quer sejão do ventre, ou de outra qualquer parte; modera as grandes inquietaçoens, e calor nas febres malignas, aproveita nos Frenesis, na Mania, Melancolia, Epilepsia, dor de Colica, Artrictica, na Gotta, nas queixas nephriticas, tira os vomitos, as cardialgias, e outras muitas enfermidades; conforta os espiritos, os nervos, e todas as demais partes pincipaes do corpo humano...» De Bálsamo Catholico, composto de benjoim, estoraque, incenso, etc, levava o Dr. Alexandre 1 libra e meia, como consolidante. Deste bálsamo dizia Ph. Tubalense: «A este Bálsamo se atribuem infinitas virtudes, por produzir em muitas enfermidades admiráveis efeitos...», o que seria natural, atendendo às espécies que o constituiam. benjoim, incenso, estoraque, etc. Garcia de Horta, nos «Colóquios», refere e descreve o benjoim, resina aromática extaída do Styrax benzuin (Ilha de Sumatra), utilizada em medicina como balsâmico e antiséptico. Diz Garcia de Horta «he quente e seco no segundo grão; aromatiza o estômago húmido e.... e confortao, faz bom cheiro da boca, fortifica os membros e acrescenta o coito» (col. 9) e a Ph. Tubalense diz: «He o Benjoim incisivo, penetrante, atenuante, particularmente as suas flores sublimadas (ácido bezoico), e servem nas enfermidades do Pieto; é fortificante da cabeça, contra veneno, e resiste à gangrena». Ainda nos nossos dias se usa como balsâmico e antiséptico. Amato Lusitano, na CURA L, 6ª Centúria - De uma mulher que abortou no tempo certo de gestação e do seu tratamento, indica uma fumigação de benjoim e bálsamo do Perú na composição da teriaga. Depois da fumigação aplicava «um pessário feito de opobálsamo, que é trazido da região do Perú há pouco descoberta», aconselha o seu uso a todos os farmacêuticos (e perfumistas), pois ele próprio o utiliza na composição da teriaga. Em pleno século XVIII, para Ribeiro Sanches os boticários são os maiores praticantes da Medicina: «São elles os que curam as enfermidades, os que consultamos médicos famosos pelas queixas dos seus doentes e elles mesmos são os que lhes vendem os remédios das suas boticas». De uma outra resina, o incenso, Garcia de Horta diz que os médicos indús fazem com ela unguentos e perfumes e que, comido é bom para muitas doenças de cabeça. Do seu valor fala o presente dos Reis Magos. O mesmo quanto ao estoraque, do qual diz a Pharmacopea Tubalense: “He o Estoraque Calamita, estomáquico e confortante do coração, e contra a malignidade de humores. he molificante, e resolutivo” Amato utiliza-o como emoliente na CURA VU De febre quartã, e na CURA L, 6ª Centúria, também o usa. Porém, na CURA V, 7ª Centúria, a propósito das novas drogas dadas a conhecer por Portugueses e Hispânicos, comenta: “...de igual modo importa que se seja conhecedor não só dos remédios exóticos, trazidos da índia e de outros países, mas se possa utilizar dos caseiros fáceis de preparação ...”.Nesta cura utilizou vinagre muitíssimo forte. Conhecedor de remédios exóticos, de outros países além dos da Índia, utiliza na CURA XLV, 4ª Centúria - De artrite, a salsaparrilha, bem como nas Curas LXll e ,X, 5ª Centúria, em xarope e em decoto. As virtudes da salsaparrilha do Brasil foram referidas nos escritos do Jesuíta Pe. Vasconcellos. A salsaparrilha era conhecida no comércio europeu como salsaparrilha de Lisboa. Os Hispânicos chamam-lhe Salsaparrilla (Similax officinalis KUNTH). Rica em saponinas, é fármaco depurativo. Do Bálsamo Catholico ainda fazia parte o Bálsamo Peruviano Sólido, o qual ainda se usa externamente como antipsorico, cicatrizante de úlcera, e gretas do seio. Donde o conselho dado aos farmacêuticos para a sua utilização. De láudano puro e bom também faz uso Amato Lusitano, na CURA XXXII, 2ª Centúria - Sobre cólera morbus, na composição de um escudo estomacal, na qual entram a canela, o cravo da Índia, a noz moscada, o pau-aloés, resina, etc. Sândalos, cânfora e ópio são utilizados na CURA LXXIII, 4ª Centúria - Da erisipela ulcerosa que apanhava a face e toda a região do olho direito e na CURA XXI, 1ª Centúria - Duma febre desprezada após um pleuzite, numa confeição cordealfria, na qual além de inúmeras pedras entravam todos os sândalos, cânfora, ouro e prata, e...chifre queimado de veado e osso do coração de veado! Na CURA XXXIII, 4ª Centúria - De um menino que sofria de febre contínua; utiliza o sândalo em unguento, e em eleituário. O incenso usa-o, por ex. Na CURA XCV, 1ª Centúria - Dor nos pés, na confecção de um linimento, terminando a cura com um banho de água do mar. Aliás empregava banhos de água doce, por ex. na CURA XV, 1ª Centúria - Da supressão da menstruação e de exantemas que apareciam por todo o corpo em que mandou à doente “que tomasse banho... feito de água doce em que foram cozidas rosas vermelhas”. Nas doenças de foro dermatológico um outro género de terapêutica, já usado pelos Romanos, recomeça nos fins do século XVIII a ser prescrito: a hidroterapia e o termalismo. Já no século XVI e XVII a balneoterapia despertara o interesse de alguns médicos notáveis. Assim Zacuto Lusitano (1575-1642) aconselhava as termas (férreas, nitrosas, sulfúricas, aluminosas, etc) para o tratamento de várias doenças, principalmente artropatias, tão frequentes nos nossos dias, e, imitando Amato Lusitano, aconselhava práticas 19 hidroterápicas contra certas doenças febris. Cerca de fins do século XVIII também os banhos de mar e o clima marítimo comecam a ser aconselhados, como terapêutica. Aliás como vimos na CURA XCV, o banho de mar para os pés já fora aconselhado por Amato Lusitano, e a mudança de clima, seguindo os ensinamentos de Hipócrates, no caso de longas febres, na CURA 4ª, 5ª Centúria - De febre Préctica introduzida depois de longas febres: “Mudar de solo pátrio é bom nas doenças prolongadas”. Nesta CURA tratava-se do “meio ambiente” em que os doentes se encontravam em que o ar do quarto era demasiado húmido, carregado e frio. Alterado o” clima” do quarto, novamente Amato Lusitano o levou a tomar o costumado banho no fim do qual bebia oito onças de leite de cabra. E A. Lusitano termina: “De modo que aquele que por todos era lamentado, agora aí está, vigoroso, alegre, saboreando o seu leite familiar, como fazem todos os teutões. Este com frequência manda preparar de sua vontade um banho em que mergulha com o maior dos prazeres”. Donde se conclui que a hidroterapia, tanto no século XVI como no século XVIII era sobretudo usada no tratamento das pirexias. E a propósito de água lembremos a «Água Ardente», muito usada no século XVIII para doenças da pele e da qual Curvo Semedo diz: «muytas Erysipellas se curão com Água Ardente». Nas erisipelas Amato receita um unguento. Dentro das doenças infecciosas e contagiosas da infância mais frequentes no século XVIII, e que se manifestavam sob a forma de erupções cutaneas, destacam-se o sarampo, a varicela e a varíola. É sobre estas que ontem, como hoje, a Higiene e a Profilaxia alcançam as maiores vitórias, pois datam de fins do século XVIII as inoculações e a vacinação, como métodos preventivos da doença. É um médico do século XVIII, Bernardino António Gomes (o descobridor de um dos alcalóides da quina, a quinina), o fundador da Dermatologia Portuguesa. É também quem, com a Academia das Ciências, funda a Instituição Vacínica. Com a vacina, princípio da Medicina preventiva, uma nova era se iniciava. E é aqui que reside a suprema diferença entre a medicina do século XVI e a de fins do século XVIII. É no ano de 1799 que é introduzida em Lisboa a vacina de Edward Jenner (1749-1823), vasiolae vacinas. Anteriormente às vacinações já se faziam inoculações que tinham começado em Lisboa em 1768. Se considerarmos que a varíola em princípios do século XVIII provocava uma morte por cada dez doentes, e atacava uma grande parte da população, apesar das inoculações fazerem diminuir progressivamente o número de casos mortais, a varíola prosseguia na sua mortífera caminhada. Apenas a vacina de Jenner levou ao quase desaparecimento da doença. O mesmo quanto à varicela e ao sarampo. A grande diferença entre curar e prevenir, já proclamada por um médico nascido em Penamacor, Ribeiro Sanches, o qual acima da medicamentação aconselhava profilaxia e higiene. Higiene que também Amato Lusitano proclamava através dos banhos, e de ar puro ou mudança de meio ambiente. Terminaremos com um dos Aforismos de Hipócrates (460?-377? AC). “O ferro (a cirurgia) cura aquelas enfermidades que as medicinas não remedeiam; as que o ferro não cura são curadas pelo fogo, e as que o fogo não trata, contem-se então entre as totalmente incuráveis”. Amato Lusitano utilizou todas estes meios da arte de curar: as medicinas, a cirurgia e o fogo. Só não dispôs da arte de prevenir a doença. No século XVIII, com a vacinarão, uma nova era se iniciou para a Medicina. * Museu Nacional da Ciência e da Técnica Bibliografia ABREU, Brás Luís - Portugal Médico Lusitana - Coimbra Off Joam Antunes. 1726. CAMÕES, Luís de - Os Lusíadas, Estúdios Cor, 1971 (obra comemorativa do 4° centenário de Os Lusíadas 1540-1625). COELHO, Manuel Rodrigues - Pharmacopea Tubalense Chimico-Galênica, Roma Otf. Balio Gerendini, 1740. COSTA, Cristóvão da - Tratado das drogas e medicinas das Indias Orientais. No qual se verifica muito do que escreveu o Doutor Garcia de Orta. Lisboa, Junta Inv. 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Luís Seco Ferreyra,1745. 21 À PROCURA DA IDADE DO CANCRO NAS CENTÚRIAS DE AMATO LUSITANO por António Lourenço Marques* A DOENÇA COMO OBJECTO DA HISTÓRIA Também a História patenteia a marcha vigorosa que se verifica em mais ciências sociais, exemplificada pelo entusiamo no estudo de tudo o que pertence à sua traça, como se sem exclusão de nada. Esta orientação para objectos só ilusoriamente insignificantes e que foram, por muito tempo, considerados desprezíveis, revelou-se, antes pelo contrário, tão enriquecedora para o conhecimento que se pretende global, ainda que selectivo. O interesse por zonas marginais, por minudências ou trivialidades, contrasta assim com os temas que prevaleceram antes, quando triunfava o estudo focalizado nas instituições relacionadas como poder político, nos “grandes” acontecimentos, nos protagonistas excelsos, ou nas variáveis económicas, nos ciclos de moeda, etc. Aparecem agora outros objectos, até inesperados, como o sexo, a vida do casal e da família, a velhice, a infância, a morte, o medo, as paixões, o pecado, as doenças, etc, etc. São, apropriadamente, sempre realidades da vida do homem, que ao serem estudadas, também na perspectiva do historiador, ajudam a melhor compreendê-lo, no presente, porque “iluminado pelo passado” e a “perceber as nossas inquietações e dificuldades actuais”, no entendimento de Vitorino Magalhães Godinho(1). No fundo, é um caminho que contribui para a não obrigatória, mas certamente desejável, beneficiação do futuro. Constata-se pois a ampliação dramática dos interesses da história. Avança-se para um nível mais palpável da vida, passando do corpo social, como objecto exclusivo de estudo, para o corpo físico que é o primeiro objecto cultural e com ele as manifestações que o envolvem, os próprios “gestos do quotidiano, (...) as práticas corriqueiras que preenchem, revelam e cimentam o grupo social”(2). A doença, isto é, certas situações de desarmonia do corpo, com os seus registos apropriados, traduzindo muitas vezes relações conflituosas ou de confronto, ou mesmo de simpatia com a envolvente social, pode representar um lugar privilegiado para permitir a apreensão de sinais e significados singulares e de realidades inapreensiveis ou insuficientemente apreensíveis de outra forma, não só relacionadas com práticas sociais determinadas, como também com certos mecanismos administrativos, ou com “a imagem que uma sociedade tem de si mesma”(3). Ora, o historiador, desde há muito, compreendeu a importância deste acontecimento irregular, mas determinante, da existência de cada indivíduo e da própria sociedade. Por isso, a referência às doenças é comum, não escapando habitualmente à trama dos seus relatos. Mas a enfermidade pode também ser observada doutro modo. Há mesmo doenças rebeldes a uma explicação social. Assim, na perspectiva de uma abstracção, que o é de facto, é uma entidade que congrega um conjunto de manifestações entrelaçadas. É uma construção formada na base de queixas ou sintomas, certos sinais e algumas alterações inscritas na realidade física do corpo, isto é, na anatomia e/ou na bioquímica, observáveis pelo contacto directo ou objectivadas pelos meios complementares de diagnóstico. “Aos elementos assim reunidos atribui-se um diagnóstico do qual decorre um determinado tratamento destinado a agir sobre os sintomas e se possível também sobre as causas”(4). “Todas estas noções, estes pressupostos, estes encadeamentos, têm que ver com 22 um estadio do conhecimento, com uma ideia de ciência. São forçosamente evolutivos. Por natureza a medicina é histórica”(5). A HISTÓRIA DO CANCRO O homem de cada época tem investido, em uma ou várias doenças, a sua angústia diante da fragilidade da condição humana, com o corpo sujeito à degradação e à morte. São doenças habitualmente difíceis de tratar ou incuráveis e que se prestam a simbolizar muitos dos sentimentos negativos das pessoas. No século XV, foi a lepra, no século XVI, a loucura, no século XIX, a tuberculose e, no século XX, mais particularmente a partir do seu meio, o cancro, (hoje a sida, de certo modo, disputa o mesmo lugar). A impotência perante a resolução de inúmeros casos, apesar dos avanços da medicina, o carácter particularmente penoso dos seus sintomas, a dor terrível, a deformação, etc., com a morte como horizonte intransponível, promoveu esta doença a algo que simboliza, de facto, o que há de mais assustador para a vida do homem. Esta é a imagem actual do cancro, anteriormente mais favorável. Durante muito tempo, foi considerado como uma doença sem significado excessivo, apenas marcada pelo selo da gravidade, mas como muitas outras. Sendo também uma dessas doença que não evidencia abertamente implicações sociais, não se presta com facilidade à elaboração de uma história no seu sentido social. Já o mesmo não se pode dizer quanto à história científica, isto é quanto à história da evolução dos conhecimentos sobre a sua natureza, o diagnóstico ou sobre as práticas terapêuticas que suscita. Conhecido e estudado desde a alta antiguidade, esta história reflecte bem a longa e lenta evolução do conhecimento científico, com algumas aquisições certas, muito antigas, que prevaleceram e cimentam a ciência de hoje. O modelo da história desta doença serve assim para perceber como se processou a génese de saberes actuais, que correspondem, por definição, à melhor “verdade” científica dessas realidades, ainda que envolta em muitas incertezas e perplexidades. No papiro d’Hebers, escrito entre 3730 e 3710 anos antes de Cristo, há descrições pormenorizadas de tumores. Os Vedas, que são os primeiros textos religiosos e poéticos da índia, datados de cerca de 1500 anos antes de Cristo, referem-se também a tumores malignos e até a actos terapêuticos(6). Na continuidade histórica, Hipócrates e Galeno tratam do tema com grande profusão. Ora, as ideias que têm dominado a história do cancro são: 1 - Se o cancro é uma doença local ou geral; 2 - A noção de metástase; e 3 - As indicações terapêuticas, incluindo o papel dos cuidados paliativos Esta última faceta da terapêutica, cujo desenvolvimento continua tão actual, quase como uma redescoberta, tem, curiosa e surpreendentemente, uma definição bastante precisa, no século XVI, como vamos ver, de acordo com o testemunho legado por Amato Lusitano, na obra ímpar e excepcional que são as Sete Centúrias de Curas Médicas. A Cura 32ª da III Centúria, dedicada ao cancro da mama (7), constitui uma síntese notável sobre o estadio dos conhecimentos acerca do cancro, naquela época. Esta cura descreve a doença de uma religiosa, de trinta anos, sobrinha do bispo de Ancona, Balduino de Florença. Amato relata-nos os primeiros sintomas da doente que foram “abundantíssima transpiração” e “palpitações do coração” sentidas cerca de dois meses antes do aparecimento de ‘`prurido na papila da mama direita”, de “picadas lancinantes” e de “febre”. É, nesta altura, que tem o primeiro contacto com a doente, observando “tudo como é preciso”. “A papila apresentava-se um tanto mais espessa”, como descreve. Perante esta apresentação, Amato Lusitano diagnosticou “uma atroz doença, que era sem dúvida um cancro”. Havia então o hábito natural e muito salutar de informar os doentes acerca da natureza e gravidade da doença diagnosticada: “exponho em poucas palavras que era doença gravíssima e perniciosa, de que se seguiria morte certa, a não ser que fosse curada por mão de Chiron e Esculápio”. A intervenção do médico, isto é, através dele, da medicina, é entendida como determinante quanto à evolução da doença e Amato lamentará sempre que os doentes demorem a recorrer ao médico ou recusem os seus conselhos(8). Embora as doutrinas de Galeno, na peugada de 23 Hipócrates, quanto à natureza das doenças, continuem a dominar (Amato é um profundo conhecedor destes autores), há no entanto novidades e esta cura reflecte a passagem para um cstadio novo, verificado a partir das descobertas da anatomia e da fisiologia, que implicaram uma nova mentalidade do médico, quer como motora do desenvolvimento quer como seu produto. A ideia sobre a formação do cancro é galénica. “O cancro forma-se do humor melancólico (...) conforme ensinou Galeno no livro De Atrabile”(9). Um excesso deste humor, portanto uma causa geral, por um lado, com repercussão em todo o organismo, apresentando sintomas gerais e, por outro, explicando a universalidade da localização do próprio cancro. “Os tumores carcinosos costumam formar-se em todas as partes do corpo”. “Vimos muitos cancros nas mamas, no queixo, nas regiões glandulares, como no pescoço, nas axilas e nas virilhas”, informa Amato Lusitano, nesta cura excepcional. Mas é a actuação terapêutica que revela como o entendimento desta doença era ainda mais complexo e, julgamos nós, mais de acordo com a realidade científica da doença. Se é certo que o ensinamento de Hipócrates é considerado, pois é lembrado por Amato, logo que fez o diagnóstico, (“todos os cancros ocultos o melhor é não os tratar. Os tratados levam depressa à morte, os não tratados duram mais longo tempo”, Hipócrates, livro 6° dos Aforismos)(10), o contacto que vai ter com a doente e portanto com esta doença, neste caso concreto durante um longo período de tempo, permite-lhe expor a actuação que julga mais adequada e que deve ser aconselhada, de modo a que o doente a cumpra. Ele lamentará, mais tarde, após cerca de dois anos da primeira consulta, e quando encontra o cancro já em fase avançada, a recusa da doente em não ter deixado nunca “arrancá-lo a ferro”. E tal como na cura 31ª da 1ª Centúria, coloca em primeiro lugar a hipótese da cirurgia, a que os doentes então, no entanto, dificilmente se submetiam, como se compreende sem esse esteio indispensável que é a anestesia, só descoberta cerca de quatro séculos depois. A recusa à actuação sangrenta era de facto muito comum. “Começámos portanto o ataque à doença, a ver se seria melhor usar cirurgia”. “Mandei que fossem chamados dois ilustres cirurgiões (...), mas quando estávamos todos de acordo, ela (a doente) não acedeu”(11). A remoção cirúrgica radical do tumor é efectivamente o primeiro conselho de Amato, perante tumores “que ocupem um sítio adequado, à volta do qual se possa devidamente executar um trabalho manual e principalmente afastado das muitas artérias e dos pequenos vasos”(12). “O tumor canceroso, no seu início, deve ser arrancado radicalmente por operação manual”(13). Mas esta intervenção devia ser acompanhada do tratamento geral, que basicamente envolvia conselhos relacionados com a qualidade do ar, a qualidade da alimentação, tema extensivamente desenvolvido na referida Cura 31ª da 1ª Centúria, os cuidados com o espírito e, obviamente, a terapêutica “evacuadora” do humor responsável pela doença, isto é, as sangrias e as purgas(14). Estes cuidados, associados ao tratamento cirúrgico, eram fundamentais, pois assim “não é de temer que sobrevenha outro (cancro) de novo”. A IDEIA DE METÁSTASE E A MEDICINA PALIATIVA Mas esta religiosa de S. Bartolomeu recusou o tratamento cirúrgico, aconselhado pelos médicos. Ao fim dos dois anos, “em vez do pequeno tumor, sofria de uma ulceração cancerosa, de grande tamanho” e tinha “raízes de tal modo implantadas que era de crer tivesse ocupado os pontos mais íntimos do corpo” (15). Que melhor descrição precisamos para caracterizar a metástase, noção atribuída no entanto a Claude-Anthelme Récamier (1774-1852), já no início do século XIX?(16) A ideia de metástase é pois muito mais antiga e tinha grande importância na indicação terapêutica. Amato recorda que Galeno chama “raízes do cancro” (...) a “veias repletas de sangue negro e melancólico que se distendem pelas regiões circundantes” ao tumor. Mas ele fala na ocupação de “pontos íntimos do corpo”, uma ideia mais precisa e mais de acordo com a realidade científica deste aspecto determinante da doença. A sua “verificação” determinava, tal como hoje, a decisão terapêutica. Outro aspecto a que Amato Lusitano não é insensível é a dor. Chama com insistência a atenção para este sintoma, que pode traduzir também o estado adiantado da doença, como se pode inferir no caso da mulher de Sebastião Pinto, desta Cura 31°. Quase antes de morrer, as “dores acompanhavam sempre esta chaga” e, por fim, foram “mais fortes e graves que nunca”. Nestas condições e nesta fase da doença, “está confirmado, pois, ser este um cancro que só admitia tratamento benigno” É esta a palavra utilizada por Amato, mais expressiva que as caracterizações de Galeno, que chamava a este método de curar ou à “providência que convenha ao sofrimento” e “torná-lo mais suave”, de “mitigatório, demulcente ou afagante” e que “costumam os autores de medicina mais rudimentar chamar paliativo”. Amato diz que neste caso, “se nada mais fizermos, é necessário que limpemos ao menos o pus, usando qualquer substância líquida, não ao acaso mas já encontrada por experiência ou indicação”(17). A medicina paliativa é uma prática dos médicos, 24 muito antiga. E satisfaz-nos constatar como o interesse que actualmente cresce em relação a esta área da medicina, sendo já uma especialidade médica bem definida em vários países, não é novo. Os humanistas do século XVI proclamavam-lhe o alcance e a necessidade, como demonstra o notável médico albicastrense. E não era uma actuação fora do exercício próprio do médico. “Necessária” e com cuidados precisos, provados pela “experiência e com indicação” são palavras quase definitivas sobre as atribuições deste tipo de medicina. O modo como estas questões sobre o tratamento do cancro são colocadas no século XVI e as próprias atitudes assumidas, numa dinâmica de procura da melhor solução para combater a doença, lembramnos a realidade actual, que continua, como então, com não poucas incertezas. Donde, deixarmos a pergunta: Qual é então a idade científica do Cancro? E voltamos a Vitorino Magalhães Godinho. O estudo da história serve também para compreendermos quão profundas são as raízes das” perplexidades do pensamento actual “(18). Isto é, também a história da ciência, mesmo sem uma marca que seja claramente social, se é certo que procura proclamar as certezas e as conquistas que cimentam o seu edifício, comunga das hesitações e das dúvidas que existiram ontem, que ainda são de hoje e com certeza vão prevalecer. * Assistente hospitalar graduado. Consultor de Anestesiologia. Notas 1 - Vitorino Magalhães Godinho - A crise de história e as suas novas directrizes, Lisboa, Empresa Contemporânea de Edições. 2 - André Lepecki - Doenças, as Ficções e a História, Leituras, Público n° 839, 12 de Junho de 1992, p. 2. 3 - Jacques Revel e Jean-Pierre Peter. - O corpo, o Homem Doente e a sua História, in: Fazer História, vol. 3, Bertrand Editora, Lisboa, 1987, p. 187. 4 - Sournia, Jean-Charles - O homem e a doença, in: As Doenças têm história, Terramar, Lisboa, p. 343. 5 - Ibid., p. 344. 6 - A.Tchakline - Le cancer Problème du Siècle, tradução francesa, Edições MIR, 1980, p. 11. 7 - Amato Lusitano - Centúrias de Curas Medicinais, trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova de Lisboa, p.p. 220 - 224. 8 - Outro caso, como exemplo de um doente com cancro: “deixou passar oito meses nos quais não tratou de empregar nenhuma espécie de remédios, embora nesse intervalo de tempo, aquele pequeno tumor se houvesse tornado grande” - João Rodrigues de Castelo Branco (Amato Lusitano), Primeira Centúria de Curas Médicas, Cura XXXI, Trad. de Firmino Crespo, Livraria Luso Espanhola, 1946, p. 110. 9 - Amato Lusitano. Centúrias de Curas Medicinais, trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova de Lisboa, p. 223. 10. - Ibid., p. 221. 11 - João Rodrigues de Castelo Branco (Amato Lusitano), Primeira Centúria de Curas Médicas, Cura XXXI, Trad. de Firmino Crespo, Livraria Luso Espanhola, 1946, p. 110. 12 - Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais, trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova de Lisboa, p. 224 13 - Ibid., p. 222. 14 - João Rodrigues de Castelo Branco (Amato Lusitano), Primeira Centúria de Curas Médicas, Cura XXXI, Trad. de Firmino Crespo, Livraria Luso Espanhola, 1946, p. 113 15 - Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais, trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova de Lisboa, p. 222 16 - Marie-José Imbault-Huart. - História do Cancro, in: As Doenças têm História, Terramar, Lisboa, p. 170. 17 - Ibid., p.222. 18 - Vitorino Magalhães Godinho. - A crise de história e as suas novas directrizes, Lisboa, Empresa Contemporânea de Edições. 25 Notícias das Plantas Medicinais e Aromáticas da 2ª Centúria de Amato Lusitano ACHEGAS PARA O ESTUDO DA ECOLOGIA DE VEGETAÇÃO DA BEIRA INTERIOR por A. M. Lopes Dias* Na “Charneca em Flor”, Florbela Espanca fala do Rosmaninho e da Esteva e da nevrose de sua Mãe... A. NOTÍCIA DAS PLANTAS MEDICINAIS E AROMÁTICAS DA SEGUNDA CENTÚRIA DE AMATO LUSITANO 1. Cria-se a ideia na Idade Média que o poder da mandrágora (Mandragora officinarum L.) provinha de um factor divino: a sua raiz de aspecto antropomórfico, teria sido inicialmente fabricada com a mesma terra com que Deus moldava o corpo de Adão, o que teria dado lugar à supremacia da mandrágora sobre os outros vegetais. É notória aqui a preponderância atribuída às raízes como local privilegiado das propriedades mágicas ou curativa das plantas(1). Aos olhos dos Antigos, este orgão participava do elemento terroso e estava em situação intermédia entre os elementos, como entre o vivo e o morto, o que conferia um estatuto e poderes particulares(2). Diz Amato que Galeno é por muitos desacreditado, lamentado, escalpelizado, e tido como mentiroso (Cura 72, II Cent. Pág. 130). Galeno e os médicos definem Veneno e convém saber que este, quando penetra e permanece no organismo vence e corrompe este, actuando com toda a substância, como o da víbora, etc. Define Medicamento venenoso aquele que pelas suas propriedades ataca o organismo, como a cicuta, a mandrágora, o ópio. Diz que o Alimento nutriente é aquele que opera muito pouco sobre o organismo, mas que se desfaz completamente, como o figado de galináceos e a carne das aves de boa qualidade. Nutriente Medecina é aquela que embora actue no organismo pelas suas qualidades, é todavia assimilada muito bem, como os frutos. Da Medecina refere que quando actua sobre o organismo, mas não é assimilada e ocasiona alguma perturbação, tal como a açafroa e o agárico. Medecina Nutriente é a que actua sobre o organismo, após longas transmutações é assimilada ao corpo, como os alhos e as cebolas. Após citar as palavras de Galeno para depois o julgar, notando que não errou, pois atacã-lo neste assunto é quase como subverter toda a medicina(1). 2. Desde a formação da biblioteca de Assurbanipal em Nivive as tábuas de argila de escrita cuneiforme mencionam já 150 plantas medicinais e o mesmo número de plantas tem o papiro de Ebers, egípcio, que já tinha 3500 anos, mas refere-se a colectores com cerca de 5000 anos(2). Galeno referia no séc. Il d. C. mais de 450 plantas medicinais e insiste na necessidade de possuir uma sólida bagagem de ervanário e de botânico. Ficaram célebres a abadia de Monte Cassino entre Roma e Nápoles e os ensinamentos médicos nela ministrados. O tratado Circa instans de 1150, enumera 229 drogas vegetais, com novidades da medicina árabe e que foi escrito em Salerno. Alberto o Grande, que ensinava medicina em Paris, escreve o De Vegetalibus e refere-se a Avicena (980- 1037) e ao Canon da Medicina, vasta enciclopédia médica, que só foi traduzida para latim, no séc XII por Gérard de Crémone. Avicena de origem persa, de seu nome d’ Ibn Sina, médico e filósofo do séc. XI, foi também traduzido para latim em 1473(2). A obra de Guillaume de Salicet, cirurgião italiano do séc. XIII, fala na primeira parte do seu livro, das doenças exteriores do corpo de causa interna. Na segunda parte, descreve as chagas e as contusões nas partes moles. E, na terceira parte, intitulada algebra (da palavra árabe al-djabr) que siginifica restauração e que deu no contexto das matemáticas o termo algebra e que se ocupa de fracturas e luxações. 26 Uma quarta parte é dedicada à anatomia(9). A escola de medicina de Montpellier pôs sempre em causa os conhecimentos médicos livrescos e beneficia do conhecimento das medicinas árabe e judia espanhola, da protoquimiatria árabe e com auxílio da alquimia, suscitará desenvolvimentos espectaculares. O primeiro jardim botânico é criado em Pádua, em 1545, em anexo à escola de Medicina da sua Universidade. Jacques Le Goff não está de acordo com Maximiano de Lemos. Este diz que João Rodrigues na sua ida para Ferrara, em 1541, tem o ensejo de aprofundar os estudos botânicos, onde existia, à época, um jardim com plantas de raridade extrema(3). Anterior portanto, ao jardim botânico criado em Pádua, em 1545, em anexo à escola de Medicina, como sublinha Jacques Le Goff(2). Em 1593 é criado o primeiro jardim botânico francês em Montpellier. Brunfels, em 1530, publica o Herbarium vivae icone e Fuchs em 1542, publica a História stirpium. Amato Lusitano tinha publicado o Index Dioscorides em 1536, e em Florença imprime-se a Primeira Centúria em 1551 e a Segunda Centúria sai dos prelos de Veneza em 1552. As Enarrationes saem em 1553 e os Comentários de Mattioli, em latim, saíram em 1554 e a 2° parte em 1558, sendo nesta que ataca João Rodrigues, assunto conhecido e que Maximiano Lemos e José Lopes Dias já escalpelizaram(3 e 4). Só no séc. XVII em 1633, é instalado em Paris, o Jardim real das plantas medicinais, hoje Jardim das Plantas. Em 1636 o jardim tinha 1800 vegetais, mas em 1641 estes seres vivos aumentaram para 2360. 3. Estudamos as plantas da citada Segunda Centúria de Curas Médicas e o seu conjunto de plantas terapêuticas. Depois de ponderado o numeramento chegamos a um somatório de 170 plantas novas e que não foram enunciadas na I Centúria. Estas são fruto da nova terapêutica e apresentam o acréscimo de conhecimentos do seu autor. Já tinha empregue na I Centúria 281 plantas de que falamos no nosso trabalho apresentado nas V Jornadas. Assim temos o total nas duas Centúrias iniciais, a indicação de 451 vegetais, o que consideramos notável. Esta produção equivale a uma vida profissional intensa, não nos esquecendo que isto se passava em meados do séc. XVI e começam a aparecer nesta II Centúria as plantas das descobertas ocidentais, do Novo Mundo tanto nossas como dos vizinhos peninsulares. Descobertas há muito poucos anos, como João Rodrigues por vezes lembra. Como por exemplo, o opobálsamo do Perú, trazido dessa terra ainda há pouco descoberta(1). A II Centúria é escrita a partir de 1 de Abril de 1551(1) (4). O Balsamo do Peru, refere-se ao suco obtido do Myroxyglum pereirae Royle, leguminosa, oriunda deste país da América Sul. É diurético e era empregue nos catarros da bexiga, na blenorragia, entre outros(8). Também a propósito de outra composição, a teriaga, diz que terá cada um dos símplices que entram na sua composição, escolhidos mesmo dos confins do mundo, não nos poupando a despesas. Estas afirmações dizem bem a sua largueza de vistas, sem hermetismos (C.55, II Cent.). Outra ideia que nos parece importante é a mudança que se opera nos tratamentos, o que demonstra muita experiência, estudo e reflexão. Na associação de plantas para a preparação de determinadas terapêuticas, observa-se a preocupação de sintetizar e todas elas, de maneira geral, têm poucos símplices, ao contrário do que sucedia na Centúria inicial. Demonstra também o cuidado e conhecimentos de quem utiliza plantas e substâncias químicas, em utilizar doses com maiores diluições, reduzindo a potência dos fármacos, acentuando que doses mais fracas atingem resultados mais rápidos e melhores para os doentes. Dos produtos usados que não eram de origem vegetal, desde o chifre de veado queimado até ao rútilo, dão um conjunto de 60 unidades na II Centúria. Ficamos a saber que estes produtos cresceram em relação aos indicados na I Centúria, embora levemente. Contudo, os produtos não vegetais das duas primeiras Centúrias comparados com os vegetais dos mesmos livros, dão uma relação de 20% e 80% respectivamente favorável portanto aos últimos. Os produtos da fauna doméstica são o rol que aumenta os não vegetais da II Centúria. E relembramos que na I Centúria os vegetais atingem 84%(5). 4. Parece-nos útil dizer quanto à tradução do Dr. Firmino Crespo nos merece o maior respeito, mas não desdoura o seu trabalho se apresentarmos algumas achegas botânicas que são necessárias. A propósito da C. 44, Il Centúria, pág 91, na tradução aparece Erva gnafália, chamada Formentícia, e depois em nota de rodapé, põe os sinónimos Formentila e 27 Formentilha, servia esta erva para o tratamento da disenteria. Como estas ervas têm muitos nomes vulgares regionais, além dos botânicos, apresento o tema numa transparência que facilita a leitura. (Folha transparência com os Potentillas). Amato não escapeliza a destrinça das espécies. A dificuldade reside na ligação da História à Ecologia da Vegetação. Mas é sobretudo para chamar a atenção, da necessidade de se usar um só nome vulgar correspondente ao nome botânico das plantas, para evitar o caos. Estamos de acordo que de cada planta se eleja o nome vulgar actual mais usado a nível nacional e que se leve em conta, se possível, as designações dos países latinos para facilitar o entendimento dos vegetais. Amato fala da água de gnafálio, donde se faz um vinho cozido contra a disenteria que Dioscórides muito elogia no seu livro 3° da Matéria Médica. (Cura 44, II Centúria) Tratamento da Desinteria FAM.ROSÁCEAS Nome Botânico Nomes vulgares Potentilla erecta (L) SETE-EM-RAMA Rãuschel TOMENTINA (rizoma) TORMENTILHA TURMENTILA TORMENTILA ERVA GNAFÁLIA (A.) TORMENTÍCIA (A.) TOMENTO (A.) Potentilla reptans L. CINCO-EM-RAMA POTENTILA POTENTILHA QUINQUIFÓLIO TORMENTILA (A.) Potentilla ausexina L. (planta florida) (A.) - Designação de Amato Lusitano Na C.73 II Centúria, o tradutor fala em Coshiarum e em rodapé diz: “Será antes cochlearum? (N. do T.)”. Há de facto duas espécies: A Cochlearia officinalis L.= coclearia, da qual se utiliza a planta florida. Aparece ainda a C. officinalis subsp.officinalis L. conhecida por Cocleária ou Erva das colheres, que os espanhóis também indicam. Temos ainda a C. armoracia L. = Rábano silvestre do qual se utilizam as raízes. Hoje em dia emprega-se para debelar as úlceras. É esta espécie rica em Vitamina C, nomeadamente nas suas folhas. Amato empregava as pílulas de Coclearia no tratamento de uma chaga crostosa(6). Na Cura 7, II Centúria Amato fala da Erva ajuga a Camefites. F. Crespo chamava-lhe, impropriamente “Chamaepitys (fr. ive) (N. do T.)”. Existem a Ajuga reptans L. = Ajuga ou Erva-Carocha, a A. ive (L.) Schreiber = Abiga ou ainda a A. chamaepitus (L.) Schreiber = Erva crina a que Amato chama Camefites, como é fácil de perceber(7). Na Cura 81, II Centúria, há a preparação duma solução para possibilitar a um jovem obter filhos. Aparece na tradução Eruca hortense. Mas não é Eruca, mas sim Erica. E é E. cinerea L. da qual se aproveitam as sumidades floridas. Da família das Ericáceas há ainda a E. australis L. conhecida em vernáculo por Chamiça ou Urgeira (na Beira Baixa, em Vila Velha de Rodão há uma grande propriedade com este nome) e ainda a E. ciliaris L. de nome vulgar Carapaça. Inclinamo-nos para pensar que a Erica empregue por Amato fosse a E. cinerea L.. Porém não nos admirava que as outras espécies pudessem ser empregues no mesmo sentido(7). Ainda nesta C. 81, da II Centúria, F. Crespo fala de raízes de iríngio para excitar o impulso de Vénus, na sua tradução. Não é Iríngio mas sim Eryngium campestre L., um afrodisíaco conhecido no vulgo por Cardo corredor. Há ainda o Cardo marítimo = E. maritimum L. e ainda a Cardete = E. tenue Lam.: Todos são da Família das Umbelíferas(7). A C.81 da II Centúria, fala do almíscar doce, da sua confeição, e se destina a afrodisíaco e João Rodrigues chama-lhe diamischos, segundo F. Crespo. Conse-guimos chegar ao nome botânico que é o Erodium moschatum (L.) L’Her. da Fam. das Geraniaceas. Hoje chama-se Agulheira-moscada ou Agulha-de-pastor-moscada, a Almiscareira, o Bico-de- -cegonha-moscado, Bico-de-grou-moscado e ainda Erva-de-alfinete. Reparem que designações diferentes dão ideia clara da planta. Entre nós aparece com relativa facilidade. E. malacoides (L.) L’Her. é outra espécie conhecida por Maria-fia, Erva-garfo, a Marioila ou finalmente a Planta-de-garfos. A E. cicutarium (L.) L’Her, é outra espécie conhecida pelo Bico-de-cegonha e também por Repimpim. Para finalizar na Cura 81, Centúria II, F. Crespo traduz o Cardamomo da Cardamine hirsuta L., no vulgo Agrião-Menor ou Cardamina-pilosa. A outra C. pratensis L. é o Agrião-Menor ou Cardamina, a Cardamina dos Prados ou a Enxadreia. São da Família das Crucíferas. Mas na Cura 1, II Centúria, pág. 16, fala-se de dois cardamomos. Donde concluímos que Amato já conhecia as duas Cardaminas. Na C. 98, Centúria II, fala de um remédio à base da raíz de énula campana verde, para fazer face à incomoda sarna crostosa. Junta num ungento de banha de porco com a raíz e diz que tem admiráveis virtudes, a ponto de dizer que a sua acção mais parece obra de bruxedo(1). Esta planta da família das Compostas, além do nome vulgar Énula é conhecida 28 ainda hoje, entre nós, por Énula-campana, é também em espanhol, em catalão e em italiano, no francês por Inule-aunée, que é a Inula helenium L..Tem flores amarelas e os frutos são aquénios, é utilizado como expectorante e antiespasmódica, serve para a falta de apetite e para as desordens estomacais e intestinais e para a bronquite. Vegeta ainda a I. crithmoides L. conhecida vulgarmente por Campanada- praia ou Madomeira-bastarda. Na pág. 98 turbith, está mal escrita, não deve ter o h final. 5. Na Cura 95, Centúria II, que no rótulo tem “Do Cuidado A Haver No Tratamento Do Pano Ou Tremor Inguinal E O Que É O Pau-Deguáiaco, Que Entre Nós Nasce Com o Nome de Buxo”. Em seguida diz que o pau de guaiaco trazido das ilhas recentemente descobertas é o mesmo que os europeus chamam buxo, como se torna evidente a quem confirmar(1). A identidade referia-se aos tratamentos pois as plantas são ecologicamente muito diferentes. O guaiaco ou pau-santo, é o Guaiacum officinale L. da Família das Rutáceas. Árvore das ilhas da Jamaica, de Cuba, de S. Domingos e das Bahamas. Empregue na síflis, nas afecções cutaneas, nas dores reumáticas, na gota e nas escrófulas, etc. A decocção leva 50 g de guaiaco, água e ferve numa hora, para obter um quilo de cozimento, coa-se e depois de depor decanta-se(15). O Buxo, o Buxus sempervirens L., da Família das Buxáceas, da qual se praticam as folhas, as sumidades floridas e as raízes, como fazia Amato. O buxo é arbusto ou pequena árvore, geralmente com 1 a 5 m. de altura. As folhas são opostas, inteiras e glabras, a flor é branca esverdeada. Os frutos são cápsulas ovóides. Aparecem nos brejos calcários e seus bosques. É marcadamente mediterrânica e está representada em Portugal. Tem como primos a buxina, alcalóides secundários, vitamina C, tanino e óleo essencial. Como utilização actual, estimula a transpiração, alivia a febre e serve como laxante. Usase para as infecções, a epilepsia, a malária, na calvície e no reumatismo(6). 6. Quanto ao conhecimento geográfico das plantas, fala da Erva dos Passarinhos (herban passerculorum) em Nisa e Castelo Branco, nas muralhas do castelo. Indica as faldas de Serra da Gardunha para designar plantas. Fala nos nabos enormes do Sabugal possivelmente a caminho de Salamanca onde estudou. De Herrera de Alcantara e das pepitas de ouro que apareciam no rio Tejo e que muitas vezes empregava no seu receituário. Cita Almeirim, Santarém, Alcobaça, Pederneira, Oeiras e Lisboa. De Abrantes cita os melões moscatel de cheiro. Cita Setúbal e Alcácer do Sal e de Extremoz fala da água de medronho. Fala de Évora, a propósito de Pierre Brissot, sábio botânico que percorreu a Península Ibérica a estudar as plantas medicinais, por volta de 1518 e que veio a falecer em 1522. Nesta altura João Rodrigues tinha 11 anos. Na Cura 39, II Centúria, menciona uma rapariga de Esgueira, a nove léguas de Coimbra, a quem chama cidade ilustre de Portugal. Diz que a rapariga de Esgueira era fidalga e que passou de Maria Pacheca a Manuel Pacheco. Amato pensa que ele ficou sempre imberbe. É bem conhecido o seu trajecto europeu por isso não me refiro ao seu périplo pelas grandes cidades europeias da época renascentista. Na Cura 39 II Centúria, diz Amato: “Eu próprio vi em África”. Esteve naquele continente, não se referindo ao ponto geográfico ou áreas geográficas. B. ACHEGAS PARA O ESTUDO DE ECOLOGIA DA VEGETAÇÃO DA BEIRA INTERIOR 1. Já referimos na primeira parte as ligações importantes das diferentes culturas e que foram enriquecendo a medecina e as outras ciências afins, com os tratados publicados em edições renovadas e as traduções, que alargaram os conhecimentos científicos. Assim como a indicação dos herbários e dos jardins botânicos tão importantes para o alargamento dos conhecimentos das plantas. Amato foi aprofundando os seus conhecimentos de plantas desde os árabes aos chineses, apanhando as do Índico e do Pacífico. As descobertas a Ocidente vão abrir ainda mais o conhecimento de novas plantas medicinais, aromáticas e comestíveis. A II Centúria dá fé das muitas plantas novas das terras descobertas há pouco tempo. Vê-se a grande evolução que João Rodrigues realizou. Sente-se que cada planta sua conhecida foi experimentada e o aproveitamento que faria de uma certa área das mesmas se foi alargando, passando das folhas para as sumidades florais e destas para as raízes ou vice-versa. Amato Lusitano foi um biólogo porque tratou dos seres vivos. A maneira inteligente como percebeu que muitas plantas tinham nomes diferentes em diversas origens. Não havia uma classificação sistemática. Quando se pronuncia nas citações de plantas, atribui geralmente dois nomes à mesma planta, como mais tarde foram classificados por Lineu com o Género em primeiro lugar e a Espécie de seguida. Só que Amato nos dois nomes que aplica não os liga sistematicamente. As descrições deliciosas de muitas plantas de origens diferentes percebendo e afirmando que os climas não podem dar a mesma cópia do ser vivo vegetal. A noção de espécie, por vezes, ainda não era clara na sua destrinça, sobretudo quando as mesmas eram mais sofisticadas. O Conhecimento do meio era necessário para fazer as combinações de plantas que utilizava na sua terapêutica. Assim pode-se perceber que a relação entre a vida vegetal e o meio terrestre não tinham segredos para Amato, haja em vista as áreas geográficas que indica nos seus trabalhos, o que 29 permite considerá-lo um homem que abordou a Geobotânica “avant Ia lettre”, o que é o mesmo que falar de Ecologia da Vegetação seu sinónimo. Foi proveitoso para a nossa percepção destes grandes Mestres, nomeadamente Amato Lusitano e Garcia de Orta, com o estudo das plantas aromáticas, das medecinais e condimentares, e que devido à persistência e ao aproximar da base científica destas plantas, que interessavam os homens de ontem mas que interessam muito os actuais. Em área Geobotânica, como nos ensinou Amato, a importância da nossa região das faldas da Serra da Gardunha, da Serra da Estrela que ele conhecia muito bem como já abordamos o ano passado(5). Aproveitamos a ocasião para falarmos duma planta rara das faldas da Gardunha que aparece nas orlas dos cerejais, acima dos 600 m, pertencendo ao domínio do Carvalhal do Quercus pyrenaica. Espécie pelo Anexo II da Directiva 92/43/CEE, considerada prioritária dada a sua distribuição geográfica a nível mundial. Aparece só nas freguesias de Alcongosta e do Alcaide, com flores brancas ou rosadas, numerosas e dispostas num cacho denso ou em panícula. O Asphodelus bento-rainhae P. Silva. é uma planta da Família das Liliáceas. Foi descoberta pelo grande botânico P. Silva e pelo seu colector Bento Rainha que trabalhava com aquele botânico. Quem estuda esta Abrótea são os Engenheiros C. J. Pinto Gomes, professor em Évora e ligado familiarmente à nossa terra e as Colegas Sofia Castel Branco da Silveira e Paula Gonçalves na Reserva Natural da Malcata. Os frutos são cápsulas com 5- 7 mm, mitriformes, com rugas transversais na deiscência. Este endemismo faz parte de um trabalho desenvolvido no âmbito do projecto (I.C.N.-Life) de Espécies Ameaçadas da Flora a Proteger.(10) Em relação à arca estrelense, Amato fala do Rapôntico, ou melhor, a tradução deveria ser rapôncio ou rapúncio a Campainha-rabanete ou Esperado- Campo, cujo nome botânico é a Campanula rapunculus L.da Família das Campanuláceas, planta comestível actualmente. Amato fala dele para os disentéricos. É também endemismo da nossa Serra de Estrela a Campanula herminii, de flor anil. Já tinhamos falado da Genciana lutea, a argençanados- pastores raríssima e também em perigo de extinção(5). Há pouco mais de um mês morreu o Prof. Dr. Abílio Fernandes (94.I0.07) antigo director do Jardim Botânico e Prof. Catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Contava 88 anos. Estudou os Narcisos tanto o rupícola como o triandrus que não chegou a encontrar na Serra da Estrela. Falou do N. confusus muito raro na Serra da Estrela. O N. triandrus subsp. pallidulus (Graells) D.A. Webb confundindo com a subsp. triandrus e de facto era necessário esclarecer a distribuição destes dois taxa, este último aparece em Valhelhas (a 521 m.) e na Quinta do Prado (acima dos 800 m.) perto da Guarda. O N. asturiensis (Jordan) Pugsley, da Estrela, das Serras Montesinho, Gerês, das Astúrias espanholas e nas serras do noroeste. Tivemos ocasião de observar este narciso, este ano, entre Oviedo e Gijon. Estamos plenamente de acordo que se chame a este narciso, Narcisus nardeti A. Fernandes ao narciso tetraploide (14+14 cromossomas) = 28 que com o decorrer do tempo se torna estável. Além destes estudos, felizmente, vamos ter trabalhos dentro da Ecologia da Vegetação, levados a cabo no parque Natural da Serra da Estrela e aqueles que a Codicor dedica na região de Cortes.(13) Além destas regiões da Gardunha e estrelense, Amato também nos ensinou a importância da região dos salgados de Salamanca. Assim como a taxa leonês muito ligado a Trás-os-Montes, nomeadamente às Serras de Montesinho e Nogueira, extremidade de um sistema montanhoso descontínuo que se inicia nos Pirinéus e se prolonga pelos Montes Cantábricos, Montes Aquilianos, Montes de Leon e Serra de Sanábria. Facto, aliás reconhecido, na carta Fitogeográfica de Portugal de Franco (1984).(11) Ainda na Beira Interior e nomeadamente no concelho de Penamacor segue o “Estudo das Comunidades Vegetais da Reserva Natural da Serra da Malcata”. (12) A Sul e com grandes afinidades com áreas nossas da região ribeirinha do Tejo temos a flora alentejana. Do norte alentejano, nomeadamente os estudos de Malato-Beliz, Pinto Gomes, de Escudero e Lavado-Contador, no Parque Natural de São Mamede, no distrito de Portalegre e servindo de fronteira com a Extremadura espanhola. As alergias médicas e a Ecologia da Vegetação. Cinco anos de estudo em Évora (1989-1993) dão uma 30 panorâmica destes estudos no Alentejo médio. A análise estatística indicou que as rinites alérgicas atraem em 54,3% dos casos que a Oleae e a Poaceae são bastantes para a sintomalogia em Évora. Bastou o exame de 119 pacientes, com testes da pele e ver os casos em que são positivos. As conclusões à medida que se fazem o estudo de muitos casos facilitam a análise dos mesmos(14). Do lado espanhol e desde a nossa fronteira política acima do Tejo, trabalhos sobre a direcção do Prof. Doutor Ladero Alvarez, têm levado a cabo uma cartografia de Ecologia da Vegetação, trabalho da maior utilidade. As Plantas ensinam as pessoas, nunca tiveram tonteiras políticas, só aceitam as naturais que são sempre ténues. Amato Lusitano estava de acordo com elas. * Engenheiro Agrónomo Bibliografia 1. LUSITANO, Amato (1551), Centúrias de Curas Médicas, Volume II, Tradução de Firmino Crespo, Univ. Nova Lisboa, Faculdade de Ciências Médicas, Lisboa, 1980. 2. LE GOFF, Jacques (1991), As Doenças têm história, Ed. Terramar, Lisboa. 3. LEMOS, Maximiano (1899), História da Medicina em Portugal, Doutrinas e Instituições, Vols. I e II, Manuel Gomes, Edit.Livreiros de Sua Magestade e Altezas, R. Garret (Chiado), 70-72, Lisboa. 4. LOPES DIAS, José (1971), Biografia de Amato Lusitano e Outros Ensaios Amatianos. Separata de Estudos de Castelo Branco, Rev. História e Cultura, Academia Portuguesa de História. 5. LOPES DIAS, Manuel (1993), Estudo da Primeira Centúria de Amato Lusitano. O uso das plantas, imagens de aromáticas da região da Serra da Estrela e abordagem da sua composição florística. V Jornadas de Estudo da Medicina da Beira Interior, C. Branco. 6. LAUNERT, Edmund (1982), Guia de Ias Plantas Medicinales y Comestibles de Espanã y de Europa, Ed. Omega S. A., Barcelona. 7. ROCHA, Fátima (1979), Nomes Vulgares de Algumas Infestantes e Respectivo Nome Botânico, M.A.P, S.E.F. Agrário, D. G. Prot. da Prod. Agrícola, Oeiras. 8. CHERNOVIZ, Pedro L.N. (1904), Formulário e Guia Médico, 17° Ed Liv. de A.Roger e F. Chernoviz, Paris. 9. JACQUART, Danielle (1994), Les Grands Principes de Ia Medicine Médiévale, Les Cahiers de Science e Vie, Ambroise Paré, nº 19, Fev. 1994, Paris. 10. PINTO GOMES, C. J., S. C. Silveira, P.C.C. Gonçalves (1994), A Distribuição Geográfica e a Ecologia do Asphodelus bento rainhae P.Silva, Painel C.13, Colóquio Internacional de Ecologia de Vegetação, Universidadede Évora 27-28. Outubro 1994. Évora. 11. AGUIAR, Carlos, CARVALHO, Ana Maria (1994), Flora Leonesa das Serras de Nogueira e Montesinho, Painel C.19. Col. Int. de Ecologia de Vegetação, Universidade Evora, 27-28, Outubro 1994, Evora. 12. REGO, Francisco Castro, GONÇALVES, P.C.C., Silveira S. C. da, Lousã, M. Fernandes (1994), Estudos das Comunidades Vegetais da Reserva Natural da Serra da Malcata, Painel C.1., Colóquio Internacional de Ecologia de Vegetação, Universidade Évora, Outubro, 1994. 13. CODICOR, Ervanária (sem data), Cooperativa de Desenvolvimento Integrado de Cortes, Cortes do Meio. 14. BRANDÃO, R. M., Lopes, M. Luisa (1994) Plants Ecology and Medicine of Allergies: A 5-Year Study In Evora (1989-1993), Painel B 12° Colóquio Internacional de Ecologia da Vegetação. Universidade Évora, (Hospital Distrital Évora). Outubro 1994, Évora. 15. RASTEIRO, Prof. Dr. Alfredo (1992) Medicina e Descobrimentos, Liv. Almedina, Coimbra. 31 TUBERCULOSE E IDADES DO HOMEM - A SERRA DA ESTRELA NA VIDA, NA OBRA E NA MORTE DE SOUSA MARTINS por Maria Adelaide Neto Salvado* «A sua enfermaria no Hospital de S. José era uma romagem: não podia haver clínica mais douta nem mais sugestiva. (...) falharia a cura por impotência, mas não a devoção do alivio, a consolação dos aflitos.» Ricardo Jorge (Discurso proferido na sessão de abertura da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Porto, em 8 de Novembro de 1817.) Tempos açoitados por mutações sociais profundas que arrastaram guerras e fomes, violência e revoltas, varreram Portugal durante o século XIX. Pior que a devastação da guerra e a profunda instabilidade política e económica foi, no entanto, a sombra ameaçadora que a tuberculose pulmonar lançou nesse século à escala planetária. Em mais de 3 milhões de pessoas orçou, segundo as estatísticas da época, o número estimado de vítimas ceifadas anualmente por esta doença no mundo de então. Tendo em conta condicionalismos vários que se prendiam com a incipiência e as lacunas dos serviços estatísticos nos começos do século XIX, alcançou, por certo, valor significativamente muitíssimo mais elevado o número de mortes que esta doença provocava. Embora não se restringindo a idades específicas nem respeitando hierarquias sociais, a tísica, como era chamada na época, tinha no entanto uma predilecção especial por duas idades do Homem: a adolescência e a juventude plena. Dois grandes poetas portugueses desse século XIX, António Nobre e Cesário Verde - eles próprios acabando vítimas da implacável doença, traduziram de modo pungente esta cruel predilecção de idades. Assim retratou António Nobre o lento desvanecer da chama da Vida de uma adolescente tuberculosa: (...) Sarar? Da cor dos alvos linhos Parecem fusos seus dedinhos, Seu corpo é roca de fiar... E, ao ouvir-lhe a tosse seca e fina, Eu julgo ouvir numa oficina, Tábuas do seu caixão pregar! Sarar? Magrita como o junco, O seu nariz (que é grego e adunco) Começa aos poucos de afilar, Seus olhos lançam ígneas chamas; Ó pobre Mãe, que tanto a amas, Cautela! O Outono está a chegar...(1) Leça, 1889 A crueldade da súbita extinção da vida em plena e prometedora Juventude foi retratada deste modo por Cesário Verde: Tinhamos nós voltado à capital maldita, (...) Quando nos sucedeu uma cruel desdita, Pois um de nós caiu, de súbito, doente. Uma tuberculose abria-lhe cavernas! Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo! (...) Pobre rapaz robusto e cheio de futuro! Não sei dum infortúnio imenso como o seu! Viu o seu fim chegar como um medonho muro, E, sem querer, aflito e atónito, morreu!(2) Considerado o maior especialista em tísica pulmonar 32 da sua época e uma das personalidades mais fascinantes e cultas do seu tempo, José Thomaz de Sousa Martins traduziu deste modo aquilo que ele chamou de “cruel predilecção” da tuberculose pela puberdade e idade viril: “ ... a implacável moléstia rouba-nos anualmente entre 12 a 15.000 vidas (...) E vidas das mais úteis, porquanto a estatística ensina, já desde o tempo de Hipócrates e Celso, que a tísica pulmonar colhe o maior número de vítimas nas idades que vão desde os 18 anos aos 35 anos”.(3) Personalidade fascinante, clínico infatigável, eloquente e culto professor da Escola Médico- Cirurgíca de Lisboa, orador apaixonado (“com palavras de aço e palavras de oiro - aço que se faria lâmina para ferir, oiro que se faria poalha para correr nas asas do vento, deslumbrado”(4), no dizer de António José de Almeida), - a sua ânsia de saber, a sua apaixonada adesão às novas ideias que as descobertas de Pasteur tinham trazido ao seio da Medicina, e o seu profundo entusiasmo pela nova ordem que norteava na Europa a tentativa de cura da tuberculose, ligaram até ao fim da vida José Thomaz de Sousa Martins a esta região da Beira Interior. Sousa Martins e a 1ª Expedição Científica à Serra da Estrela A Serra da Estrela exerceu sobre ele um longo e perdurante fascínio. Na Europa de então, eram as montanhas o Eldorado dos tísicos. O tratamento pelo ar rarefeito das grandes altitudes constituia a nova ordem terapêutica em matéria de tuberculose pulmonar. Foi na adesão a estes novos ventos que a curiosidade científica e o entusiasmo contagiante de Sousa Martins se transformaram na mola impulsionadora da Expedição Científica à Serra da Estrela, organizada pela Sociedade de Geografia de Lisboa, em Agosto de 1881. Fundadas ao ritmo das políticas expansionistas dos estados europeus, as Sociedades de Geografia privilegiavam como campo das suas investigaçãoes os países coloniais. Fornecer conhecimentos em temáticas variadas que permitissem, quer aos governos quer a uma burguesia endinheirada, intercâmbios comerciais vultuosos, alicerçados na exploração de matérias primas e fontes energéticas lucrativas, na instalação de mercados de escoamento da produção industrial europeia, era a verdadeira linha que, a coberto do espírito de aventura e de fascínio pelo exotismo, tão marcado nos valores do Romantismo imperante na época, norteava a actuação das Sociedades de Geografia pela Europa fora. A Sociedade de Geografia de Lisboa não fugia a esse vector de investigação colonial marcadamente economicista. Prova concludente desse facto ressalta na fundamentação com que a Sociedade justifica o seu apoio à Expedição Portuguesa ao interior da África Austral, empreendida por Silva Pinto, Roberto Ivens c Hermenegildo Capelo (1877-1879). Nela se declara explicitamente que a Expedição Científica ao grande sertã (africano se realiza na tentativa de encontrar meios que ajudem a solucionar ”os graves problemas das Ciências Geográficas e da economia comercial”.(5) A Expedição Científica à Serra da Estrela, situada nos confins de uma região pobre e pouco atractiva, no Portugal profundo e real como agora se usa dizer, surge pois como um desvio anómalo, como uma nota invulgar na costumeira actuação das Sociedades de Geografia Europeias. Segundo S. A. Pereira, que acompanhou a Expedição como representante e repórter do jornal Distrito da Guarda( 6) e do jornal do Porto Comércio Português, a ideia primeira da Expedição Científica à Estrela ficou a dever-se a Sousa Martins. Daí ter o médico Sousa Martins partilhado com Hermenegildo Capelo, explorador e geógrafo de renome, o prestigioso lugar de Presidente da Comissão administrativa da Expedição Científica a uma região pouco conhecida do interior português. “Aos literatos falava literatura; aos negociantes, negócios; aos pensadores, de ideias e de problemas; aos affectivos, de ternura e de afectos”(7) - assim explica Fialho de Almeida, em carta a Casimiro José de Lima, o forte poder persuasivo de Sousa Martins. Foi possivelmente esta força persuasiva contagiante, aliada a uma invulgar comunicabilidade e eloquência, que ajudou Sousa Martins a convencer a Sociedade de Geografia de Lisboa a lançar-se na Expedição à Serra da Estrela, desviando-a do rumo normal do seu campo de investigação. Intencionais razões científicas impeliam Sousa Martins para a Serra da Estrela e esse apelo da Serra ajusta-se a uma faceta do carácter deste grande médico que Miguel Bombarda em 1897 assim definiu “Pródigo de saber e pródigo de conquistas intelectuais, durante trinta anos fez jorrar a flux mananciais de ideias novas, de relações de teorias desenvolvidas. Teorizador lhe chamam esses castos, que não Carlos Tavares, Sousa Martins e Emídio Navarro na célebre viagem à Estrela em Agosto de 1884 33 chegam a compreender que a medicina até na sua prática, é forçada a recorrer a hipóteses que estabeleçam relações, a assentar teorias que sejam a estrêla de orientação”.(8) As razões do interesse de Sousa Martins pela Expedição Cientí-fica à Estrela corro-boram, do meu ponto de vista, esta afirma-ção de Miguel Bombar-da. Esse interesse não foi mais do que a busca do alicerçar de uma teoria que apaixonadamente orientou a investigação científica do grande médico: a cura da tuberculose pulmonar pelo ar rarefeito dos climas de altitude. Numa bela passagem da carta-prefácio que escreveu como apre-sentação do livro de Emídio Navarro, “Quatro dias na Serra da Estrela”, Sousa Martins explicita os efeitos terapêuticos do ar dos climas de altitude. Escreveu: “Figure o meu amigo um leque de panno, atacado pela traça. Se o leque se conservar por largas vezes fechado, o insecto vai fazendo muito descansadamente o seu ninho por entre as dobras do panno, certo de que nem os excessos de luz, nem os impetos do ar, nem os resfriamentos da atmosphera lhe darão cabo da prole; mas se uma vez, o abandonado leque fôr aberto a um permanente banho atmosphérico, então nem a traça, nem a sua raça se sentirão à vontade(...). Ou emigram ou morrem (...). Pois o leque é o pulmão que em muitos sítios tem pregas. E a traça é o micróbio da tísica, ao qual, um ar puro, quasi seco, rarefeito e de temperatura pouco variável e pouco elevada causa maior dannos do que S. Tiago causou aos moiros...”(9) Era pois a comprovação científica da existência na Estrela deste clima de temperaturas pouco elevadas e de fracas amplitudes térmicas diurnas e anuais, que atraía Sousa Martins para a Estrela. Em uma outra passagem do livro de Emídio Navarro, o grande médico clarifica de um outro modo os efeitos benéficos desses ares serranos: “Rarefeito o ar dilata o pulmão e assim evita os ninhos de productos morbidos; uniformiza a circulação respiratória e dessa arte contraria as tendências congestivas e exudativas, tão nefastas aos tísicos”.(10) Em Agosto de 1881, a Sociedade de Geografia realiza a sua Expedição Científica à Estrela. Possuia ela um cariz marcadamente multidisciplinar, abrangendo um leque variado de ciências e de temáticas desde a Arqueologia à Botânica, da Geologia ao estudo da Hidrologia (temperatura e densidade das águas das lagoas), das aptidões agrícolas dos solos, às vantagens da instalação de um posto meteoro-lógico visando a construção na Estre-la de s a n a t ó r i o s semelhantes aos que funcionavam com êxito nos Alpes suiços. Embora não explicitado, constituía no entanto este último objectivo a razão fundamental da Expedição. O jornalista Emídio Navarro assim o declara no seu livro: “A grande expedição à Serra da Estrela em 1881 quasi que teve por fim principal, embora meio disfarçado, uma inspecção à Serra, de modo a colherem-se os esclarecimentos necessários para aquela empresa”.(11) Sousa Martins foi nomeado chefe da Secção de Medecina, coadjuvado pelo Dr. Jacinto Augusto Medina, facultativo do Hospital da Marinha e pelo Dr. José António Serrano, professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Dividia-se em 2 sub-secções esta Secção de Medecina: sub-secção de Hydrologia - Minero Medicinal, chefiada pelo Dr. Leonardo Manuel Leão da Costa Torres, e sub-secção de Ophtalmologia chefiada pelo Dr. Francisco da Fonseca, Médico Oculista. No entanto, apesar destas duas sub-secções, o grande propósito da secção de Medicina da Expedição foi - afirmou-o Emídio Navarro: “Estudar a applicação das excepcionais altitudes d’essa serra ao tratamento de certas doenças pulmonares”.(12) A Sousa Martins coube a elaboração de todo o programa da secção de Medicina da Expedição. A sub-secção de Hydrologia Minero Medicinal, competia a “análise das águas thermaes de Manteigas e Unhais da Serra”. O sumário do relatório entregue à Comissão Administrativa em 25 de Agosto de 1882 dá-nos conta dos trabalhos realizados por esta sub-secção. Síntese daquilo que se conhecia acerca das duas nascentes termais, estudo químico das águas, levantamento do estado das nascentes e comprovação de uma sentença popular, vulgar, na época, na região da Beira: “Caldas de Manteigas para os rheumatismos, banhos de Unhaes para os dermatosos”(13) 34 O Dr. Leonardo Manuel da Costa Torres apresenta no final esta conclusão: “Careciam de reconhecimento analytico as águas thermaes de Manteigas e Unhais da Serra. Fiz-lhes esse reconhecimento indispensável e o primeiro, e d’elle resultou a sua classificação que é esta: águas thermaes alcalinas silico - sulplureas”.(14) O programa de estudo da sub-secção de Ophtalmologia consta do relatório que o Dr. Francisco Lourenço da Fonseca Junior entregou à Secretaria da Comissão Administrativa da Expedição datado de 28 de Fevereiro de 1882. Um aspecto interessa relevar neste relatório: o que se prende com a mentalidade das gentes da região serrana nos finais do século passado. A natural desconfiança das populações analfabetas e isoladas nestes confins do mundo, soube ser contornada de modo hábil, facto que espanta e confere uma dimensão profunda ao trabalho desta sub-secção. A actuação destes médicos citadinos do século passado sobressai pela sua consonância, com os princípios que devem nortear os trabalhos de campo de um investigador em Ciências Sociais dos nossos dias. Assim relata o Dr. Francisco Junior o modo como procederam na recolha de material para o segundo ponto do programa, designado por Pathologia Geral Ocular. “Tivemos de recorrer ao estratagema de charlatães de feira: necessitámos de, dias antes de nos installarmos n’uma localidade, fazermos annunciar a próxima chegada de um médico oculista da capital, que punha gratuitamente o seu préstimo ao serviço da humanidade enferma. Foi assim, graças a tal expediente, que em Manteigas só n’uma tarde, fomos procurados por 41 doentes da villa e suas circunvizinhanças”(15). Constituia, respectivamente, primeiro e terceiro pontos do programa desta subsecção, o encontro das respostas às seguintes interrogações: “1° - A diminuição da pressão atmospherica, pela altitude, exerce alguma influencia immediata sobre a função visual? 3° - Qual a therapeutica indigena das doenças do apparelho ocular?” A Expedição, inicialmente pensada como plurianual, acabou por se restringir a uma única viagem. Mas Sousa Martins retorna à Serra em Agosto de 1884, e, durante quatro dias na companhia de Carlos Tavares, professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, médico do Paço (grande amigo do rei D. Carlos) e do Jornalista Emídio Navarro, volta a percorrer os tortuosos caminhos da Serra. Pela magia da escrita saída da pena de Emídio Navarro, com uma elegância de estilo que fez dele um dos grandes jornalistas do seu tempo, perpassam ante os nossos olhos esses quatro dias vividos por Sousa Martins na Serra da Estrela em Agosto de 1884. A beleza esmagadora e agreste de várias regiões da Serra, as dificuldades da subida de certos penhascos, o fascínio mágico das lagoas, a singularidade de determinados aspectos geológicos, os efeitos da diminuição da pressão no organismo destes homens da cidade, são alguns dos aspectos que este livro faz renascer magicamente. Mas nele, com uma força quase assombrosa, ressalta a personalidade empenhada de um homem em busca da concretização de um sonho: a de Sousa Martins. Os registos realizados no observatório meteorológico fundado pelo Governo no Poio Negro (em Fevereiro de 1882) a pedido da Sociedade de Geografia, tinham comprovado como Sousa Martins supusera, a existência nesse local de excelentes condições (de temperatura e humidade) favoráveis à cura da tuberculose pulmonar. Apenas um elemento negativo se registava nesse local: a predominância de fortes ventanias de quadrante de Noroeste. Foi a busca de outros locais, entre as altitudes de 1500 a 1800 m, possuindo iguais condições de temperatura e humidade, mas mais abrigados desses ventos, que determinou a vinda de Sousa Martins à Serra, no verão de 1884. A escolha recaiu no Valle do Conde (1.700 m), entre dois outros lugares analisados: Corgo das Mós (1600 m) e Santinha (1.500 m), local que num primeiro relance pareceu a Sousa Martins reunir as condições mais favoráveis para a instalação de um futuro Sanatório. O aspecto do coberto vegetal guiou Sousa Martins na escolha destes três locais. A existência de abundante vegetação, principalmente arbustiva e herbácea, era indiciadora de um local naturalmente abrigado de ventanias fortes. Por razões que se prendiam com uma mais fácil acessibilidade (proximidade de Manteigas e do observatório) era no entanto o Corgo das Mós o local que, numa fase mais imediata, apresentava maiores facilidades para a construção de um Sanatório. Com o intuito de reforçar as naturais condições de abrigo desse local, Sousa Martins solicitou à Câmara de Manteigas o plantio, aí, de duzentas árvores. Precursor da arborização da Serra foi, pois, este médico genial de finais do século passado. A escolha criteriosa de coníferas, espécie melhor adaptada à altitude do local e menos propícia a uma alteração climática no sentido de um aumento de humidade, dá a dimensão da visão interdisciplinar e do rigor científico que norteava a actuação de Sousa Martins. Mas uma outra razão motivou este seu retorno à Serra em 1884: a visita a Alfredo César Henriques, o primeiro doente tuberculoso que a conselho do próprio Sousa Martins procurou nas altitudes da Estrela uma via de cura. Este jovem, e cito as próprias palavras de 35 Sousa Martins, anos mais tarde: “Se animou a ir, ...iniciar a série de casos clínicos que houvessem de definir, pelo lado de observação médica, o valor therapeutico de tal clima”(16). O Clima de Altitude da Serra da Estrela e o Grande Sonho de Sousa Martins Mas é num livro que Sousa Martins publica em 1890, “A Tuberculose Pulmonar e o clima de altitude da Serra da Estrela”, que a sua ligação à Serra ressalta de forma marcadamente evidente. Encontram-se, neste pequeno ensaio, materializados aspectos vários da brilhante e multifacetada personalidade deste médico. Para além da sua “arte de expor com nitidez profissional”(17), dote que Teófilo Braga apontou como traço notável da sua personalidade, que aqui se evidencia em cada linha, este ensaio é prova evidente de uma postura que muitos dos que com ele de perto privaram são unânimes em referir: a sua imensa receptividade às inovações, a sua inflamada febre de saber, a profundidade dos seus conhecimentos científicos e sobretudo a força contagiante do seu entusiasmo na concretização de uma ideia que lhe norteava a investigação e a vida. Mas, a par destes aspectos, ressaltam neste ensaio muitos outros não menos importantes: objectividade crítica, clareza, simplicidade e rigor na exposição de ideias científicas. A objectividade crítica evidencia-se no modo como analisa uma diversidade de factos: dados da estatística da época, inoperância do Governo em matéria de Saúde Pública, estagnação de alguns médicos do seu tempo manifestada quer na vinculação a ideias há muito ultrapassadas, quer na falta de visão dos caminhos interdisciplinares que a Medicina, como qualquer outra Ciência que toca o Homem, deve percorrer. Modelar é a sua reflexão crítica às fontes estatísticas. Estatísticas necrológicas incompletas, pouco rigorosas e vagas que dificultam qualquer estudo fundamentado acerca da incidência de uma dada doença, contituiram a dura crítica apresentado por Sousa Martins. As causas dessa fragilidade são apontadas com pertinência: modo pouco preciso como a Estatística Geral realizava o apanhado das doenças (por aparelhos e sistemas orgânicos e não por espécies nosológicas); falta de obrigatoriedade, nalguns distritos, do certificado de óbito, que tornava muda a estatística necrológica; ausência de uniformidade na nomenclatura das doenças usada pelos diferentes clínicos; continuidade por parte de alguns médicos, no caso concreto da tuberculose pulmonar, da vinculação à chamada escola dualista que excluía do grupo das tuberculoses pulmonares muitas tísicas que, conforme dados da ciência da época praticada além fronteiras, deveriam ser nela incluídas - eram, entre outros, alguns dos entraves que impossibilitavam em finais do século XIX qualquer estudo fundamentado com base na Estatística Oficial acerca da real incidência no nosso país quer da tuberculose pulmonar, quer de qualquer outra doença. A metodologia que Sousa Martins utiliza na análise dos dados fornecidos pela Estatística Oficial das três cidades Lisboa, Porto e Coimbra, conferem a este pequeno ensaio um notável rigor científico e uma invulgar modernidade. Partindo para cada uma das cidades da realidade concreta do seu espaço físico e social, Sousa Martins faz um levantamento de factores específicos reais indutores de erro. A avaliação do impacte desses factores permitiu a Sousa Martins realizar estimativas para Lisboa e Porto com menores margens de erro e, deste modo traçar um quadro mais aproximado da verdadeira realidade da situação da tuberculose pulmonar no Portugal do seu tempo. Quanto a Coimbra, embora ciente da imensa fragilidade que os dados da Estatística coimbrã apresentavam, Sousa Martins utiliza-os sem qualquer correcção. As razões dessa atitude foram por ele apontadas com precisão. Entre os factores indutores de erro, no caso de Coimbra, contava-se o modo como os dados eram colhidos. Relativamente ao cálculo da mortalidade, os dados apresentados pela estatística diziam respeito somente a enterramentos no cemitério municipal e abrangiam cinco freguesias (quatro da cidade e uma, considerada na época como suburbana: Santa Clara). Sousa Martins evidencia como um dos factores de imprecisão o modo como era calculado o número de óbitos ocorridos dentro da cidade, visto serem eles diminuidos aos números de enterramentos feitos no cemitério de Santo António dos Olivais, que não possuia na época registo oficial. Mas um outro factor, aquele que Sousa Martins chamou de “condição especialíssima da população académica”(18) - o seu carácter flutuante, introduzia, segundo ele, na Estatística coimbrã um duplo erro. Um deles (que António Nobre assim exprimiu: “Quando vem Junho eu deixo esta cidade/Batina, caes, tuberculoses céus” ...(19) prendia-se com o facto de muitos estudantes que contraíam tuberculose em Coimbra irem morrer no seio das suas famílias dispersas um pouco por todo o país. “Esses alliviarão a estatística” - escreveu Sousa Martins. Mas um outro aspecto da mesma realidade não deveria, segundo Sousa Martins, ser menosprezado: o daqueles que chegavam a Coimbra já portadores da tuberculose contraída algures por esse país fora e que na cidade tinham o seu encontro com a Morte - esses vinham sobrecarregar com óbitos a Estatística Coimbrã. Considerando estes erros como não 36 passíveis de qualquer possível correcção, Sousa Martins, embora alertando para a fragilidade e imprecisão dos dados da Estatística de Coimbra, apresenta-os sem qualquer alteração. Mas se a objectividade crítica é aspecto relevante neste ensaio, não de menor importância são a simplicidade e o rigor com que nele são expostas ideias e teorias científicas. A correlação que Sousa Martins estabelece entre tuberculose e condições climáticas de um dado lugar é disso exemplo: “Para uma determinada temperatura média, a localidade em que as variações diurnas, semanais, mensais e anuais, forem menos amplas, será a menos propícia para o desenvolvimento da tuberculose”(20). O modo preciso como distingue clima de montanha e clima de altitude, a correlação que estabelece entre os factores latitude e altitude na localização das regiões possuidoras dos saudáveis climas de altitude (os efeitos benéficos sobre o aparelho respiratório provocados pelo abaixamento da pressão atmosférica com a altitude) são, do meu ponto de vista, belos exemplos que evidenciam a veracidade de um aspecto saliente nos testemunhos de muitos dos discípulos de Sousa Martins ou de amigos que com ele de perto privaram: a sua fabulosa capacidade de expor ideias científicas. Assim, relativamente aos efeitos benéficos do abaixamento da pressão sobre o aparelho respiratório, esclarece: “(...) não só porque a defeciência do oxigénio em pressão e em massa é nociva à vida de alguns microorganismos que com o bacillo da tuberculose collaboram na destruição do pulmão e na infecção do organismo nuns também porque a ampliação do thorax e a completa expansão pulmonar produzem a um tempo o robustecimento do apparelho respiratório e o desalojamento dos seus microorganismos destruidores(21). Mas, numa outra perspectiva, um sabor estranhamente actual possuem mais passagens deste ensaio, que mostram à evidência que Sousa Martins foi um homem muito além do tempo em que viveu. O apelo à valorização daquilo que, neste século XX, se chama recursos endógenos de uma região, foi, no caso da Serra da Estrela, magistralmente tratado neste ensaio de um médico de finais de século XIX. O repto que Sousa Martins lança ao Estado no sentido de o sacudir do seu alheamento na rentabilidade de factores naturais que, noutros países da Europa da época, se tinham tornado fontes palpáveis de riqueza; os argumentos com que alicerça a chamada de atenção ao governo para a necessidade da tomada de medidas na luta contra a tuberculose, mostrando uma a uma as razões que tornavam esta doença “uma força social negativa”(21), - por si só bastavam para dar a medida do interesse deste pequeno livro. Mas a estes aspectos outro se junta: a clareza com que Sousa Martins expõe a minimização dos gastos na construção de infraestruturas necessárias à valorização das riquezas climáticas da Estrela. O pragmatismo com que aponta quais as infraestruturas essenciais que caberia ao governo construir; o apelo aos investidores privados para a construção, na Serra, de edifícios capazes de satisfazer as exigências da população doente de um estrato social elevado, - mostrando que a exploração desses edifícios poderia ser considerada uma verdadeira indústria, alicerçada numa garantida clientela, constituida por todos os que não quisessem aventurar-se até à Suiça - são, entre outros, alguns exemplos. Nada esqueceu Sousa Martins. Nem as medidas que o Estado poderia implementar no sentido de fomentar a atracção de capitais privados: “Isenção de contribuições até período de 12 annos aos comerciantes e industriais que se quisessem estabelecer nas altitudes de 1400 a 1800 m”(22). São estes, entre muitos, os aspectos que conferem a esta obra de Sousa Martins um conjunto de significativas virtualidades. Na verdade, a argumentação inteligentemente fundamentada em que se alia uma reflexão profunda acerca dos problemas reais a um conhecimento sério das realidades locais dão a esta obra de Sousa Martins qualidades que muitos dos actuais projectos de desenvolvimento regional, para sacar subsídios europeus, estão longe de apresentar. Nunca tão seriamente se pensou num desenvolvimento integral das potencialidades da Serra da Estrela como Sousa Martins o fez. Uma outra dimensão não esqueceu este médico genial, esta demonstrativa do seu conhecimento profundo acerca dos efeitos psicológicos negativos que a monotonia da vida num Sanatório de montanha poderia despoletar nos doentes atacados de tuberculose pulmonar: o tédio. Thomas Mann descreve magistralmente em páginas inesquecíveis da Montanha Mágica (no Sanatório, que para Sousa Martins era o modelo acabado: Davos), esses efeitos deprimentes do tédio. Sousa Martins preconiza duas medidas tendentes a combater o isolamento e de certo modo a atenuar a força negativa desse mal do espírito entre os possíveis enfermos de um futuro Sanatório nas altitudes da Estrela. São elas: a instalação de um serviço telegráfico postal em Manteigas, e a redução das taxas dos telegramas a todos os habitantes do futuro Sanatório. A Serra da Estrela na morte de Sousa Martins Perdurável e forte foi a atracção de Sousa Martins pela Estrela. Em 1897, Sousa Martins desloca-se a Veneza como delegado do Governo Português à Conferência Sanitária Internacional. Aí se manteve de 37 I6 de Fevereiro a 19 de Março, ocupando o honroso cargo de Presidente da sub-delegação encarregada de estudar a profilaxia contra a peste na Europa. A insalubridade do clima da bela cidade italiana agravou a doença pulmonar arrastada de que Sousa Martins há longo tempo padecia. Fialho de Almeida assim descreveu esse efeito nefasto de Veneza sobre Sousa Martins: “chama voraz, corpo diáfano... Um sopro das lagunas podres de Veneza bastou para a chama aniquilar seu pobre invólucro”.(23) Tocado em Veneza pela asa da Morte, Sousa Martins regressa a Lisboa e, já doente, retoma a 29 de Março o serviço no Hospital de S. José. A doença agrava-se vertiginosamente e é na Serra da Estrela que Sousa Martins vem procurar alívio. Assim, a 27 de Junho de 1897 Sousa Martins instala-se numa casa que Francisco Tavares de Almeida Proença possuia na Serra, no local onde mais tarde se ergueu o hotel das Penhas da Saúde. Qual seria o estado de Sousa Martins nesta vinda para a Estrela? Ele era conhecedor como ninguém de que as virtudes do clima de altitude no tratamento da tuberculose pulmonar só actuavam em determinadas fases nos períodos primitivos da doença quando as zonas infectadas fossem ainda diminutas. Seria essa a situação? Ou animá-lo-ia a esperança remota de uma cura em circunstâncias raras que ele assim descreveu: “Casos há em que a virtude curativa do clima alcançou muito mais pois debellou a doença, em período bastante avançado - incluindo o das cavernulas e até das cavernas pulmonares mesmo com febre héctica”(24)? Ou seria mais grave o seu estado, aquele para o qual era contra-indicada a permanência num clima de altitude? Teria Sousa Martins agido do mesmo modo que certos doentes, aqueles que contrariando os conselhos médicos (e são estas as suas palavras): “seguem a sua errada inspiração, com o que apenas conseguem receber o golpe de misericórdia dado pelo inopportuno e logo contraproducente remé-dio, assim transformado em antecipador da morte”(25)? Não o sabemos ... Catorze dias passa Sousa Martins na casa de Tavares Proença. Mas não volta a recuperar. O que foi esta última estadia na Serra surge-nos através da notícia com que o jornal O Século de I9 de Agosto de I897 anunciaria a sua morte. “ Em logar de ser um doente que precisava de descanço e socego, continuou a ser um clínico; e grande era a romaria de enfermos que iam consultá-lo à casa onde elle estava na Serra. E levou tão longe a sua philantrofia, o seu amor pela humanidade enferma que n uma noite tempestuosa, sendo chamado para ver gratuitamente um doente, esqueceu-se de si, não se lembrou de que elle também era um doente, e desceu a Serra, indo ver o desgraçado que reclamava os seus socorros. Foi talvez isso que lhe agravou a doença (...).(26) Um mês depois, a 18 de Agosto de 1897 morre em Alhandra, apenas com 54 anos. No entanto e através da carta de agradecimento que Sousa Martins escrevera datada de 10 de Julho de 1897 desprende-se uma certa esperança de melhoras. É este o teor da última carta escrita da Estrela “Exmº Sr. Tavares Proença. Ao deixar hoje esta magnifica vivenda onde, graças à bizarria de V. Ex°, nos alojámos durante quatorze dias eu e minha família, venho renovar os meus agradecimentos, nunca bastante repetidos, por tão grande favor. Do meu préstimo se algum V. Exª., encontrar, poderá V. W, dispor sempre e em qualquer parte em que se ache quem tem a honra de ser. De V. W, creado e V. Ex° muito obrigado. J.T. de Sousa Martins”(27). Mas efémeras foram as esperanças de melhoras. Numa madrugada do verão de 1897, a Morte arrebatou-o... A Premonição de António José de Almeida Premonitórias são, do meu ponto de vista, as palavras que António José de Almeida escreveu num artigo em 1897: “...Lá está na Alhandra no cemitério que eu antevejo discreto e gracioso... Está melhor do que nos Gerónimos. O panteon seria o mais adequado Cemitério de Alhandra (1994). Entrada do jazigo do Dr. Sousa Martins 38 aogrande Sousa Martins; mas o cemitério da Alhandra está mais a propósito para o bom Sousa Martins”.(28) De facto hoje, neste final desencantado de século, ao modesto cemitério de Alhandra, recortado na ampla imensidade das lezirias, onde o fluir sereno do Tejo marca em cada instante a indubitável fugacidade da vida, afluem cada dia muitas pessoas, tal como acontecia à enfermaria do Hospital de S. José ou ao consultório da rua de S. Paulo, movidas pela profunda crença de conseguir que a imensa Sabedoria e a envolvente Bondade desse médico ultrapassem as próprias barreiras da Morte e tragam uma Esperança de cura aos seus corações atormentados. *Docente na Escola Superior de Educação de Castelo Branco Notas (1) António Nobre, Só, Porto, Livraria Tavares Martins, 1968. p. 171. (2) Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde, Lisboa, Edições Ática, 1959. p. 149. (3) José Thomaz de Sousa Martins. A Tuberculose Pulmonar e o Clima da Serra da Estrela, Lisboa, Imprensa Nacional, 1890, p.4. (4) António José de Almeida, “Sousa Martins”. in A Medicina Contemporânea, 1897, p. 343. (5) Citada em Suzanne Daveau, «A Expedição Científica à Serra da Estrela» in Finisterra . Lisboa 1989. (6) Distrito da Guarda - Semanário que se publicou na Guarda entre 4-8-1912 a 15-11-1919. Era um dos orgãos do Partido Republicano Evolucionista. fundado em 1912 por António José de Almeida. De tendência conservadora, torna-se este partido o principal opositor e contestatário da política radical de Afonso Costa. Teve, porém, duração efémera pois foi este partido oficialmente dissolvido no congresso realizado em Lisboa em 30 de Setembro e de Outubro de 1919. (7) Carta de Fialho de Almeida a Casimiro José de Lima, in Vida Ribatejana. número especial - Ano de 1962, pp. 86, 87. (8) Miguel Bombarda, in A Medicina Contemporânea, 1897, p. 276. (9) in, Quatro dias na Serra da Estrêla, Porto, Livraria Civilização. 1884, pp. 16, 17. No jornal O Campino de 2 de Agosto de 1884 lê-se este anúncio: “Emydio Navarro Quatro dias na Serra da Estrella (Notas de um passeio) Um grosso volume com 12 phototypias e um prólogo de Sousa Martins. Envia-se pelo correio a quem remetter 1:250 reis ao editor Eduardo da Costa Santos, rua de Santo Ildefonso,10 Porto. (10) in, op. cit., p. I8. (11) Emidio Navarro, op. cit., pp. 62, 63. (12) Emidio Navarro, op. cit., p. 61. (13) Relatório dos Drs. Leonardo Torres e Jacinto Augusto Medina - Sub-secção de Hydrologia Minero- Medicinal, in Expedição Scientífica à Serra da Estrela em 1881, Lisboa, Imprensa Nacional, 1883, p. 7. (14) Relatório dos Drs. Leonardo Torres e Jacinto Augusto Medina, in op. cit, p. 23. (15) “Relatório do Dr. Francisco Lourenço da Fonseca Junior”, in Expedição Scientífica à Serra da Estrela em 1881, Lisboa, Imprensa Nacional, 1883, pp. 5,6. (16) Emídio Navarro, op. cit, p. 35. (17) Teófilo Braga, “In Memoriam”, in Imprensa Médica, nº5, Lisboa, 10 de Março de 1943, p. 63. (18) José Thomaz de Sousa Martins, A Tuberculose Pulmonar e o clima de altitude da Serra da Estrela, Lisboa, Imprensa Nacional, 1890. (19) António Nobre, Só, Porto, Livraria Tavares Martins, 1968, p. 155. (20) José Thomaz de Sousa Martins. A Tuberculose Pulmonar e o clima de altitude da Serra da Estrela, Lisboa, Imprensa Nacional, 1890, p. 26. (21) José Thomaz de Sousa Martins, op. cit, p. 27. (22) José Thomaz de Sousa Martins, op. cit, p. (23) Carta de Fialho de Almeida a Casimiro José de Lima, in Vida Ribatejana. número especial - Ano de 1962 p. 88. (24) José Thomaz de Sousa Martins, op. cit. p. 40. (25) José Thomaz de Sousa Martins, A Tuberculose Pulmonar e o clima de altitude da Serra da Estrela, Lisboa. Imprensa Nacional, 1890, p. 28. (26) in Jornal O Século, 19 de Agosto de 1897, nº 5603. (27) Carta de Sousa Martins a Tavares Proença, in José Lopes Dias, Miscelânea de Cartas e Documentos Albicastrenses, Lisboa, Editorial Império, 1966, p. 26. (28) António José de Almeida, “Sousa Martins” in A Medicina Contemporânea, 1897, p. 343. 39 O SANATÓRIO DAS PENHAS DA SAÚDE - TEMPLO DO TEMPO por Elisa Calado Pinheiro* “Colocarás a tua ruína nas mãos da natureza para que esta a aperfeiçoe e a embeleze... só o tempo melhora as ruínas”. William Gilpin, Observations relative chiefly to ... Cumberland and Westmorland. “No entanto, não será o carácter de antiguidade de uma história tanto mais profundo, perfeito e lendário quanto mais próxima do presente ela se passou?”. Thomas Mann, Montanha Mágica. Na Serra da Lã e a Neve, subsiste, a meia encosta coroando uma colina, o Sanatório das Penhas da Saúde. Impõe-se pelo insólito de uma forte presença na paisagem nua, pela imponente e extensa fachada, assumida qual fortaleza da montanha, e pela grandiosidade do figurino arquitectónico de catedral, com canones de decoração clássica e nacionalista, revisitados de uma modernidade que foi beber à natureza envolvente não só a sua monumentalidade como o contraponto da própria existência, a que Cottineli Telmo emprestou o traço, num projecto encomendado pela C.P., concluido em 1936, apesar de inaugurado só em 1944. Embora à escala da montanha foi uma obra feita à medida dos homens, para os curar. Começou-lhes pelos corpos, nos tempos em que a esperança do ar puro e rarefeito vencia, com a eficácia da prancha atirada a náufragos, as bactérias da “tuberculose romântica e burguesa” do país e, depois, as da tuberculose faminta e operária da região. Acabou-lhes pelas almas. Em tempos ainda próximos, bastou o seu tecto amplo para curar feridas da guerra e do desenraizamento. Albergando, sem divisórias de intimidade, uma multidão de “retornados”, transformada em comunidade pela necessidade, pelas partilhas de espaço e de passado e pelas incertezas de futuro, transplantada de outros espaços em tempos de aceleração brusca dos ritmos da história, o Sanatório ofereceu o despojamento e o silêncio, transformados em concha de protecção num bastião quase inexpugnável. Hoje, o edificio, apesar das marcas visíveis de uma forte presença, carregada de dispares esperanças, encontra-se exactamente no limiar que separa dois tempos: o dos homens, ainda apreensível e bem marcado pelo ritmo das mudanças e o da natureza que o cerca e nele penetra, feito tempo longo de permanências incomensuráveis. O vento, as águas e um ténue mundo vegetal coabitam já ali com o que resta das memórias dos homens. No espaço da antiga secretaria encontram-se hoje pelo chão, espalhados, os documentos de todo este mundo que no Sanatório se encerra: são os livros de ponto do pessoal e dos médicos, os livros de aquisições, as fichas médicas dos doentes e as requisições de exames de diagnóstico e complementares, para além de toda a correspondência institucional e administrativa. A área da rouparia, está atapetada das fardas do pessoal e das roupas de internamento dos doentes. As radiografias e os restos do mobiliário metálico estão espalhados por todo o edifício marcando fortemente as décadas de 40 a 70 do nosso século e referenciando quanto baste o tempo dos tuberculosos, ricos e pobres. Os documentos dispersos do Instituto de Apoio ao Retorno de 40 Nacionais e os cadernos escolares espalhados pelas várias salas e corredores chamam-nos aos anos entre 75 e 80 marcados pela chegada dos que albergou em longos invernos de isolamento e falam-nos da escola que ali funcionou para os mais novos dos “retornados”. Finalmente os graffiti nas paredes dãonos as derradeiras imagens da última ocupação antes do abandono: São os Carnavais da Neve do Clube Nacional de Montanhismo da Covilhã e os Encontros Nacionais de Motards que ainda ecoam pelos salões de arcaturas e colunata do 1° piso. No Sanatório das Penhas da Saúde aprisionamse ainda as primitivas imagens do difuso espaço sanatorial dos finais do séc. XIX que foi primeiro corporizado na Montanha Mágica portuguesa, na área das Penhas da Saúde, através da construção, a 1.530 m de altitude, do Grande Hotel dos Hermínios, seguindo à risca as confiantes prescrições do Dr. Souza Martins. Foi todo este ambiente de fim de século que moldou o programa arquitectónico e o figurino decorativo, do novo Sanatório dos Ferroviários, marcadamente de anos 30, mas com ainda bem visíveis pinceladas de uma “Belle Epoque” que aos poucos se foi desvanecendo pelas mundanas estâncias de veraneio e de restabelecimento físico até ao deflagrar da 1° Grande Guerra. As marcas de “hotel” mantiveram-se no Sanatório, disfarçando até aos anos 50, tanto quanto puderam, as de hospital. Só então, com o enquistar do Estado Corporativo, a factura do 2° “post guerra” e os frutos do nosso surto industrializador se lhe massificou a densidade e se lhe empalideceu o brilho. É este o período que corresponde às ampliações realizadas à custa das galerias e ao aumento das enfermarias e das instalações de apoio que lhe deram a sua última utilização como Sanatório. A História está, pois, bem marcada neste edifício pelas vivências dos homens que o habitaram. É em busca dela que o demandamos. Mas quando, feitos Hans Castorp da “Montanha Mágica”, subimos até lá para, quais espectadores, o reconhecermos e analisarmos como fonte histórica, evidência de campo de uma época e como monumento que urge preservar, é ele que nos domina e nos aprisiona numa multiplicidade de problemas em que nos enreda. Projectavamos uma passagem breve e, afinal, quedamos nele enredados. E quando nos ocorre a estratificação que vigorava para os seus doentes: “curados”, “melhorados”, “estacionários”, “piorados” e “falecidos” - e a sua repercussão em números. De uma breve análise efectuada a documentos dispersos, situados entre os anos de 1953 e 1967, poderá reterse que dos 4.264 tuberculosos que passaram pelo Sanatório, 1.252 curaram-se, 1.694 melhoraram, 1068 mantiveram-se estacionários, 149 pioraram e 101 faleceram. E a nós como nos catalogará? Entretanto, instalamo-nos. Vamos ficando. Começamos a conhecer-lhe os meandros e as personagens que por ele vagueiam e aceitamos a explicação de Joachim a Hans Castorp: “Aqui não fazem muita cerimónia com o tempo das pessoas”. Adaptamo-nos e descobrimo-lo aos poucos, descobrindo-nos a nós também e ao nosso tempo, o das maçãs calibradas e da produção normalizada, o do viver industrializado. Documentamo-lo e fazemoslhe a ficha, como também ali se preenchia a dos internados. Descrevemo-lo. Recolhemos-lhe as marcas das telhas tipo marselha (Mourão, Teixeira Lopes & Cª. Lda. da Pampilhosa) e do mosaico hidráulico dos pavimentos (SCIAL). Demoramo-nos na descrição da fachada, que se estende por mais de 160 m de comprimento e onde os seus torreões em flecha, varandins e solários, arcaturas e bandas ritmadas de centenas de janelas lhe definem o figurino. Subimos-lhe a imponente escadaria de granito; entramos no átrio e apreciamos-lhe o encanastrado férreo das elegantes portas dos elevadores, assim como os azulejos figurativos dos salões do 1° piso. No final, diagnosticamos - “Estado de Conservação: degradado”. Imediatamente nos ocorrem as vias da terapêutica em uso nestes casos: recuperação ou reabilitação? Depois de um tempo em que as ruínas dignificaram os jardins dos mecenas do Renascimento e de um outro em que inspiraram os românticos oitocentistas que, com Byron, defendiam que elas enobrecem e embelezam os lugares, já que introduzem nele “algo de vida real que não pode pertencer a nenhuma parte da natureza inanimada”, assistimos hoje à desvalorização de tudo o que revela marcas destruidoras do tempo. É a norma. O primado dos nossos dias é o da manutenção da juventude, mesmo que aparente e recauchutada, o do terror da velhice, o da desvalorização do ritual participado da morte, do seu asséptico encobrimento, mesmo. E quando testemunhamos o forte impacto das ruínas deste edifício, sobretudo ao nível das artes e dos artistas a quem continua a impressionar ainda hoje ocorrem-nos então as palavras de Carlo Carena (Enciclopédia Einaudi, Ruina/Restauro, 1984, p.107): “Esta vitalidade da ruína exclusivamente interpretativa, subjectiva e antropológica, torna essencialmente cultural o discurso que sobre ela se faz”. E perante as terapias de normalização da vida dos monumentos, vacilamos então no limiar entre a VIDA e a MORTE, o tempo dos HOMENS e o da NATUREZA tendo por única convicção a de que há “memórias” que urge preservar. Covilhã, Novembro de 1994 *Assistente Convidada da UBI. Membro do Centro de Estudo e Protecção do Património - CEPP 41 A IDADE MILITAR E A LITERATURA TRADICIONAL NO CICLO DA VIDA DO HOMEM DA GARDUNHA por Albano Mendes de Matos* As Sortes e o Grupo de Idade Os rapazes das povoações inseridas na região da Serra da Gardunha, nascidos no mesmo ano, dos finais do século passado até meados deste século, ao completarem vinte anos de idade, entravam nas Sortes, ritual pré-liminar para a entrada no serviço militar, constituindo-se em grupo informal, o Grupo de Idade ou Conjunto de Idade(1), em que o essencial da coesão grupal era fundamentado no factor idade, espaço físico da aldeia e no espaço social da comunidade rural. A mesma idade,em pessoas do mesmo sexo, fundamenta a ideia de que as pessoas são semelhantes, agrupando-se por laços de afinidade. Os elementos deste grupo informal ficavam ligados, tradicionalmente, por uma forte analogia de sentimentos de pertença ao grupo, interiorizados por uma grande relação comunicabilidade e de solidariedade que fortalecia a coesão, manifestando-se por comportamentos festivos ritualisados, como o “baile das sortes”, descantes pelas ruas e refeições colectivas, com os componentes individualizados, durante as manifestações, por uma flor ou um ramo de manjerico, na lapela do casaco ou na orelha, ou por uma fita na lapela, segundo os valores e os costumes da comunidade. O facto de pertencer a um grupo social, mesmo informal, encorajava a fortes laços de amizade entre pessoas e contribuía para diferenciação entre os rapazes que tinham idade militar e os que tinham idades inferiores. As Sortes promoviam uma amizade institucionalizada quase sempre para toda a vida, desenvolvendo solidariedade de grupo, com experiências partilhadas, entre membros da comunidade não ligados pelo parentesco, grupos que se sucediam anualmente, enquanto durou a tradição, hoje em extinção. A idade militar, como em todas as outras idades do homem, era marcada por atitudes e comportamentos culturais que podem ser considerados como “ritos de passagem”(2), como uma fase de um ciclo que se desejava marcar e revelar. Por exemplo, “dar o nome”, indo à Secretaria da Câmara Municipal ou do Registo Civil, era o primeiro dos rituais em que o rapaz dava a confirmação e se prontificava a pertencer, temporariamente, a uma outra família, a família militar. Particularizando, descreve-se o ritual, ou conjunto de ritos, na Aldeia do Alcaide, na primeira metade deste século, relativo à ida à inspecção médica, à partida para a vida militar e a algumas vivências na vida militar. Roubo Ritual das Flores Alguns dias antes da inspecção, os rapazes iam roubar vasos com flores, em quaisquer casas, retirando-os das janelas e dos balcões, que eram guardados em locais próprios, costume que pode ser sobrevivência do rito de apropriação(3), na iniciação dos rapazes. Na noite da véspera do dia da inspecção, os rapazes das Sortes “arranjavam” o chafariz da praça, ornamentando-o com as flores que tinham roubado, colocando-as em prateleiras, organizadas em pirâmide, montadas em volta do chafariz. Em alguns anos, eram colocado um quadro com as fotografias de todos os rapazes das sortes, como afirmação social do grupo ao qual pertenciam. Pela manhã, muitos alcaidenses deslocavam-se à praça para observarem o chafariz “arranjado”. Durante o dia, as mulheres e as raparigas retiravam os vasos com flores que eram sua propriedade. O Banho Ritual Depois do arranjo do chafariz, muitos dos rapazes iam a um tanque ou à ribeira tomar banho, um banho colectivo, como que no ritual de purificação, observado em diversas sociedades(4). Ida às Sortes De acordo com o horário do Edital, os rapazes das sortes caminhavam para o Fundão. Iam a pé, em grupo ruidoso, com um, dois e, às vezes, três tocadores de concertina ou de acordeon, à frente, contratados para tocarem durante os rituais. Todos levavam ramos de manjerico na lapela do casaco. Até 42 aos anos vinte iam munidos de cacetes (varapaus), para defesa pessoal, se necessário fosse, cacetes que deixavam guardados à entrada do Fundão(5). Submetidos ao ritual da inspecção médica, perante a Junta, os mancebos, agora assim designados, considerados aptos ou “apurados”, prestavam juramento de fidelidade à pátria, como rito “preliminar”(6) solene da idade militar. Como resultado da inspecção médica, surgia a hierarquização dos membros do grupo de idade, em sub-grupos de “apurados” (aptos), “livres”, eufemismo de inaptos, e, por vezes, “esperados”, estes a aguardarem nova inspecção. Como sinais visíveis de diferenciação grupal, os rapazes compravam fitas que colocavam na lapela do casaco, cujas cores eram símbolos nítidos das classificações que lhes tinham sido atribuídas vermelha, cor forte, significando valor, esforço e fonte da vida, para os “apurados”, amarela, cor fraca ou secundária, para os “livres” e cor branca ou neutra para os “esperados”. As cores identificavam as classificações dos rapazes no ritual das Sortes, que apresentava tonalidades festivas, com música, desfiles pelas ruas, lançamento de foguetes, jantar colectivo e baile, ao qual compareciam as raparigas da aldeia, com as mães destas a assistir, sentadas em volta da sala. Na perspectiva do mundo rural, especialmente na região onde se focaliza a temática desta comunicação, existiam categorias ou modos de ver que orientavam as concepções, particularizadas, a que estavam sujeitos os corpos, que os catalogavam funcionalmente segundo um discurso oficial geral, que era interiorizado pela ideologia camponesa. Os inaptos ou “livres” para o serviço militar desciam momentaneamente na escala da avaliação social, marcados por uma possível incapacidade para a prestação de um serviço ao País. As raparigas candidatas a namoro interrogavam-se dizendo que “se não serviam para a tropa, alguma coisa havia”, segundo o código do sistema ideológico local. Fora deste campo de pensamento, estavam os filhos dos “ricos” ou de algum “remediado”, cujos pais metiam um “empenho”, para ficarem “livres”. No próprio desfile pelas ruas da aldeia, após a inspecção, os rapazes dispunham-se hierarquicamente, com os “apurados” à frente, com as fitas vermelhas nas lapelas, seguidos pelos “livres”, estes menos ruidosos. As fitas simbolizavam as qualidades físicas dos rapazes, com alguma arbitrariedade, pois, uma inaptidão,considerada pela Junta Militar, não correspondia a uma inadaptação laboral ou social, numa idade em que o corpo era visto como uma tecnologia, como um recurso no processo de reprodução e de produção. No entanto, algumas vezes, era notória uma desordem temporal ou momentânea na personalidade dos “livres”, manifestada nos seus modos e nas suas atitudes. A Idade e a Vida Militar O Militar na Avaliação Social As comunidades rurais davam muita ênfase à classificação por idades, especialmente a “idade militar”, que era considerada um ponto-charneira entre o ser rapaz e o ser homem, entendendo a vida militar como uma “escola da vida”, na qual o rapaz era transformado em homem, subindo na escala social, conjugando mesmo a “idade militar” com a “idade do casamento”(7). O ser militar ou ter sido militar era um factor de prestígio social, utilizado algumas vezes como elevacão momentânea de “status”(8), com nomeação para actos públicos, como “cabo de ordens”, em festas, para manutenção da ordem. É de salientar que a vida militar surge como temática na Literatura Tradicional, quase sempre em composições simples e ingénuas, de tendência humorística, cantadas ou recitadas nas casernas e lembradas toda a vida. A vida militar, numa idade em que o indivíduo se afirma homem, como “rito de passagem”, com maior ou menor valorização, consoante a época e os contextos sócio-político e sócio-cultural, faz parte da fala quotidiana das gentes rurais, pois, fica como marco indelével na vida do homem, cujas vivências perduram ao longo dos tempos. Algumas raparigas tinham receio de namorar ou rejeitavam mesmo os rapazes que ficam “livres” nas Sortes, porque “se não serviam para a tropa, alguma coisa tinham”, como foi já referido. Diz a literatura tradicional: Quem não serve para a tropa, Também não serve para nada, É tacho velho sem fundo, É bilha velha furada.(9) A Despedida A ida para a vida militar era uma ruptura com o quotidiano familiar e com a vida da aldeia. Era partir para o desconhecido, para uma vida talvez perigosa, para uma situação de margem, que talvez proporcionasse riscos. Alguns rapazes submetiam-se a “ritos de Protecção”, como confissão e comunhão, verificadas na aldeia do Alcaide, pedir a benção aos padrinhos e aos pais e solicitar a protecção dos Santos e das Senhoras mediante promessas(10). Na generalidade, todos praticavam “ritos de despedida”(11) dos familiares, dos amigos e das namoradas. A partida, algumas vezes dolorosa, como a primeira saída da comunidade, era bem definida cronologicamente, talvez como uma data muito significativa, no ciclo da vida do camponês beirão. Assim a refere um serrano da Gardunha, na sua despedida: 43 A vinte e oito de Fevereiro, “De mil novecentos e trinta e dois, “Disse adeus ao povo inteiro E fui para a tropa depois. Fui despedir-me dos meus, Naquele doloroso dia, Só talvez soubesse Deus O que o meu peito sentia. Dos meus pais me despedia, Copiosamente a chorar, A minha mãe só me dizia -Filho, tu, vais-me deixar. De novo me veio abraçar, E eu segui o meu destino; Assim, deixei o meu lar E o meu povo pequenino.(12) A Entrada no Quartel Os rituais de entrada na idade militar seriam um complemento dos rituais de transição da puberdade para a maturidade. Rituais que visavam uma elevação de “status”, ainda evidente em diversas sociedades, motivada e inculcada pelos chefes, pelo cumprimento de uma norma social, norma de pertença a um grupo ou a uma organização, com uma certa finalidade, que o poder exigia e a sociedade comparticipava. A chegada ao quartel, a apresentação da guia de marcha, o primeiro banho, o corte do cabelo, como medida higiénica e marcas distintiva de uma pessoa em situação de margem, numa classe de iniciação, ficam na memória da tradição popular. Às portas do Regimento, Estava uma sentinela; Logo naquele momento, A sorrir me disse ela. -Entra que a tropa é bela, Eu gosto de aqui andar, É preciso é cautela, para ninguém nos castigar. Ao ouvi-Ia assim falar, Fiquei cheio de alegria, pedi-lhe para me informar Onde era a Secretaria. -Sobe essa escadaria, Ao cimo a vais encontrar; Com muita ou pouca alegria, Vai-te lá apresentar. Eu subi, até que fui dar Então com a Secretaria, Pedi licença para entrar E entreguei a minha guia. Quando da porta saía, Logo me disse o quarteleiro: -Toma banho em água fria, Depois vem ao nosso primeiro. A seguir vais ao barbeiro O teu cabelo cortar, Depois, diz o nosso primeiro, Vens-te a mim apresentar.(13) O recruta era, por vezes, submetido aos “ritos de entrada”(14) que colidiam com a sua mentalidade e a sua visão do mundo, como a perda de liberdade, transpondo as realidades da vida militar para uma visão analógica com a vida conventual: Na peluda, não pensava que havia de vir a ser praça; Fui metido num convento, Já não tenho liberdade.(15) A Atribuição do Número A mudança de nomes ou a aquisição de nomes adicionais ocorrem, muitas vezes, nas idades dos indivíduos como indicação de novos estados(16), normalmente associados a ritos de margem. Por analogia, a vida militar, encarada como uma situação de margem, em que o homem é retirado para um novo estado, fora da família e da sua sociedade, dava um número ao neófito-recruta, que passava a identificálo, retirando-lhe o nome, no tratamento estritamente militar, pois, era introduzido numa nova família em que tinha, simbolicamente, como pai o capitão e como mãe o primeiro-sargento. Vejamos o que dizia, em 1952, um militar do Regimento de Cavalaria 8, de Castelo Branco: O meu nome do baptismo Já ninguém mo quer chamar; Número cento e setenta e oito, Foi o número que vim a usar.(17) A Distribuição do Fardamento A distribuição de fardamento, como “rito de agregação” comunidade militar(18), é quase sempre descrita com humorismo, quer por parte dos agentes da distribuição, quer por parte dos recrutas a fardar. Diz o sargento: -A farda te quero dar E mais o belo barrete, Muito bem te deve ficar, 44 Deves parecer um cadete.-(19) Diz o recruta: A camisa e as ceroulas Fizeram-me logo tremer, Puseram-se em pé comigo, Vi jeitos de me virem bater. As calças eram tão grandes, Que até metiam confusão; Dentro das mesmas calças, Cabia outro figurão. As botas eram tão grandes, Que nem as podia arrastar; Tenho a certeza que serviam Para eu atravessar o mar, Do jaleco não se fala, Ficam-me as mãos escondidas; As mangas eram tão grandes, Tinham dois metros de compridas.(20) A Disciplina O rigor disciplinar exigido aos soldados, como um potente meio de sugestão e de intimidação para inculcar nos homens a deferência pelos chefes e para fomentar a ordem e a coesão na instituição militar, é referido, bem como as exigências do atavio da farda, este insinuado como “rito de orgulho”, nas cantigas populares, criadas espontaneamente, como as seguintes quadras: Quando um minuto mais tarde, Na forma quero entrar, Não querem saber de desculpas, Logo me vão castigar. Se falo, tenho castigo, Se me calo, sou castigado, Não sei como hei-de viver, Nesta vida de soldado. Quando quero sair à rua, As botas levo engraxadas, A sentinela da porta Logo se põe a examiná-las. Então a sentinela me diz: -Volta para trás rapazinho, Bota graxa nessas botas, Não gastes o pré em vinho. Temos que andar direitinho, Em qualquer formatura; Se não estamos caladinhos, Logo nos vão para a figura.(21) Educação, Valentia e Competição A iniciação militar inclui a instrução militar como processo educativo dos cidadãos, levando-os ao conhecimento de certos valores patrióticos e civilizacionais, que vêm da tradição portuguesa, orientada para valores específicos de defesa e de continuidade da Pátria, para além ensinamentos conducentes à formação geral do cidadão. A ideologia que envolvia a acção militar e o esforço de mentalizar os jovens, e a sociedade de um modo geral, no sentido de valorizar o homem e o cidadão, está espelhada na seguinte quadra, que reflecte a evidência de que, para muitos beirões, a única escola era o quartel. Todo o rapaz que é preguiçoso, Devia vir para soldado, que aqui é que se aprende A ser brioso e educado.(22) Em momentos históricos e conjunturais, sublimam-se alguns valores, que as sociedades absorvem, mentalizando-as para certos ideais, como a sublimação do”ser homem” aliado ao “ser soldado”, com significativa ascensão social, como já foi referido. A maturidade de ser homem passa pela condigão de ser soldado, com entrada, por direito, nos negócios da aldeia e na organização das festas, por exemplo, para além da aptidão para defender o País. Na década de trinta, escrevia um soldado do Batalhão de Caçadores 6, de Castelo Branco: Olha que um militar quere-se valente p’ra guerra, com valentia lutar, E defender a sua terra.(23) A instituição militar fomentava, em nome da coesão e do espírito de corpo, para além da valorização social e patriótica, uma competição, quer entre os individuos do mesmo aquartelamento, quer entre aquartelamentos diferentes, como realçam as seguintes quadras, relativas a soldados que serviram em Unidades de Castelo Branco: O soldado de Cavalaria É o espelho da Nação, Quando põe o pé no estribo, Já leva a espada na mão, Cada vez que vejo o oito, Me lembra o meu Regimento; Minha espada, meu cavalo, 45 E meu lindo fardamento.(24) Juramento de Bandeira Tal como em muitas sociedades, em que se verifica uma apresentação dos seus novos membros à comunidade, os nossos militares, após um regime de margem e de aprendizagem ou iniciação, que é o tempo de recruta, são apresentados à sociedade, em manifestação pública ritualizada, o Juramento de Bandeira, já não como simples indivíduos rurais ou citadinos, mas como soldados, ou seja, como elementos defensores de uma sociedade ou dos ideais superiores que norteiam essa mesma sociedade, por que foram iniciados na instrução militar, como refere um soldado, nos anos trinta: Eu tratei de me apurar Logo na instrução primeira, Só para trás não ficar, Quando jurasse Bandeira.(25) Os rapazes, retirados às famílias e à comunidade, são apresentados às suas comunidades valorizados como homens e como cidadãos, capazes de defender as suas terras, após o Juramento de Bandeira, “rito patriótico” por excelência. Diz a quadra: Estendi o braço à Bandeira E quis por ela jurar, A dar pela pátria a vida E sempre do inimigo a saltar.(26) O Militar e o Namoro A Idade Militar coincide muitas vezes com a idade do namoro, como é muitas vezes factor de rupturas amorosas. Todas estas vivências deixam os soldados nas suas expressões poéticas, como o militar que se queixa do abandono a que foi votado pela namorada: Até da própria namorada Fui logo abandonado; Na última carta me diz que já não liga ao soldado(27) A namorada protesta contra o comboio, objecto visível do seu descontentamento, que levou o seu rapaz para a vida militar: Ó comboio das oito, Não te posso ver passar, Levaste o meu amor Para a vida militar.(28) A namorada promete ao seu namorado que nunca o esquecerá, enquanto ele estiver na tropa: Hei-de escrever-te, bem sei, Numa folha de papel, cartinhas para a cidade, Mandadinhas para o quartel.(29) As raparigas que viviam próximo dos quartéis eram avisadas para não confiarem nos soldados, porque a tropa é passageira e os militares estão numa idade de aventuras e brincadeiras: Menina não se enamore Do rapaz que é militar, quando não, ele toca a caixa E então, põe-se a andar.(30) Os soldados, já nos fins do século passado, galanteavam as raparigas, quando andavam pelas ruas: Sou soldado, sirvo o rei, E também sirvo a rainha; Também meto sentinela À sua porta, lindinha.(31) A Saída da Vida Militar Entre as quatro crises básicas e universais da Humanidade, nascimento, maturidade, reprodução e morte, compreendidas no ciclo completo da vida,sucedem-se acontecimentos biológicos e culturais, que podem designar-se por “idades”, vividas mais ou menos intensamente pelos indivíduos e pelas sociedades. Como vimos, algumas atitudes perante as situações e os acontecimentos, actuando como respostas aos imperativos biológicos e às vivências impostas pelas normas sociais, projectam-se como conjuntos cerimoniais embebidos em ritos próprios, que correspondem às diversas idades do Homem, enquanto ser cultural. Podemos concluir que a Idade Militar, nos meios rurais da região da Gardunha, marcou profundamente o homem, que percepcionava o mundo sob a perspectiva de uma “visão do mundo camponesa(32), caracterizada por uma inferioridade cultural em relação ao homem citadino, pela ideia de casa, como unidade social, elemento de identidade familiar e de trabalho, com a função social definida por bens económicos visíveis, como a posse da terra. Refere a poesia tradicional: Quando for à disponibilidade, Vou para a casa dos meus pais; E eles dão-me um papel, Para não me esquecer mais. O soldado que está em casa, A trabalhar no seu campo, 46 Quando há uma chamada, A ferramenta vai para um canto.(33) Como na entrada para a vida militar, há também um ritual, no final do tempo, como que numa evasão para a liberdade da comunidade aldeã, verdadeiros “ritos pós-liminares”, preparatórios para o reencontro com os familiares e com os amigos, ou “ritos de saída”, com realce para as despedidas, que a literatura tradicional exprime: Tenho o tempo acabado, De novo vou ver os meus pais; entrar neste quartel, Juro que não volto mais. Fui um soldado fiel, Cumpri a minha missão; Digo adeus ao meu coronel e adeus ao meu capitão. Digo adeus a toda a gente, com grande satisfação; Digo adeus, muito contente Ao primeiro do Esquadrão.(34) * Mestre em Ciências Antropológicas. Notas 1 - TITIEV, Moscha - Introdução à Antropologia Cultural. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. 1979. pg. 263. 2 - VAN GENNEP, -Arnold - Os Ritos de Passagem, Editora Vozes, Petrópolis-Brasil, 1978, pg. 31. 3 - Idem, pg. 154. 4 - Idem, pg. 158. 5 - Conforme depoimento de informador qualificado. 6 - VAN GENINEP, obra citada, pg. 31. 7 - HOBEL, E. Adamson e FROST, Everett - Antropologia Cultural e Social. Editora Cultrix-São Paulo-Brasil, 1981, pg. 167. 8 - TURNER, Victor - O Processo Ritual- Estrutura e Anti-Estrutura-Editora Vozes, Petrópolis-Brasil, 1974, pg. 202. 9 - JOÃO GAMA, Casal da Serra. 63 anos. 10- Na aldeia do Alcaide, alguns miIitares prometiam ao São Sebastião, protector dos militares, ou ao São Macário, uma prestação monetária, pegar no andor, ou mesmo fazer uma festa ao primeiro Santo, para que os protegessem na vida militar. 11 - VAN GENNEP, obra citada, pg. 48. 12 - JOSÉ SIMÃO, Casal da Serra, 78 anos. 13 - Idem. 14 - VAN GENNEP, obra citada, pg. 39 e 83. 15 - JOÃO GAMA, Idem. 16 - HOBEL e FROST, obra citada, pg. 165 e VAN GENNEP, obra citada, pg. 69. 17 - JOÃO GAMA, Idem. 18 - VAN GENNEP, obra citada, pg. 89. 19 - JOSÉ SIMÃO, Idem. 20 - JOÃO GAMA, Idem. 21 - JOÃO GAMA, Idem. 22 - JOÃO GAMA., Idem. 23 -JOSÉ SIMÃO, Idem. 24 - JOSÉ MATOS, Casal da Serra, 91 anos. 25 -JOSÉ SIMÃO, Idem. 26 -JOÃO GAMA, Idem. 27 -JOÃO GAMA, Idem. 28 -JOSÉ MATOS, Idem. 29-JOSÉ MATOS, Idem. 30-JOSÉ MATOS, Idem. 31 - JOSÉ MATOS, quadra ouvida ao seu pai, no princípio do presente século. 32 - CABRAL, João de Pina - Filhos de Adão, Filhas de Eva, Editora D. Quixote, Lisboa, 1989, pg. 59. 33 - JOÃO GAMA, Idem. 34-JOSÉ SIMÃO, Idem. 47 A IDADE DE SER “RATINHO” por Maria da Assunção Vilhena Fernandes* I - As Idades do Homem do Concelho de Proença-a-Nova Como em todas as sociedades, também aqui há idades próprias para determinadas actividades. Nos primeiros anos em que tomei contacto com as gentes do concelho de Proença-a-Nova, tive ocasião de verificar que as crianças desta região não passavam pela idade de brincar por que passavam as de outras terras e, felizmente, as dos nossos dias. Em geral, as famílias eram pobres, tinham muitos filhos a quem não podiam proporcionar uma infância feliz. Assim, tinham de aproveitar das crianças, mesmo as menores e mais fracas capacidades para ajudar à sua própria criação. Ainda na primeira infância, por volta dos 3 ou 4 anos, já lhes era imposta a obrigação de cuidar dos irmãos mais novos, afastando-os da fogueira, do sol ou da chuva, se já andavam, e vigiar o bébé no berço, embalá-lo, dar-lhe a chucha para que não chorasse, etc, enquanto a mãe trabalhava. Depois vinha a idade de levar as cabras ao pasto ou acompanhar o pai na lavoura, para guiar os bois ou os burros no rego, às vezes, com pouco mais de 5 anos. Mais tarde, por volta dos 7 ou 8 anos, chegava a idade de ir servir - os rapazes, em geral, para pastores, as raparigas para criadas. Disseme uma senhora da Sarzedinha que, a primeira vez que foi servir, não se lembra que idade teria, era tão pequena que, para conseguir chegar à masseira para onde devia peneirar a farinha para fazer o pão, a patroa tinha de lhe pôr o meio alqueire debaixo dos pés! Na 1ª metade deste século, principalmente nas aldeias, ainda não havia para todas as crianças a idade de ir à escola, por falta de estradas, por falta de escolas mas, principalmente, porque os pais necessitavam do trabalho delas. Raras foram as raparigas que aprenderam a ler e também nem todos os rapazes tiveram esse privilégio. Quando os filhos eram muitos, de ambos os sexos, e não era possível empregá-los todos a servir, ficavam em casa dos pais que os ocupavam nos trabalhos do campo, bem mais cedo do que devia ser. Os “Ratinhos” e o Desempenho da Tarefa Contratada Chegado o mês de Maio, tempo em que as searas já estavam maduras, muitos homens desta zona, para melhorar a sua precária situação familiar, migravam para o Alentejo (outros para Espanha), para fazer a ceifa. Era a esses trabalhadores que chamavam os “ratinhos” não se sabe ao certo porquê, mas talvez pelo seu hábito de ratinhar ou regatear o prego de qualquer coisa que compravam, ou por muito economizarem, poupando em tudo até com uma certa sovinice. O costume de ir ceifar às terras alentejanas vem de muito longe: foram “ratinhos” os avós, os pais, os filhos e os netos, durante gerações, e já não o são hoje, graças ao progresso que os substituiu por ceifeiras mecânicas. Antes delas, os “ratinhos” eram imprescindíveis nas ceifas, pela escassez de braços alentejanos. Habituados a trabalho duro na sua terra, os beirões ceifavam com desembaraço e uma destreza incomparáveis. Por isso, os lavradores alentejanos esperavam com ansiedade a visita dos manajeiros beirões que, na Primavera iam ao Alentejo tratar dos contratos e ver as possibilidades de ganhar bons proventos. Ao voltar, contratavam os homens que iriam depois ceifar sob a sua autoridade. A regra era obedecer, ouvir e calar. Se se revoltassem, eram despedidos. Nem sempre os manajeiros eram trabalhadores do campo, mas sapateiros, barbeiros, etc., que aproveitavam aquela quadra para obterem bons lucros. Eram sempre tipos com astúcia: iam 48 um ou dois anos a ceifar para aprender como funcionava o serviço, procurando a simpatia dos conterrâneos, dos manajeiros e dos patrões. Depois já podiam entrar em acção... Contratados os homens para a ceifa, faziam-se os preparativos para a faina que durava 40 a 45 dias. Com os dias da viagem, eram quase dois meses de ausência das suas aldeias. Como fato de trabalho, escolhiam as calças mais velhas que tinham, de surrobeco ou de cotim, remendadas por todos os lados, que, por não serem lavadas durante toda a safra, ficavam tão duras com o suor que, quando despidas se aguentavam de pé ... As camisas de linho grosseiro, nos tempos mais recuados, tiveram de ser substituídas por outras mais macias pois, com o movimento brusco e continuado dos braços, chegavam a ferir-se nas axilas. Adoptaram então as blusas de riscado azul e branco, aos quadradinhos, usadas pelos ganhões alentejanos e a que, não sei porquê, chamavam garibaldas. Eram as “alfaiatas” que as faziam e também preparavam os velhos chapéus de feltro forrando-os de sarja e pespontando-os em círculos para os tornarem mais duros e impermeáveis aos raios ardentes do sol. Para protegerem a nuca, usavam o tradicional lenço de algodão vermelho que, a maior parte das vezes, usavam sob o chapéu para ensopar o suor. Também fazia parte da “copa” do “ratinho” um par de safões de pele de cabra que usava ora com o pêlo para fora, ora para dentro, conforme o tempo que fizesse; um peitilho e uma “braçadeira” da mesma pele para proteger o peito e envolver o braço esquerdo, defendendo-o dos golpes ou da aspereza da palha. Como adereços para proteger os dedos, faziam dedeiras de cana que usariam no indicador, médio e anelar da mão esquerda ou dedeiras de cabedal. Levavam , pelo menos, duas foices. Era indispensável a manta para, durante a noite, se protegerem da “maresia”e do sol, durante a sesta, esticada sobre alguns molhos de trigo empinados, quando não havia árvores por perto. O fato que levavam na viagem só o voltavam a vestir no regresso. Na véspera da partida, preparava-se o farnel: broas, chouriço e uma cabaça de zurrapa para ajudar a engolir. Alguns ceifeiros levavam consigo filhos ou sobrinhos que não estavam a servir, para os iniciarem na profissão e para trazerem mais algum dinheiro. Eram garotos de 12 ou 13 anos (mas conheço um que foi aos 8 anos só para guardar a “copa”(1) e dar de beber aos ceifeiros). Como se não lhes bastasse já a tortura de trabalharem nas propriedades dos pais, iam iniciarse no trabalho mais duro que se pode conceber - trabalho de escravos - sob o olhar atento dos adultos e também dos familiares que os tinham levado e não queriam que os deixassem ficar mal, perante o manajeiro que os tinha contratado. Era essa a idade de começar a ser “ratinho”. Esses jovens “ratinhos” estavam apenas na 2ª infância, no início da puberdade, alguns na adolescência. No plano fisiológico, era uma idade crítica e, portanto, esse trabalho era um perigo para o seu desenvolvimento. Estavam a crescer, eram geralmente mal alimentados na sua terra e, consequentemente, tinham fraca compleição física. Além disso, as modificações fisiológicas, que afectam o estado de espírito do adolescente, não eram de modo a uma fácil adaptação ao novo trabalho. Mesmo no seu meio, ao tomar conciência do mundo que o rodeia, tem as mais diversas reacções, ora mostrando uma timidez que o impede de falar, de se abrir, mesmo com as pessoas com quem lida de perto, ora tomando atitudes de uma agressividade assustadora, ora, ainda, caindo numa instabilidade que lhe provoca alegria ou tristeza, fácil no riso descontrolado ou em crises de choro ou de silêncio. O ambiente, a dureza do trabalho, o clima hostil, a opressão e as injustiças que era obrigado a suportar durante esse período de 40 a 45 dias, não eram, de modo algum, propícias ao seu desenvolvimento físico e à boa formação da sua personalidade. Mais ainda, todo o dia debaixo daquele sol de fogo em que o termómetro subia aos 40° (Fialho de Almeida diz que chegava aos 50°, estava sujeito a insolações e, se as searas eram próximas de zonas pantanosas, onde os mosquitos atacavam em enxames, e bebendo muitas vezes água de charcos, onde bebiam cães e burros e os porcos chafurdavam, não estavam livres de contrair doenças, como as febres quartãs que segundo Brito Camacho, eram frequentes e só se curavam com sulfato de quinino ou sulfato inglês. Diz José da Silva Picão que era importante a percentagem de doentes “ ratinhos” nos hospitais alentejanos, onde nem todos se curavam. Alguns “ratinhos”, que eram contratados para a ceifa da cevada, iam mais cedo. Parece que não era tarefa fácil, porque às vezes, a cevada era muito curta e obrigava o ceifeiro a andar numa posição muito incómoda. Falaram-me de um padre já velhote que, no confessionário, quando lhe aparecia um penitente ainda novo, lhe perguntava: “Já foste à ceifa ao Alentejo? Já ceifaste cevada janeirinha de cabeça para baixo?” Se a resposta era afirmativa, dizia-lhe: “Vai em paz, que todos os teus pecados já te estão perdoados...” Os que iam para a ceifa do trigo partiam em meados de Maio; partiam cheios de entusiasmo os garotos que iam pela primeira vez e ignoravam o que os esperava. Era receio quase medo o que sentiam os que já lá tinham estado, mas que escondiam dos outros para que não os julgassem fracos ou medricas. Para quem ficava, a partida dos “ratinhos” era sempre uma ocasião de tristeza, lágrimas, prelecção das mães aos garotos, das esposas e namoradas aos adultos. Iam a pé, alguns com a bagagem em burros, mas a 49 maioria levava-a às costas, nalguns casos acompanhados pelas mulheres que levavam parte da carga à cabeça, até ao Tejo, à barca da Amieira, principalmente. Chegados aí, elas voltavam para casa e eles, passado o rio, continuavam a pé, se a herdade onde iam ceifar não era muito longe, ou tomavam o comboio no caso contrário. De todos os lados surgiam “ratinhos”, em grupos que iam engrossando, formando “legiões” de muitas centenas que depois se iam separando novamente conforme se aproximassem das searas que iriam ceifar. Fialho de Almeida, que não tinha nenhuma simpatia pelos beirões, escreveu: “...mais ou menos todos os temos visto descer em récuas para os trabalhos agrícolas do Alentejo (...) ou vir das ceifas de Espanha...” À chegada ao lugar do trabalho, descansavam dois ou três dias, alimentando-se do que tinham levado, não só para se recomporem da maçada da viagem, mas para se organizar o trabalho. Eu imagino o estado em que chegariam os garotos que tivessem feito todo o percurso a pé! A faina começava antes do romper do dia, formando-se a “camarada” ou corte, à ordem do manajeiro, com os adultos devidamente equipados de foice em punho e capitaneados pelo “cabeceira” que ocupava a ponta direita e substituía o manajeiro quando este tinha de se ausentar. A ponta esquerda também era ocupada por um ceifeiro de confiança que tinha a obrigação de auxiliar o ponta direita na orientação dos ceifeiros. Ganhavam como os outros, recebendo apenas, no fim da safra, uma gorgeta do lavrador. Para os jovens “ratinhos” era o seu “baptismo” de ceifa, embora ainda não ceifassem... O seu trabalho era a “atada’, isto é, tinham de reunir em molhos as paveias que os ceifeiros deixavam no restolho, atrás do corte. Com o joelho em terra, atavam as paveias reunidas, com vários colmos de trigo unidos e torcidos junto às espigas, ou com junça, correias de trovisco, etc., sempre numa corrida para não se atrasarem. Muitos deles mal podiam com os molhos que faziam, mas mostravam-se diligentes e lestos, talvez por receio de censura ou de castigo. Esse trabalho era fiscalizado pelo guarda da herdade para evitar que os garotos aldrabassem o serviço, por inexperiência ou pela pressa que lhes impunham os superiores e os parentes. Quando alguns molhos, mal atados, se desfaziam o guarda ralhava-lhes e queixava-se ao manajeiro que, por sua vez, também se zangava com os garotos. O guarda, às vezes, queixava-se dos “ratinhos” ao lavrador, falando-lhe da pouca idade e capacidade dos atadores que eles traziam. O patrão furioso, ameaçava de, no ano seguinte não os aceitar: “...para o ano, nem um só desses fedelhos ranhosos... as mães que os desmamem lá na Beira... Nada que eu pago-lhes como homens e como homens trato...” E era verdade: o lavrador pagava a todos os “ratinhos” a mesma quantia e eram os seus próprios conterrâneos, ceifeiros e manajeiro, com a anuência dos familiares, que os exploravam ao fazer as contas, como veremos adiante. O que os patrões não queriam, principalmente, era que a percentagem de garotos fosse muito elevada em relação ao número de ceifeiros. José da Silva Picão diz a este respeito, que os manajeiros “arranjavam contradanças de pessoal” conseguindo que os garotos escapassem como homens, para o beneficiarem a ele e aos ceifeiros adultos. Uma “exploração vil, que os pais dos garotos consentiam, por irem feitos no jogo...” Durante toda a temporada da ceifa, os “ratinhos” que também trabalhavam ao domingo, só descansavam no dia de Corpo de Deus, se acontecia já lá estarem, e no dia de S. João que, em anos atrás, era dia santo de guarda. Eram os únicos dias em que se lavavam e escreviam à família. A idade de ser “ratinho”! Essa idade terrível começava na infância e continuava na maturidade enquanto o homem se sentisse com forças para ceifar ou, ao ser “joeirado”, sofresse a humilhação de receber como um garoto. Ao nascer do sol, já com algumas horas de trabalho no corpo, a “cabeceira” interrompia a ceifa, tirava o chapéu e exclamava em voz alta: “Bendito e louvado seja o S.S.mo Sacramento! Todos os ceifeiros o imitavam e, pondo a foice ao ombro, rezavam as suas orações da manhã. Os garotos também rezavam, mas não interrompiam a “atada” para não se atrasarem. Acabada a reza, comiam o desejum - pão com queijo que tinham guardado, porque o patrão só dava três refeições. Voltavam ao trabalho até às 7 ou 8 horas que era a hora do almoço. Este constava de sopas de alho, com sal e uma colher de azeite mal cheia por cada pessoa. Ao referir-se a essas sopas, os “ratinhos” diziam: “Sopas de larum-tum-tum Água e sal E azeite nenhum..... Logo a seguir à fraca refeição, voltavam a ceifar e a atar até ao meio dia - hora de jantar em que já podiam matar a fome. (Referindo-se à alimentação dos “ratinhos” no Alentejo, um velhote que conheci nas Forneas e que foi 40 anos à ceifa, dizia que em Espanha era bem diferente: “era sempre boda”.) O jantar vinha cozinhado do monte, trazido pelo “tardão” ou “manteiro” (que não era “ratinho”) em “asadas” de cobre brilhando ao sol, dispostas nas cangalhas de uma cavalgadura que ele montava. Ao avistá-lo, cada um fazia o seu comentário, mas só largavam o trabalho quando o manajeiro anunciava o jantar. Este compunha-se, invariavelmente, de “olha” de grãos de bico adubada com toucinho, a “bóia” , excepto às sextas e sábados que era temperada com azeite. Nestes dois dias, a “bóia” era substituída por metade de um queijo. Ao domingo, além do toucinho, 50 também havia morcela. Era o manajeiro que vasava a “olha” para dentro de cada barranhão (alguidar de lata, individual), onde os ceifeiros migavam sopas de pão de trigo. Também era ele que dividia a “bóia” em tantas rações quantas as pessoas. Se havia por perto alguma azinheira, cada um com seu alguidar na mão, dirigia-se para a sombra; caso contrário, comiam ao sol, sentados no restolho ou com um joelho em terra. Entretanto, tiravam a colher do chapéu mas só começavam a comer quando o manajeiro dizia em voz alta:” Com Jesus!”. Comendo ao sol, comida quente, o suor escorria-lhes pelo corpo em torrentes. Todos os dias, o jantar era de grãos de bico! Alguns, que foram “ratinhos”, ainda hoje não são capazes dos comer, de tal modo ficaram enjoados.. Mas o pão de trigo ... podemos dizer, sem receio de errar, foi a melhor compensação que esta gente, que só comia broa (e centeio pelas festas), teve nos trigais do Alentejo. Ainda hoje, que já não comem pão de milho, ao recordar as refeições da ceifa, comentam: “Que rico pão!”. Depois do jantar, dormiam a sesta, procurando, de qualquer modo proteger-se dos raios de fogo que, segundo Fialho de Almeida, atingia a temperatura das primeiras 20 léguas de areia do Sahara. O repouso era de uma hora ou hora e meia, em que os ceifeiros dormiam um pouco logo acordados pelo manajeiro com o grito de “Ala arriba!”. Enquanto os homens dormiam os garotos continuavam a atar, depois de terem esfregado com palha do restolho o barranhão de cada ceifeiro até os deixarem a brilhar. O trabalho tornava-se um inferno a essa hora, só suportado pelo estímulo do dinheiro. A sede era abrasadora:os homens bebiam com avidez, com grandes goladas, a água, nem sempre fresca nem de boa qualidade que o “tardão” lhes vinha a trazer. Florbela Espanca, poetisa alentejana, sabia como era a planície, no tempo das searas sazonadas. “Horas mortas ...Curvada aos pés do Monte A planície é um brasido ... e, torturadas, As árvores sangrentas, revoltadas, Gritavam a Deus bênção duma fonte!” Como as árvores, às vezes tão distantes da seara, no brasido da planície, torturados, os “ratinhos “também pediam a bênção de uma fonte... de água fresca... À tarde, meia hora antes do sol-posto, comiam a merenda que era apenas o tradicional gaspacho (até costumavam dizer:”vamos gaspachar”) e algumas azeitonas como conduto. Descansavam apenas o tempo para comer e ler algumas cartas dos familiares distantes, enquanto os garotos iam dar de beber aos burros. Entretanto, o sol ia-se escondendo como uma enorme bola vermelha e os ceifeiros continuavam a sua labuta, um pouco menos dolorosa, porque já corria uma agradável brisa que lhes refrescava os corpos. Eles ouviam, ao longe, os relógios das torres a dar as horas, às vezes 10 horas da noite! Mesmo que fizessem ver ao manajeiro que já era tarde demais, ele repreendia-os com azedume, e só os mandava largar já noite cerrada, dizendo, como era habitual: “Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!. Ao largarem a foice, rezavam as orações da noite, estendiam a “copa” no restolho e deitavam-se em cima: eram as suas camas, onde iriam repousar pouco tempo porque, na madrugada seguinte, já teriam de recomeçar. Poderemos dedicar-lhes este poema de António Salvado: “No pequeno intervalo entre a noite e o dia o saberem que ‘aí’ estão é o seu único dom... Respiram pelas horas consumidas, refazendo um novo tempo entre o silêncio e a acção... E o seu perfil limitado é feito de alguma fé ... E a sua existência aberta é feita de alguma esperança.” No caso dos “ratinhos” é a fé que os leva a dizer que todo o sofrimento é “a vontade de Deus” e a esperança é não só que o tempo passe depressa para voltarem para junto dos seus, com aquela miséria de mesada, que para eles era uma pequena fortuna, mas ainda a esperança de que “um dia” - não sabiam quando nem como - a sua vida havia de melhorar. Acabada a tortura da ceifa, vinha a euforia: alguns atiravam as foices ao ar, cantavam e dançavam como se já estivessem esquecido tanto sofrimento. Os manajeiros recebiam dos lavradores as importâncias das respectivas empreitadas (com as costumadas gorgetas: às vezes um presente de queijos e a venda barata de algum “burranco reles...”) De posse do dinheiro, o manajeiro mandava reunir os ceifeiros, longe dos garotos para que não ouvissem o que se ia passar: estendiam uma manta no chão e, aí, o manajeiro colocava, em montículos, a quantia que havia recebido do lavrador respeitante ao número de homens (incluídos os garotos) e procedia-se à “julgação” ou “joeiração”, que consistia em tirar de cada quinhão destinado a cada garoto, metade, dois terços, três quartos ou mais. Se achavam que algum homem era inferior aos outros no trabalho, também ele sofria desfalque no seu quinhão. A soma desse dinheiro subtraído aos quinhões dos “joeirados” era depois dividida, em partes iguais, pelos adultos que “saíram por inteiro”. Muitas vezes, estas operações provocavam contendas bem azedas porque o manajeiro e alguns ceifeiros procuravam, ao máximo explorar os garotos, achando alguns que, até um quinto já era demais. Como é evidente, “o direito da força prevalece sobre a força do direito” e os garotos vinham de lá, a maior parte das vezes, com uma ninharia. Alguns ceifeiros chegavam a enganá-los do seguinte modo: “ Vocês podem receber «por inteiro», mas têm 51 de pagar a «patente» que era sempre uma quantia avultada a entrar para o monte dos adultos. Crianças sem maldade nem astúcia, só pelo prazer de ganhar «por inteiro» aceitavam muito contentes e, quando chegavam à terra, atiravam um foguete por terem atingido aquela honra. O manajeiro recebia ainda a “manajaria”, quantia que, segundo o contrato, era retirada do monte de cada ceifeiro, incluindo os garotos. No dia imediato ao das contas, efectuava-se a partida para a Beira, nos mesmos termos em que tinham chegado, apenas com a diferença de que levavam mais burros... Nas localidades de que eram naturais, esperavamnos com grande ansiedade, porque a sua ausência tinha causado grandes modificações no ritmo normal dos seus costumes. Durante gerações, a ceifa foi um acontecimento importante nestas povoações. Apesar dos bailes domingueiros se continuassem a fazer na eira, não tinham a alegria habitual porque faltavam muitos rapazes. As mulheres casadas e as noivas, que tinham os seus homens no Alentejo, não dançavam “porque não parecia bem”. Então os cantadores, que tinham ficado, dedicava-lhes cantigas que, por vezes, as faziam chorar. “O caminho do Alentejo Todo o ano é seguido: Os homens com as passadas As mulheres com o sentido. Faz calor que abrasa o mundo Senhor, manda a fresquidão, Que anda o meu amor na ceifa Faltado de compreensão. Eu venho do Alentejo Enfadado do caminho Já por aqui não há quem diga: - Assenta-te um poucochinho.” Até as datas das festas religiosas mudaram, celebrando-se, no dia próprio do santo, apenas a missa assinalada no calendário cristão. A festa, propriamente dita, com a procissão e a parte profana só se realizava mais tarde, depois da chegada dos “ratinhos”. Nas freguesias do concelho de Proença-a- Nova, a festa do Sagrado Coração de Jesus, que deveria realizar-se na 6ª feira a seguir à festa do Corpo de Deus, pela ausência de tantos homens ocupados na ceifa, foi transferida para as Têmporas do Outono, aproveitando-se para agradecer as graças pedidas nas Têmporas da Primavera. Na aldeia do Padrão, cujo orago é S. João Baptista, festejado pela Igreja em 24 de Junho, ainda hoje a grande festa tem lugar na última semana de Agosto. Os “ratinhos” foram muito importantes para a produção de trigo no país - escravos do século XX! Em 1957, ainda foram ao Alentejo (mas de autocarro) 150 ceifeiros do concelho de Proença-a-Nova. A idade de ser ratinho acabou! A classe extinguiu-se nos anos 60, substituída pelas máquinas. Notas (1) No Alentejo costumavam chamar “cope” ao fato. Bibliografia Almeida, Fialho de, Os Gatos e Separata Ceifeiros. Livraria Clássica Edidora, Porto, s/d. Camacho, M. Brito, Memórias e Narrativas Alentejanas. Prefaciadas e seleccionadas por Óscar Lopes, Colecção Textos esquecidos. Guimarães Editores. Lda. Lisboa, 1988. Espanca. Florbela, Sonetos, Livraria Bertrand. Venda Nova - Amadora. 1978. Picão, José da Silva, Através das Campas, Publicações D. Quixote. Colecção Portugal de Perto, Lisboa. 1983. Salvado, António, Antologia, Tip. Jornal do Fundão. 1985. 52 O CONCELHO DE IDANHA-A-NOVA EM MEADOS DO SÉCULO XX Dados para o Estudo da Vida Quotidiana na Raia Centro A IDADE DO QUOTIDIANO por António Maria Romeiro Carvalho* 1. As Fontes Escritas Utilizadas As Fontes utilizadas foram o Livro do Posto de Despiolhagem e Desinfecção, de Penha Garcia, Monfortinho, Salvaterra do Extremo e São Miguel de Acha, 1941. Este Livro encontra-se no arquivo da Misericórdia de Idanha-a-Nova e não conhecemos qualquer outro nos Arquivos Paroquiais, das Juntas de Freguesia ou no Arquivo da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova. 2. Composição do Lar Existe vulgarizada a ideia que, no tempo dos nossos pais e avós, as famílias eram muito numerosas: pai, mãe e cinco, seis, sete, dez ou mais filhos. Esta ideia não corresponde à verdade. O mais frequente são os lares com três membros - 22,5%. Os lares constituídos por dois a cinco membros, isto é, com nenhum até três filhos, são 80% do total dos lares, enquanto 6,5% têm um só elemento. Com seis ou mais membros, isto é, com quatro ou mais filhos, só 22% dos lares. É necessário imenso cuidado nas generalizações, principalmente quando surgem de uma análise sentimental. A admiração quase religiosa tida para com aqueles pais, principalmente as mães, que criaram uma dezena de filhos e estes vieram a afirmar-se na vida contra, muitas vezes, os dois ou o filho único das famílias mais ricas da aldeia, pode conduzir a generalizações não correctas. Contudo, a outra face da verdade é que a Fonte só refere os moradores, os que estavam em casa, esquecendo os possíveis emigrantes. Mas, mais do que este facto, note-se que sempre são 22%, a quinta parte dos lares da aldeia que têm quatro ou mais filhos. Um número suficientemente grande para se fazer notado e permanecer na retina da memória individual e colectiva. 3. Natalidade e Mortalidade A Fonte em estudo só nos fala dos vivos. Nada refere dos mortos. Mas uma pesquisa no local conduz de imediato à informação de que rara era a família a quem não morrera um ou dois filhos pequenos. Em alturas de convergência de vários males - más colheitas, climas mais quentes, epidemias - aconteciam autênticas mortandades. Como dizem algumas mulheres, «já nem o sino tocava, tantas eram as mortes. Havia mulheres que nem despiam o luto: se não era familiar era vizinho ou amigo». Doenças não faltavam e a ausência de médicos e medicamentos, ausências estas agravadas pela falta de higiene e por uma má alimentação, doenças como a varíola, sarna, sesões, tifo ou doenças de pele conduziam fatalmente ao cemitério. A uma forte natalidade corresponde uma igualmente forte mortalidade, dando razão a Cipolla, para 1950: com as taxas de 24,4 /1000 (natalidade) e 12,2/1000 (mortalidade), Portugal é o país com as mais elevadas taxas de entre um conjunto de países europeus constituído por Espanha, França, Inglaterra, Grécia, Alemanha e Itália(1). O Concelho de Idanha-a-Nova, pelo menos até meados do século XX, possui uma demografia tipo de Antigo Regime: elevada natalidade e elevada mortalidade com cíclicos saldos negativos e rápidas recuperações. Tentámos verificar o intervalo intergenésico, a fim de se analisar a fertilidade, mas não é possível qualquer conclusão. Os dados disponíveis são poucos e, principalmente, a Fonte não informa quantos filhos teve o casal, se algum morreu e quando tal aconteceu. 4. Mortalidade Infantil A taxa de mortalidade é enorme, como atrás ficou dito. Para ela contribui de forma esmagadora a 53 mortalidade infantil, fornecendo quase metade dos óbitos. Também por esta razão, permanece na memória individual e colectiva a alta fertilidade dos nossos avós(2). As causas, bem como os ambientes de nascimento e crescimento, são em tudo semelhantes às dos séculos anteriores. Problemas derivados do parto, da amamentação, do trabalho árduo das mães, das águas, dos frutos e da alimentação do bébé são uma permanência. Sarampo e desidratação são doenças que frequentemente matam. A todos estes problemas de mortalidade infantil típicos de Antigo Regime, dever-se-á juntar um novo: a mudança na relação família-criança. No centro desta relação é agora colocado o sentimento. Este facto criou, estamos em crer, graves problemas de índole psicológica a todos os membros da família e certamente a toda a aldeia. Mulheres de luto carregado desde cedo e para toda a vida, em toda uma região (e um país), um ambiente de tristeza, de redução de energias, de introversão e de maior frequência dos ofícios religiosos, nomeadamente os mais macabros, os relacionados com o culto dos mortos. Eis um tema para um estudo aprofundado: o peso do negro das mães e das viúvas no Social da aldeia portuguesa. Um estudo ainda não feito. 5. Vestuário. O Lenço e o Xaile O vestuário é pouco e praticamente reduzido a duas peças de cada elemento. São roupas femininas: saiote, saia, corpete, blusa, camisa e o lenço, dobrado em três e atado pelo cimo da cabeça, ao queixo ou sabese lá... São roupas masculinas: calças, casaco, camisa, ceroulas, colete e chapéu. As crianças usavam um macaco de perna curta e sem mangas, com abertura atrás e à frente para que as necessidades fisiológicas fossem feitas sem problemas e com menos trabalho para as mães. Isto, quando não andavam à «pai Adão». Calçado? O que traziam à nascença. Quando chegavam a uma idade mais adulta, quando «já parecia mal» e o bolso o permitia, o sapateiro fazia uns pesados sapatos, botas ou tamancos a partir de um dos dois ou três moldes que a sua oficina possuía. Mas voltemos ao vestuário feminino, porque a moda é mulher. E voltemos ao lenço, a peça de vestuário que, segundo cremos, era a mais significante e insinuante. No trabalho e na festa, na rua e mesmo dentro de casa, o lenço era sempre usado pela mulher. Dobrado em três pontas e atado. No modo de atar e no local onde era atado, um significado; lenço mais caído sobre a testa até ao lenço totalmente caído sobre o pescoço, isto para além da cor e do desenho decorativo, muitos outros significados: solteira ou casada, tímida ou extrovertida, séria ou brincalhona... O xaile é a peça da mulher-mãe. Para além de um significado decorativo, (mais visível na mantilha das «senhoras»), o xaile é o quente para o filhinho e a peça que, não só pela sua resistência, melhor passa da mãe (avó) para a filha (mãe). O xaile é negro e, na viúva, tudo tapa: o frio e a tristeza. 6. Habitação A grande maioria das casas não excede a superfície de 30 m2 e os 4 metros de altura. Possui de um a quatro compartimentos, divisões feitas, na melhor das hipóteses de paredes-«taipa». Possui nenhuma ou uma só janela. Casas com duas janelas não chegam a 20% do total. A casa dominante tem um só piso e uma só porta para o exterior. A pavimentação é de soalho, para o 1° andar e térrea, o caso do Ladoeiro (e possivelmente de outras freguesias) é interessante: o chão das casas era bosteado, isto é, dilui-se o excremento de vaca («bosta santa») em água e vassoura-se o chão. ficando este brilhante como o ouro e bem cheiroso. Na Páscoa, época da limpeza geral da casa, do corpo, da alma e da aldeia, ia o padre «dar as Boas Festas» a todos os lares e era um regalo este cheiro a lavado. Regra geral, só há uma cama em casa: é a cama do casal. Às vezes, há uma também para a filha, filhas ou filhos, como a sardinha em lata, enquanto pequenos: uns com os pés para a cabeceira, outros com eles para o fim da cama. Quando granditos, vão os filhos para o palheiro. Despem-se e metem-se nus na palha, que aquece e enchuga. Embora pouco dizendo, a média, só conhecemos para Penha Garcia, é de uma cama para nove pessoas. Muitas casas têm quintal, como em Penha Garcia. Mas a maioria, noutras freguesias, não o tem, como o demonstra São Miguel de Acha. Só algumas casas -20%-têm estrumeira. Em Penha Garcia, a grande maioria das casas -84%- tem estábulo («loja») e animais em casa, principalmente galinhas. Também outros animais, como suínos, vacas e jumentos coabitam vulgarmente no Concelho. 7. Higiene A Fonte coloca duas perguntas aos inquiridos acerca da higiene: se há hábitos de higiene em casa e se têm a casa limpa. Tanto em Penha Garcia como em São Miguel de Acha, as casas apresentam-se limpas, na quase totalidade dos casos -95%. Hábitos de higiene não existem em Penha Garcia -95%-, mas tem-nos São Miguel de Acha -75%. Estranho facto este fornecido pela Fonte quando se sabe que, mesmo hoje, não estão generalizados os hábitos de higiene na população rural portuguesa. Cremos haver aqui uma diferença acentuada de inquiridor para inquiridor quanto à noção do que eram hábitos de higiene. Não era hábito lavar as mãos antes 54 de comer, ou mesmo tomar banho mais que uma vez por ano. Era hábito dormir com a roupa do dia e com ela iniciar outro dia de trabalho. Não havia retretes ou casas de banho. Não havia higiene dentária, salvo o alicate do barbeiro. Cuspir e escarrar para o chão de terra batida ou de pedra de ferro, onde circulam cães vadios, era hábito ainda hoje conservado. Na rua se faziam despejos e lançavam penicadas. isto é, feses, urinas e águas sujas. Todas as ruas tinham lixo e muitas lixeiras. Na parte baixa da povoação, geralmente junto a um curso de água, normalmente até seco no Verão, existe a maior lixeira da aldeia e o principal local de recepção de dejectos individuais e colectivos, um local de pastagem de cães, moscas e doenças. Só uma boa invernada limpava estas lixeiras. Mais limpas, porém, seriam as capoeiras das galinhas que habitavam no vão das escadas ou do balcão e cujo estrume era ouro para quatro pés de tomate e um metro quadrado de feijão de embarrar plantados na horta. No respeitante a todas as donas de casa terem a casa limpa, nada nos custa a acreditar nos números apresentados: qual a mulher que conseguiria resistir às bocas das vizinhas? 8. Alimentação: «Encha-se o Tambor, seja do que for» A alimentação é má, já o dissemos. Essencialmente vegetal e primordialmente pão. O pão era o centro e o motivo primeiro do trabalho, para além de ser um bom definidor do estatuto social. Pão de trigo ou de centeio, conforme as posses e a produção cerealífera da povoação. Por exemplo, come-se quase só pão de trigo no Rosmaninhal e quase só pão de centeio no Ladoeiro. Isto, claro, em épocas normais pois que, em anos de crise, não existe regra e come-se até pão de farelo se se o apanha. A riqueza da aldeia é medida pela produção de trigo. O «pãozinho de Deus» é deificado: é pecado não o colocar sempre de costas no cesto, ou não o beijar quando se apanha do chão. A similitude com o pão Corpo de Cristo é total e, no essencial, indiferenciável. A maioria da população come caldo: uma sopa de vegetais temperada com sal e um pedaço de toucinho ou farinheira. Conforme a posse da família e conforme a povoação, entrava o azeite no tempero. Caldo logo de manhã - almoço, e caldo à noite - ceia, com um pedaço de toucinho, farinheira, um terço de sardinha, ou nada. Indo trabalhar, levava-se a merenda, donde se comia o jantar e a merenda: pão, azeitonas, azeitonas e pão com um naco de toucinho ou enchido. Tudo isto depende da riqueza familiar, do dia e da época. Domingos, festas ou dias santos e épocas de ceifa tinham dieta melhorada. Nestes dias, havia carne do talho ou da salgadeira, mas quase sempre e só carne de porco. Fartura de carne só mesmo de festa em festa. Vulgarmente, nem mesmo se come a cabrita, a ovelha ou o porco que se criou. São o mealheiro do lar. Um almoço domingueiro feito de sopa de feijão vermelho e, por segundo prato, feijão vermelho cozido e regado com azeite é manjar do Olimpo. O feijão grande é uma raridade no Concelho de Idanha-a-Nova e o principal bem de troca com a olaria idanhense Um copo de vinho feito das uvas dadas por Deus e quatro pés de vinha ou o copo posteriormente bebido na taberna completa a refeição de Domingos e festas. Na dieta alimentar do Concelho têm certa importância os alimentos silvestres. São cogumelos ou tortulhos, agriões, rabaças, criadilhas, amoras, bolotas de azinheira, leitugas e baldregas. Carne de caça é privilégio de uns poucos que têm arma ou posses para adquirir caça aos caçadores da aldeia. O peixe é a sardinha ou o bacalhau. Raros e caros. Peixe do rio, igualmente raro. Aliás, «peixe não puxa carroça». 9. Idades A população do Concelho de Idanha-a-Nova é jovem e situa-se na faixa etária da energia e da produtividade. Noventa e um por cento dos recenseados, em 1944, situa-se na faixa etária mais activa: 20-64 anos. Cerca de 20% da população andaria entre os 20 e os 45 anos, enquanto 15% se situaria entre os 46 e os 65. Não começou ainda a sangria da emigração para a Europa e para o litoral. Existe ainda o domínio do Primário e da ruralidade, como se pode vislumbrar no ponto dez. 10. Economia. Profissões Através do Recenseamento Eleitoral de 1944, observa-se que a economia assenta no sector Primário, já que 67% dos recenseados trabalha na agricultura(3). Os sectores Secundário e Terciário possuem números semelhantes entre si, 14% e 19%, respectivamente. Se se ultrapassar a diferente designação, saberse- á que os jornaleiros constituem 68% do sector Primário da economia do Concelho e 46% do total dos recenseados. É claro que há neste grupo social vários matizes. Do que nada possui para além da roupa que lhe cobre o corpo e a sua imensa prole, ao que possui 250 m2 de horta, uma cabra, um jumento e um casinha, vai toda uma pleiade de variedades. Haverá mesmo aquele jornaleiro que possui um bom pedaço de terra e até meia dúzia de cabras e ovelhas que ocupam a mulher e os filhos jovens e ele só faz alguns meses à jorna. Em todos, de igual, o trabalho diário por conta de outrem a dominar as suas vidas e os orçamentos familiares. Uma prova clara do predomínio do trabalho assalariado nos campos raianos e mesmo a sua proletarização. 55 Se entendermos lavrador como o que trabalha exclusivamente para si e nas suas terras (ou arrendadas), o pequeno número destes lavradores radicalizará a sociedade agrícola-rural em dois grupos: proprietários e jornaleiros. No Rosmaninhal, Medelim e Idanha-a-Velha, o sector Primário só tem proprietários e jornaleiros. Em São Miguel de Acha, apenas um grupo de 29 pastores impede uma igual afirmação; contudo, aqui tudo parece indicar que estes pastores são assalaridos e não donos. Os assalariados agrícolas constituem um grupo, do total dos recenseados, que vai desde o mínimo, que é 37% - Alcafozes e Oledo - até ao máximo, que é 54% e pertence a Monsanto. Para além do predomínio do sector Primário é pois visível a proletarização do Concelho a par da influência dos empregos nas forças militarizadas - 5% do total dos recenseados. Não há indústria no Concelho de Idanha-a-Nova, apenas oficinas. Não há operários, apenas artífices. Se concluirmos isto da análise do sector Secundário, o Terciário fala do predomínio das viúvas domésticas, dos comerciantes e dos guardas republicanos e guardas fiscais, reformados ou em serviço. 11. Nota Final De tudo o que ficou dito, poderá permanecer a ideia que os nossos pais e avós viviam mal, pobremente, esfomeados, sem divertimentos, sem sorrisos, sem vestuário e sem espaço. Enfim. tempos infelizes. É vulgar tal pensar e afirmar, seja da parte de estudiosos, seja da parte dos avós, seja da parte dos netos. Pensar que os nossos avós eram infelizes porque não tinham o que nós temos hoje - hipers cheios de tudo o que é bom, auto-estradas, discotecas...- é o mesmo que pensar que Cristóvão Colombo era infeliz porque não tinha automóvel ou não viajava de Concorde. Não se olhe para este universo com olhos de miserabilismo. Ao contrário, este viver deve encher-nos de espanto. Dando provas de uma secular e eficaz gestão do lar, conseguiram viver nestas limitações. Uma diferente gestão de riqueza, espaço e tempo hoje já (quase) incompreensíveis. * Professor de História do Ensino Secundário. Investigador do EDS - Instituto para o Estudo e Divulgação Sociológica, UNL Notas 1- C.M. Cipolla, História Económica da População Mundial, p. 82 2 Dcf. António M.R. Carvalho, «População do Concelho de Idanha-a-Nova (1860-1910)», pp. 32-34 3 Portugal possui a maior percentagem de população activa trabalhando na agricultura na Europa Ocidental, a par da Grécia que tem 48%. Dcf. C.M.Cipolla, Opos Cit. p. 29 12. Fontes e Bibliografia Fontes Informantes O número de pessoas com quem falámos ao longo de todos estes anos é de tal forma longo que se torna impossível aqui individualizar. Fontes Escritas Livro do Posto de Despiolhagem e Desinfecção de Penha Garcia, Monfortinho, Salvaterra da Extremo e São Miguel de Acha, 1941 Recenseamento Eleitoral do Concelho de Idanhaa- Nova, 1944 56 Bibliografia CARVALHO, António Maria Romeiro, Introdução e Explosão do Capitalismo nos Campos de Idanha-a- Nova a partir da Memória dos Vivos, Dissertação de Mestrado, U N.L.. 1993. pp. 143 Idem, «População do Concelho de Idanha-a-Nova (1860-1910)», Cadernos de Cultura, n° 5, Castelo Branco, 1992. pp. 32-34 CIPOLLA, Carlo M., História Económica da População Mundial, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977, pp. 143 ESTEVES, Maria Helena Geraldes. «O Trajo Popular ». Trabalho Dactilografado, Idanha-a-Nova, 1993, pp. 13 NAZARETH, J. Manuel. O Envelhecimento da População Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1979, pp. 239 ROMAO, Maria Edite Caldeira, «Alimentação». Trabalho Dactilografado, Idanha-a-Nova. 1993. pp. 14. 57 O FIO DE LÂQUESIS...NAS PALAVRAS DOS POETAS por Maria de Lurdes Gouveia da Costa Barata* “ ... a fraqueza dos meninos, a impetuosidade dos jovens, a gravidade da idade viril e a maturidade da velhice têm qualquer coisa de natural, que deve ser recolhida no seu tempo”. Marco Túlio Cícero Dizem que as fiandeiras da vida eram cruéis e nem os deuses podiam intervir no seu trabalho: Cloto segura a roca, presidindo ao nascimento do homem; Lâquesis desenrola o fio, fazendo girar o fuso e Átropos corta-o. É esta terceira Parca que mais afronta os homens... O ser humano, porém, aproveita o girar do fuso de Lâquesis e assume o seu destino nesse durante, na esperança, sempre, dum longo fio desenrolado... Ninguém é poupado do corte de Atropos (e Parca, do latim parcere - poupar...). Se foram geradas por Zeus e Témis (que encarna a justiça), outra genealogia as dá como filhas da Noite, filhas de Aqueronte... Durante o desenrolar do fio se passam as Idades do homem. A ponta do começo tem a atracção do que é novo, com vigor de crescimento: a graciosidade da infância, um cais sempre evocado pelos poetas: “Branco, branco e orvalhado, / o tempo das crianças e dos álamos.” (Eugénio de Andrade, Da Memória, Coração do Dia); um tempo de olhar inviolado, tempo de gritos das crianças que “exaustas fixam mais e mais remoto / esse mar nunca mais atravessado.” (António Salvado, Infância, OCorpo do Coração); são “as lições da infância / desaprendidas na idade madura.” (Drummond de Andrade, Obra Poética, 2° vol.), ideia reiterada em PEDAGOGIA Brinca enquanto souberes! Tudo o que é bom e belo Se desaprende... A vida compra e vende A perdição. Alheado e feliz, Brinca no mundo da imaginação, Que nenhum outro mundo contradiz! Brinca instintivamente Como um bicho! Fura os olhos do tempo, E à volta do seu pasmo alvar De cabra-cega tonta, A saltar e a correr, Desafronta O adulto que hás-de ser! Miguel Torga (Coimbra, 16 de Março de 1960), Antologia Poética Furar os olhos do tempo, porque é no tempo que tudo se volatiliza... ideia que Torga também guarda num verso doutro poema: “ Tempo - definição da angústia!”, uma angústia de que só se vai progressivamente tomando consciência à medida que Lâquesis maneja o precioso fuso. No entanto, quem não se lembra dos longos dias da meninice, que nunca mais acabavam, do tempo-para-tudo, do passar lento do tempo? A novidade e descoberta da vida, das coisas da Natureza, das coisas dos homens. O olhar virgem e demorado sobre as coisas... Daí que o poeta seja comparado às crianças por nunca perder esse olhar especial. A vida enche-se de maravilhamento que inunda a alma. (É evidente que falamos num plano genérico, sem referir o drama dos homens que nunca foram meninos, como diz Soeiro Pereira Gomes na introdução do livro Esteiros, porque há crianças para quem a vida se revela exigindo-lhes de imediato forças de homens). Depois vem o tempo do arrebatamento adolescente, (...) corpos recém-chegados dos ombros da noite, Vós, braços transparentes dos deuses, atravessais como raios de sol o coração dos sonhos! (...) filhos trémulos de sóis, vossos lábios com gosto de angústia, lábios totais, pássaros elásticos do calor dourado dos beijos, povoais uma festa perfeita, a rápida festa absoluta de viajantes suspensos sobre a Morte. Vós, os de risos esbanjando as flautas 58 dos instantes, intermináveis irmãos das grandes coisas sem sentido, concluindo os deuses inevitáveis do eterno! Victor Matos e Sã, Horizonte dos Dias. com pujança de sonhos e de ideais no espanto de descoberta do seu todo - corpo e alma - consciência de identificação dum corpo que o fará completar a participação plena no mistério da vida. Nos muros adolescentes apareciam na cal iniciações sagradas, riscos, traços, curvas, sóis estreitos de Vénus - toda a geometria suja dos alfabetos obscenos. Sinais que nos guiavam de muro em muro para os lençóis de lama secreta nas catacumbas. José Gomes Ferreira, Obra Poética Completa, 3º vol.. O adolescente torna-se crítico, agressivo perante uma sociedade que não tem espaço para a realização dos seus sonhos, culpabilizando os da sua espécie, os outros homens, que não a souberam construir à medida da aproximação, pelo menos, dum ideal. É tempo de rebeldia, de alma inteira, amando com plenitude, sem entraves, recusando, com recusas radicais. O tempo sempre a correr... e, num ápice, a responsabilidade de ter crescido - a profissão, o emprego, o querer construir o seu mundo familiar. Na nossa sociedade começa cedo o travo do tempo que vai definindo a angústia da dificuldade do futuro, que o jovem vê com a desilusão antecipada de ter de competir cada vez mais. Vem a idade madura, a manifestação da pujança física e intelectual, a consciência da realidade, que em nada corresponde aos sonhos de adolescente. O aspecto material começa a pesar, e tanto, em alguns casos, que se escamoteiam os prazeres da fruição da vida por si própria. O prazer de viver, saboreando-o lentamente. Todavia, o Tempo não perdoa: “Tudo é calmo e leve / como o teu olhar... / Uma ave breve / atravessa o ar... / (...) Já não sei quem sou. / Adorote, sabes? / No meu amor cabes / e... A ave? - Passou. (António Salvado, ANTOlogia). Cada vez mais, a luta incessante - o homem, um Sísifo, carregando continuadamente a pedra até ao cimo do monte, para rebolar de novo e de novo recomeçar... Tremendo castigo dos deuses! Mas é aí que se assume a dignidade de ser homem: aceitar essa luta, não desanimando para não desmerecer - destino na terra depois do Paraíso perdido, que Torga defende dever procurar-se aqui e agora. Toda a sua obra o documenta. Eis um momento: CANTILENA DA PEDRA Sem musa que me inspire, Canto como um pedreiro Que, de forma singela, Embala a sua pedra pela serra fora... Upa! que lá vai ela! Upa! que vai agora! A pedra penitente que eu arrasto Tem o tamanho de uma vida humana. E só nesta toada a movimento, Embora o salmo já me saia rouco. Upa! meu sofrimento! Upa! que falta pouco... Miguel Torga (30 de Julho de 1968), Antologia Poética O homem assume, por opção e liberdade, um caminho que vai traçando. Nos desiludidos sonhos, ainda a esperança e a capacidade de edificar: (...) No dentro da incerteza a construção se mostra edificada enquanto adormecemos à beira do regato seco ou bebemos na aridez dos sonhos destruídos a directriz traçada pela primeira alegria - quando os dedos aprendiam a tocar as coisas simples. as coisas ternas da infância, a refazer pequenos barcos azuis sulcando o mar da esperança... Pensar nos sons agudos dessa presença apagada. recolher na palma da mão os frutos do-já-ter-sido, é caminhar até ao impossível, clarificar a solidão... (...) António Salvado, Recôndito (do livro homónimo) À medida que Lâquesis vai desenrolando o fio da vida, mais cada ser humano se agarra a ele num amor inesgotável. Viver é a certeza palpável, viver é dom misterioso que uma outra certeza perturba: a certeza da morte, que faz despertar o homem absurdo, que ainda ama a vida aspirada num hausto de sensações. Mas nessa idade madura, a força vital é a força da Natureza: Senhor, deitou-se a meu lado E cheirava a maçã como no dia Em que o primeiro pecado Furava a terra e nascia. Era preciso lutar, 59 Cuspir-lhe o corpo, que vi E era como um pomar!... Senhor, eu então comi. Miguel Torga, Relato (Coimbra, 27 de Fevereiro de 1939), Ant. Poética E os poetas são amantes da vida: É o amor que me inspira. Amo a vida, esta bela prostituta. Esta mulher tão pura e dissoluta No mesmo instante, Que não dá tréguas a nenhum amante. (...) Miguel Torga, Ditirambo (Coimbra, 25 /06/1958), Ant. Poét. Por isso, o mesmo poeta reitera este amor no Madrigal dos cinquenta anos (18 de Julho de 1957, Coimbra): Com as mesmas palavras do passado, Digo que te desejo, vida! E como um namorado Que desmede a paixão, já desmedida, Prometo Ser-te fiel sem esperança. Fiel à consciente Temeridade De amar intensamente Sem mocidade... No homem renasce continuamente aquele Ícaro que queria chegar ao céu, mesmo com asas de cera, que o calor do sol iria derreter e precipitar no mar... O sol dos sonhos queima, mas a tentativa é válida. E no homem há sempre asas de Ícaro, substitutas de outras asas já derretidas... Mas o Tempo espreita cada minuto da sua espera: ESPERA Aguardo as minhas mãos, aguardo enfim a forma desejada na espera longa permitida e tão sonhada, tão sonhada. Quebro o meu ser no fogo em que ardo, em cinza eterna a minha vida se desfaz!... Que frio sustém no entanto a longínqua hora para que eu me perca no tempo que me parece haver lá fora? Ah! Tempo que o tempo retém sem permitir que chegue o Tempo! António Salvado, Recôndito. É a crueldade do tempo sádica e masoquista em simultâneo: faz sofrer pela agressão concreta do gosto do efémero e provoca a dor de cada ser por ser o próprio culpado do sofrimento, quando constata, tardiamente, que foi abdicando e adiando. O adiado nunca mais é vivido com a força dum certo tempo marcado no fio de Lâquesis: Constrói com as tuas mãos o dia de hoje que amanhã veloz o tempo não será igual à força do momento agora... (...) António Salvado, Difícil Passagem, p.51. Uma contínua aprendizagem do homem se concretiza no seu viver, uma aprendizagem tanto mais formativa, quanto mais ele tem consciência das suas quedas, quanto mais corajoso for, não desistindo da luta, afirmando-se com autenticidade. Porque viver é estar desperto e atento. “Quanto mais profundamente se dorme, mais estremunhado se acorda com a realidade. Ninguém vive indefinidamente entre parêntesis” (Miguel Torga, Diário XV, p.95). O homem colhe da plenitude de ser e de se afirmar na pertinácia de não desistir nunca da vida. Porém... subtilmente, o corpo começa a dar o sinal duma espécie de juro pago na totalidade da entrega: VÉNUS ENVELHECIDA Arrefeceu a cor dos teus cabelos. O tempo tudo apaga e desfigura... Que palha triga, sensual, madura, O loiro resplendor que rememoro! Chove ou sou eu que choro Desiludido? Como era quente o oiro da seara! Ah, deusa sem tiara, Mito desvanecido! Miguel Torga (Miramar, 16 de Agosto de 1963), Ant. Poét., numa angústia, mesmo Pesadelo, como diz Raúl de Andrade: “Coisa estranha como a cor / Arrancada duma tela, / A alma absorta na dor / De não ter corpo p’ra ela (Pontos de Vista - Poemas). Aquela consciência de que Átropos está sempre atenta ao fio, para o cortar, torna-se incisiva e acutilante. Muitos homens apercebem-se sempre da sua sombra. Têm mais mérito na teimosia da sua luta. Porque é lógico a presença da morte gerar o homem absurdo. Mas o coração e a alma têm a lógica da sua força: teimar na esperança de cada instante, poética da vida, no sussurro do carpe diem... A sociedade, exigente de produção material à vista, estipulou que o homem tem uma terceira idade e tornou necessário reformar o homem. Estipulou-se a velhice como uma doença... “ Não há nenhuma doença chamada envelhecimento, como não há nenhuma 60 chamada adolescência. A velhice é uma invenção do homem” (Almerindo Lessa, Público Magazine, 22/08/ 1993). Porém, a verdade é que a seguir a um período mais ou menos longo de maturidade, há um processo desfavorável, de perda, constatado em todos os homens, com maior ou menor relevo. Diego Diaz cita Henry de Montherland, que afirma: “Sempre se diz que a borboleta saiu de uma lagarta; no homem, é a borboleta que se converte em lagarta”. A angústia instilada por Cronos torna-se cada vez mais pungente, porque há uma aproximação da morte - há a certeza da sombra de Átropos debruçada sobre o fio, atenta e agoirenta. Sabemos que muitos jovens e homens em plenitude de vida são colhidos pela morte. Inesperada. Mas agora é tempo de a pressentir. Só que muitos não se entregam a esse pressentimento, afrontando-o com a alegria do próprio viver: saborear, tocar, aspirar, ver e ouvir... mesmo que tenha de se encostar o ouvido para distinguir sussurros... um murmúrio de futuro, uma ressonância de passado cheio de vozes que povoam a memória. Se há momentos de desânimo, como CILÍCIO São tristes estes dias de velhice. O sol já não aquece, Nenhum sonho apetece, Os versos desfalecem ao nascer. Mas há não sei que sádico prazer, Que infernal sedução, Numa melancolia assim desamparada. É como ter razão Numa causa perdida, mal julgada. Miguel Torga (Coimbra, 11 de Novembro de 1982), Ant. Poét., há também sádico prazer, infernal sedução, que é a sedução da vida. É esta que faz a PRESCRIÇÃO Deixa passar as horas Sem as contar. Alheia a cada instante, Vive, a viver a vida, a eternidade. Feliz é quem não sabe A própria idade E em nenhum ano pode envelhecer. Dura encantada na realidade. Negar o tempo é o modo de o vencer. Miguel Torga (Coimbra, 30 de Junho de 1983), Antologia Poética Um estado de espírito se insere na mensagem do poeta e é este estado uma condição da capacidade de amar - uma “sobrevivência da vida intelectual a par da fragilidade somática”, como dizia Freud, seguido, na mesma ideia, por Almerindo Lessa: “a idade cronológica (...) não tem nada a ver com a idade biológica, ninguém tem os anos do bilhete de identidade”. Diz-nos Florbela Espanca (Pior Velhice, Sonetos): Sou velha e triste. Nunca o alvorecer Dum riso são andou na minha boca! Gritando que me acudam, em voz rouca, Eu, náufraga da Vida, ando a morrer! (...) E dizem que sou nova... A mocidade Estará só, então, na nossa idade, Ou está em nós e em nosso peito mora?! Tenho a pior velhice, a que é mais triste, Aquela onde nem sequer existe Lembrança de ter sido nova... outrora... Muitas estatísticas têm também demonstrado que os seres humanos com trabalho intelectual conseguem maior longevidade. Este prolongamento da vida é procura contínua do homem em elixires, como demanda de Graal, em tentativas de cientistas, como Sérgio Voronoff e os seus transplantes de glândulas de macacos, de que havemos notícia de algum êxito, mas que hoje deixa a dúvida de ser germe do pesadelo SIDA - uma carga demasiado pesada para conseguir a juventude que a Natureza não quer preservar. Nos nossos dedos tem corrido o fio de Lâquesis, o fio anónimo dum qualquer ser humano, conferindo as medidas das Idades. Agora a tremura do fio quase no fim... Digo tremura, porque esta fase pode apresentar-se-nos triste, com um travor de solidão e amargura, numa época que deveria ser a da serenidade e a da paz, não a dum tempo em que se traduz a velha história dos filhos que levam o pai, o velho, para a montanha, deixando-lhe somente uma manta para se cobrir no espaço da morte. Decerto viria breve com o abandono e a solidão. Mas é esse espaço que vem até nós no correr dos dias: IDOSOS QUE NINGUÉM QUER ENTREGUES À SOLIDÃO (Jornal de Notícias, 5 de Março de 1994); IDOSOS REJEITAM CENTRO DE DIA (Diário de Notícias, 9/10/94), e crónicas, alertas daqueles que têm maior consciência da mesma-condição-um-dia, como, por exemplo, Maria Judite de Carvalho: “ Ei-los que esperam ao sol. Esperam o quê, quem? Estão sentados, vegetais com raízes no dia de ontem, esquecidos de quem são, de quem foram - foram-no há tanto tempo! - e com frio. Desconhecem este mundo em que subsistem e que os ignora. Desconhecem palavras como gerontologia 61 e reciclagem, inúteis, pesados aos filhos e mais ainda às noras e aos genros. Pesos mortos que têm de ser alimentados, vestidos, alojados, suportados. E há quem julgue que tem lugar no céu só porque os alimenta, os veste, os aloja, os suporta.(...) Esperam portanto ao sol, quando há sol. Se chove têm a parede em frente, ou o écran em frente, ou ainda o transistor ou um jornal lido, esquecido, lido de novo. Há quanto tempo os reformou a vida? Sem ordenado por inteiro, naturalmente. Sem nenhum ordenado tantas vezes. Pô-los de parte, só isso. São os velhos, os imprestáveis. Uma espécie de disposables deste mundo que cada vez venera menos os velhos”. VELHOS, O Homem no Arame. A última estrofe de O Guardador de Rebanhos (Alberto Caeiro, Fernando Pessoa) teima numa jura de amor à vida, renovada em cada instante: “É talvez o último dia da minha vida. / Saudei o Sol levantando a mão direita, / Mas não o saudei, dizendolhe adeus, / Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada”. São ainda os velhos da cidade de Lisboa, que pode traduzir outra cidade qualquer, que falam nas palavras do poeta Alexandre O’Neill: Em suma: somos os velhos. cheios de cuspo e conselhos. velhos que ninguém atura a não ser a literatura e outros velhos. (Os novos afirmam-se por maus modos com os velhos). Senectude é tempo não é virtude... Decorativos? Talvez... Mas por dentro “era uma vez...” (...) (Tomai lá do O’Neill) Como em Velhos / 4, o poeta nos fala de Azeredo, representativo de muitos outros Azeredos, um outro sem nome - “Pouco a pouco arrumaram-no - é a vida! - / “num trabalho muito mais consentâneo / com as suas possibilidades actuais.” Que é o não-trabalho. É este pôr de lado que transforma o homemconsiderado- um-velho num marginalizado, sentindo o sabor acre da inutilidade. Alguns (e sobretudo os que tiveram uma vida intelectual intensa, que neste transe os alimenta) sabem defender-se e protestar e ocupar o seu lugar na vida até ao fim. Constata-se a produtividade e criatividade de grandes homens na considerada terceira idade: recordemos Sófocles, Platão, Cícero, Kant, Goethe, Cervantes, Verdi, Stravinsky, Miguel Ângelo, Ticiano, Goya, entre outros. Como diz Cícero, “os grandes empreendimentos não se levam a cabo por meio da força ou da velocidade ou da agilidade do corpo, mas sim pela sabedoria, pela autoridade e pelos bons conselhos”. Outros homens há: os que sentem a tortura de se sentir a mais, de serem desprezados e esquecidos, de apenas ouvirem palavra-grito: “veja o que está a fazer!; Olhe que suja tudo!; Eu não aguento com este trabalho!” e sei lá que mais... Nos humanos Bichos de Torga, é um cão, Nero, que exprime a aflição de estar velho e às portas da morte: “Que para chegar à miséria presente, antes tivesse morrido também. Ao menos, deixava saudades. Assim, acabava de velhice, podre por dentro, a meter fastio a toda a gente. (...) Agora lia nos olhos de todos o desejo de que partisse o mais depressa possível (...)”. Os homens consideram outros homens na terceira idade, esquecendo que o tempo é cavalo louco que também os vai derrubar, esquecendo que esses que consideram velhos poderiam ser socialmente produtivos (já que os seus negócios são sempre números..) com actividades menos duradoiras (e a ideia não é minha), proporcionando continuidade da sua integração e colhendo frutos do saber de experiência feito e da autoridade decorrente. Mas o que acontece? No final da vida, o homem sente-se despojo - da família, da sociedade, dos outros homens. Um extremo de horror pode ler-se em O beco onde mora o rei Lear, de Eça de Queirós (Farsas, Prosas Bárbaras). Alberoni diz que o reconhecimento está sempre presente na moral e esta não existe sem amor, não lhe bastando a razão que a sustentava em Kant. Se os Centros de Dia e os Lares de Terceira Idade cumprem prestimosa e prestigiosa missão, quando equipados, não com luxos materiais, mas com seres humanos preparados e capazes de dar amor, são ainda insuficientes qualitativamente (para além da insuficiência do seu número): nunca passarão dum meio, que terá de completar-se com a presença assídua dos que povoaram o coração do homem velho: os familiares, os amigos, os que amou. Um mundo perturbadoramente desumanizado nos envolve: tentáculos dum polvo quotidiano, de corridas, de máquinas, de competição selvática. E o que é preciso é ter tempo para o amor. Furar os olhos do tempo (como diz Torga), se necessário. Mas também é preciso este necessário, que passa por uma educação. Nuno Grande dizia no Jornal de Notícias (6/03 /94) que “os povos que não respeitam os velhos destroem a respectiva identidade, porque não reconhecem a própria memória” e que “é imperativo voltar a colocar os idosos na cúpula da família portuguesa”. Um pouco por toda a Europa se debate este problema. Sem pretender demagogia, refiro um texto dum poster da Multinova, divulgado há alguns anos: 62 PENSAM... MAS NÃO DIZEM Felizes os que respeitam as minhas mãos enrugadas e os meus pés deformados. Felizes os que falam comigo, apesar dos meus ouvidos já não entenderem bem as suas palavras. Felizes os que compreendem que os meus olhos começam a não ver e as minhas ideias a ficarem baralhadas. Felizes os que, com um sorriso, perdem tempo a conversar comigo. Felizes os que nunca me dizem: “É já a terceira vez que me conta essa história”. Felizes os que me ajudam a lembrar coisas de antigamente. Felizes os que dizem que gostam de mim e que ainda presto para alguma coisa. Felizes aqueles que me ajudam a viver os últimos dias da minha vida. Lâquesis cansou-se deste fio... Átropos impiedosa corta. Os homens estremecem. É ACONTECIMENTO Por entre as lágrimas desceu uma palavra amarga e aflita... (Parece que um Homem morreu). António Salvado (Antologia Poética). *Professora Adjunta da Escola Superior de Educação de Castelo Branco Bibliografia ANDRADE, Carlos Drummond de, Obra Poética. 2º volume. - Lisboa: Publicações Europa-América, s/ d.. Col. “Obras de Carlos Drummond de Andrade”. ANDRADE, Eugénio, Coração do Dia / Mar de Setembro. - Porto: Editora Limiar, s/d.. Col. “Obra de Eugénio de Andrade’ - 3. ANDRADE, Raúl d’, Pontos de Vista - Poemas. - Fundão: Edição do autor, 1968. CARVALHO, Maria Judite de, O Homem no Arame. (Textos publicados no Diário de Lisboa entre 1970 e 1975). - Lisboa Livraria Bertrand, 1979. CÍCERO, Marco Túlio, Da Velhice e da Amizade, Introdução, comentários, notas e tradução directa do Latim por Tassilo Orpheu Spalding. - São Paulo: Editora Cultrix. s/d.. Col. “Clássicos Cultrix”. DACOSTA, Fernando, A Velhice é uma Invenção do Homem -Entrevista a Almerindo Lessa. In: Público Magazine, n° I81, 22/03/93. DIAZ, Diego, A última Idade - A Arte de Envelhecer, Trad. 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Nos tempos antigos, a explicação mais vulgar para as pestilências - que, em boa verdade, o homem de hoje ainda tem uma certa relutância em abandonar - era a de que elas eram uma manifestação do desagrado dos deuses ou, segundo uma fórmula mais do nosso tempo, o castigo divino dos nossos pecados. Na Ilíada de Homero a epidemia que grassou entre as forças que cercavam Tróia foi atribuída à ira de Apolo contra Agamémnon. Mais recentemente em 1832 e aquando de uma epidemia de cólera na Irlanda, Samuel Hopkins Adams relata-nos que a opinião, durante algum tempo aceite, era a de que a cólera atacava os pecadores e os inúteis e todos aqueles que tinham feito mau uso das suas vidas. Preparando esta comunicação, e ao pensar naquilo que seria comum a algumas doenças infecciosas, concluí que é efectivamente esta vertente culpabitizante e pecaminosa: a Sida é (foi) claramente relacionada com comportamentos de risco, nomeadamente da área da sexualidade. O mesmo se passa com as Hepatites... “Os flúidos sexuais são perigosos e potencialmente contaminantes”... A tuberculose sempre esteve associada no imaginário das pessoas, ao desregramento, à noite, ao excesso e não tenho dúvida que a ideia prevalecente ainda hoje é a de que as pessoas “fizeram por isso e só têm o que merecem”... Em relação à Sida e até há pouco tempo, a maioria dos cidadãos, “os bons”, via na doença a confirmação dos seus preconceitos acerca dos aspectos morais e infamantes de uma doença tão diferente de todas as outras. «Esta doença - dizia uma senhora americana afecta homens homossexuais, drogados, haitianos e hemofílicos e, graças a Deus, ainda não se propagou aos seres humanos. Se ela atacasse toda a gente seria uma crise terrível». E acrescentou: “ É Deus que pune os homossexuais”... Um outro americano declarou esperar que os cientistas encontrassem depressa um tratamento eficaz, para depois acrescentar, cinicamente, “mas não demasiado depressa”... Parece que os cientistas lhe deram ouvidos... Com efeito há doenças que parecem ter acompanhado desde sempre, como uma sombra negra, a vida sexual da humanidade. Encontram-se diversas descrições bíblicas, que não deixam margem para dúvidas quanto à existência de doenças ligadas à sexualidade já nesses tempos remotos, aventando alguns autores a hipótese de, por exemplo, a chamada “Peste de Moab poder ter sido um surto epidémico de Sífilis ou até eventualmente de Sida. o que nos parece uma hipotese fantasista. Segundo John Gwilt, vice-presidente de uma firma farmacêutica americana, a Sida ter-se-ia propagado na época de Moisés, como o comprovaria a descrição de uma epidemia do Livro dos Números. A Bíblia menciona, com efeito, uma terrível pestilência que atingiu mortalmente vários milhares de judeus por estes terem mantido relações carnais com mulheres moabitas. O nome bíblico desta doença, maggepha, designa de maneira geral uma pestilência que mata muita gente mas é perfeitamente arbitrário identificála com a Sida. Mas já que falámos na Bíblia, iria deter-me um pouco na influência da cultura judaico-cristã sobre o conceito de pecado, de culpa e mesmo de imundície que ainda hoje são associadas a algumas doenças infecciosas. O Levítico, 3° livro da Bíblia, na sua parte 15 refere-se às impurezas do homem e da mulher, às impurezas dos corrimentos e dos derramamentos seminais prescrevendo rituais de purificação e sacrifício de animais em holocausto para obter a absolvição. O 2° livro de Samuel descreve o “affair” de David e Betsabé: “entretanto aconteceu que David, levantando-se da cama, pôs-se a passear pelo terraço do seu palácio, e avistou dali uma mulher que se banhava, a qual era muito formosa... Então David enviou emissários para que lha trouxessem. Ela veio e David dormiu com ela. Ora, a mulher, depois de se purificar da sua imundície, foi para sua casa”. Ter-se-á também David purificado? O livro dos Números, parte 95, descreve-nos como Israel se estabeleceu em Sitim e, como o povo se entregou ali a excessos com as filhas de Moab... Os mortos, na sequência do flagelo então aparecido, 64 pioram em n° de 24.000. Este flagelo é muito sugestivo de Sífilis epidémica e, na civilização hebraica, estas doenças eram consideradas “imundícies da carne”, fruto da desobediência aos preceitos divinos necessitando de expiação através de oferendas e holocaustos. Assim a tradição judaico-cristã introduz o factor mais determinante contra o desregramento dos costumes, impondo um sentimento de culpabilidade. Este sentimento era desconhecido noutras civilizações, como a grega, onde a homossexualidade era relativamente bem tolerada e, as referências às doenças transmitidas pelo sexo, aparecem em diversos escritos de autores famosos como Platão, Aristóteles e Hipócrates. Nas escavações de Pompeia, foram encontrados preservativos feitos de bexiga ou intestinos de animais domésticos. Lembro que a utilização do preservativo é incompatível, ainda hoje, com as orientações oficiais da Igreja Católica... Em várias obras de medicina da China antiga, encontram-se descriçôes inconfundíveis de doenças ligadas ao sexo. Durante a Idade Média estas foram consideradas “doenças vergonhosas” castigo de Deus pela cedência às tentações do “demónio da carne”. Inspiravam medo e motivavam especulações irracionais, fruto do obscurantismo cultural e religioso da época. Muitas pessoas acabaram nas fogueiras da Inquisição! Mas falemos um pouco da Lepra. Conhecida desde remota antiguidade na Babilónia, Egipto, Israel, Índia e China, frequente na Europa, especialmente nas regiões orientais, a lepra conheceu “um extraordinário incremento” nos séculos XII e XIII. Segundo Tavares de Sousa, o ocidente Europeu viuse a braços com epidemias “e consequência de contágio no Oriente das populações deslocadas por motivo das Cruzadas”. Horror, repulsa e um profundo sentimento de vulnerabilidade tornaram a doença um símbolo de impureza espiritual e carnal, que segundo Tavares de Sousa “complicou singularmente o reconhecimento da entidade nosológica específica, já de si difícil, e foi a origem de inúmeros erros e de tremendas injustiças.” Conscientes de se tratar de uma doença que se propagava por contágio directo, pessoal, a lepra inspirava atitudes extremas de segregação, uma espécie de “morte civil”, como lhe chamava Tavares de Sousa, que incluía, entre outras formas de segregação, a obrigatoriedade dos doentes (ou tidos como tal!!!) usarem vestimentas identificadoras da sua condição de leprosos, a interdição de falar com outros sem estarem virados contra o vento, de entrar em igrejas e chegar-se a multidões. Para assegurar completo ostracismo, encurralaram os lazarinos em leprosarias e gafarias, que diz Tavares de Sousa “se contavam em milhares na Europa Ocidental” ao tempo da Expansão. Igualmente graves foram as consequências da intervenção eclesiástica no “diagnóstico” de casos de lepra, cuja declaração carecia da sua apreciação até finais do século XIV, quando se começou a privilegiar a opinião dos médicos e cirurgiões. Aparentemente, eram frequentes os erros de diagnóstico, e muitos parecem ter sido os casos de doentes (cuja enfermidade nada tinha a ver com o bacilo de Ilassen) condenados a vadiar pelas florestas, pedindo esmola de terra em terra. Por outro lado, o exército de lázaros que se acumulavam pelas estradas da Europa no Século XIII, representavam simultaneamente uma enorme e dispersa bolsa de seres humanos debilitados pela fome, desarmados pela falta de higiene. Não admira, por isso, que os relatos e indícios estatísticos sugiram o desaparecimento progressivo da epidemia após a devastadora “peste de 1348”: estavam todos mortos ou tão enfraquecidos que era mero preciosismo incluílos nos censos populacionais. Tal como Tavares de Sousa escreveu “infelizmente, declínio não significa extinção”. Situação semelhante à vivida hoje com a Sida, foi a da eclosão da epidemia de Sífilis na Europa Ocidental, a partir dos finais do Século XV e Século XVI e que provocou grande alarme nas populações, dado o carácter particularmente agressivo, desfigurante e muitas vezes letal que assumia esta “nova” doença. Mas tal não impedia os soldados de continuarem a terem relações sexuais nos locais por onde passavam, quer durante as guerras, quer depois de desmobilizados. Não poupou nenhuma classe social, o próprio papa Júlio II parece ter sido atingido. Curiosamente era de bom tom, na sociedade masculina, já ter tido uma ou outra doença venérea, sinónimo de aventura clandestina e sucesso junto do “belo sexo”; exibia-se esse facto como se se tratasse de cicatriz dum duelo bem sucedido. Mas a gabarolice dos “D. Juan” e “Casanovas” deu lugar a um prudente silêncio à medida que os avanços da ciência punham a nú as terríveis sequelas que podiam resultar dessas doenças. Durante o Século XIX e primeira metade do Século XX o epíteto siflítico era um estigma tão temível como o da lepra e do cancro ou da tísica (tuberculose). Em Portugal há provas da existência de uma enfermaria para siflíticos (casa das boucas) já em 1504, no Hospital de Todos os Santos, que era na altura um dos melhores da Europa. Vários intelectuais famosos foram vítimas da sífilis, como por exemplo Guy de Maupassant e Friedrich Nietzsche. Provavelmente de sífilis morreu também Erasmo de Roterdão, chegando alguns autores actuais a referir que terá sido a mais antiga vítima de Sida. Morto em 1556 com 69 anos de idade. Erasmo sofreu na parte final da vida de febre com recaídas, de diarreias, de 65 poliarterite nodosa, de tumefacções da pele e de uma linfadenopatia generalizada. Certos indícios, fazem supor que seria homossexual. Viajava muito e sãolhe atribuídas numerosas ligações amorosas. Mas os seus ossos, exumados em Basileia em 1930 e que se supõe serem os seus, mostram marcas de sífilis. Aliás, entre a Sida e a Sífilis existem semelhanças curiosas. A sífilis apareceu bruscamente em 1494 no exército de Carlos VIII que guerreava em Itália, e foi chamada “mal de Nápoles” pelos franceses e “mal francês” pelos italianos, espelhando a tendência enraizada para encarar os estrangeiros como portadores de doenças insólitas. Sífilis vem Syphilus, “o que gosta de porcos”, e Syphilus era pastor. O nome foi-lhe atribuído pela inspiração poética de Girolamo Fracastoro. Há paralelismos curiosos entre a expansão da sífilis no início dos tempos modernos e a epidemia actual de Sida: a transmissão pelo acto sexual, a passarem do germe da mãe ao fecto, as implicações morais, o impacte sobre os costumes, o encerramento dos banhos públicos e dos locais ditos de deboche, as reacções de rejeição social e mesmo, em certa medida, a gravidade do mal. Também à semelhança da Sida o principal foco difusor parece ter sido Hispanhola, a actual ilha do Haiti. Durante a segunda metade do século XIX e o princípio do século XX a T.P. esteve em expansão em Portugal e em 1930 chegou a constituir 10% de todos os casos de morte. O primeiro estabelecimento de luta contra a tuberculose para internamento de doentes em Portugal foi fundado no Funchal em 1869 pela imperatriz D Maria Amélia, viúva de D. Pedro IV com a designação de “Hospício da Princesa D. Amélia”, em memória da filha, ali falecida de tuberculose. Em 1898, iniciou-se a luta organizada contra a doença pela criação da Assistência Nacional aos Tuberculosos e da Liga Nacional Contra a Tuberculose, que se completavam num programa de conjunto, de criação de estabelecimentos de diagnóstico e acompanhamento (dispensários) e de internamento (sanatórios), bem como de recolha de fundos para tratamento dos doentes Foi sua promotora a Rainha D. Amélia com o apoio do marido, o Rei D Carlos, e a assessoria técnica do médico D. António de Lencastre. Por iniciativa do médico Sousa Martins é construído na Serra da Estrela um pavilhão para internamento de doentes com 54 camas e a Assistência Nacional aos Tuberculosos, inaugurou no Outão, o seu primeiro sanatório marítimo com 36 camas em 1901, que é seguido de um segundo sanatório marítimo em Carcavelos, e de muitos outros. Em 1901 é inaugurado o primeiro dispensário antituberculoso em Lisboa e são inauguradas várias colónias de férias para crianças pobres em vários pontos do país, assim como novos dispensários são instalados. Assim a erradicação da tuberculose é na prática um facto consumado em algumas populações e isto antes mesmo do aparecimento dos tuberculostáticos. Isto foi possível à custa de medidas conjuntas de Saúde Pública e não de tratamento medicamentoso: através de higiene pessoal e familiar, alimentação equilibrada, disciplina de comportamento, diagnóstico precoce tratamento por isolamento na fase infectante, vigilância de cada caso e repouso - por terem considerado a T. P. uma doença ou praga social, em que o contágio era o factor de maior risco, a evitar por todos os meios. A luta na prevenção da tuberculose deu resultados eficazes mesmo antes da medicação moderna. O mesmo pudessemos dizer em relação aos flagelos que nos afligem hoje... * Médico Psiquiátrico Bibliografia - História da Sida - Mirk Grunek - O Combate Sexual da Juventude - Wilhelm Reich. - História da Saúde e dos Serviços de Saúde em Portugal, F. A. Gonçalves Ferreira. - Medicina Preventiva e Saúde Pública, Sartwell e Maxcy-Rosenau. - Amor e Sexualidade no Ocidente - VV.AA. - A mulher e o prazer - Gilbert Tordjman - Sexologia em Portugal, VV.AA. - A Medicina nos Descobrimentos. 66 AS IDADES DO HOMEM - VIAGEM NO TEMPO E NA MEMÓRIA por Ribeiro Farinha* Numa recente visita à aldeia onde nasci - Figueira, a 4 Km de Sobreira Formosa procurei dar ao meu filho Tiago que me acompanhava, uma ideia do que fora a minha infância ali, sem Rádio nem T. V., tão diferente da sua na grande cidade, marcada pelos grandes avanços da Ciência, da Arte e da Tecnologia. Pedra a pedra, rua a rua, casa a casa, fomos percorrendo o espaço mágico da minha meninice. E, pela minha cabeça, desfilavam acontecimentos com eco de pessoas com quem partilhei jogos, aventuras e cumplicidades, habitantes das casas hoje silenciosas que, há algumas décadas, fervilhavam de vida. Era uma vida comunitária assente, sobretudo, na Agricultura. Os trabalhos sazonais eram, quase sempre, partilhados pelos vizinhos mais chegados numa interajuda que se estendia às famílias atingidas por fatalidades. Lembro-me, por exemplo, da tristeza que entrava nas casas onde faltava a “salgadeira” e os “enchidos”, porque a peste levara o porco e afectara a economia doméstica. Nestes casos, os que podiam, partilhavam com os atingidos, algum toucinho e “enchidos”. E, se chovia de repente e havia grão na eira ou pasto a secar as pessoas disponíveis saíam correndo das suas casas, acudindo onde era necessário. Nos tempos da guerra a vida ali era muito dificil: não havia trabalho e o pão escasseava. Valiam às famílias numerosas os produtos da horta e alguns litros de cereal e de azeite ou alguma peça de roupa usada, oferecidos por vizinhos mais remediados e sensíveis a estas carências, a mostrar que a solidariedade não era palavra vã. Para além disto, a “malta” nova tinha sempre a possibilidade de colher fruta aqui e ali, mesmo correndo o risco de fugir à frente do dono ou de ter os cães à perna, a lamber-lhes os calcanhares. Como quem viaja no tempo ao sabor das recordações, deixando de parte cronologias e estatísticas aqui, lembro a minha terra, nesta simples crónica de aldeia em que evoco um tempo outro tão distante já, pelas transformações que para bem ou para mal, os últimos anos trouxeram. Passo um pouco ao lado de “As Idades do Homem”, tema que será, seguramenle, bem tratado pelos ilustres mestres das Ciências Humanas que todos os anos nos enriquecem com as suas brilhantes lições. Chega-se à Figueira por uma via estreita que se bifurca à entrada e a contorna em forma de laço. Ao longo desta rua envolvente dispôem-se as casas ainda habitadas que, com outras mais recentes nos extremos da povoação, compôem os pouco mais de duas dezenas de moradores actuais. Mantém a traça original de estreitas e angulosas quelhas convergindo no Forno Comunitário ainda utilizado - Coração que teima em bater em corpo debilitado. Mas o miolo da aldeia é um espaço em ruínas, parado no tempo, já com honras de visitas turísticas. Os balcões de pedra, envelhecidos mas solenes, que levavam ao andar nobre da habitação dão, agora, para buracos negros que foram portas e janelas; as boas casas de outrora com anexos, arrecadações, adega e tear, com marcas de várias gerações, “ninhos” de ranchadas de filhos, estão abandonadas ou servem de palheiro ou curral aos animais que o povo ainda vai criando. Das antigas famílias restam alguns vestígios. Os mais velhos têm vindo a desaparecer, proles inteiras emigraram... ficaram os que não sabiam ler e os remediados que, por falta de espírito de aventura, não quiseram deixar o “Ninho”, ficaram com os pais e por ali constituíram família. Um apelo interior faz-me recuar 50 anos. Como se sonhasse, repito gestos, repiso caminhos abertos por meus pais e avós onde por vezes me perdia nas deambulacões iniciáticas. Pelos atalhos da emoção deixo a memória planar até poisar nos lugares que guardam as marcas esbatidas dos meus primeiros passos. Mergulho, assim, na seiva das minhas raizes, naquela comunidade exemplar que ia passando, de pais para filhos, os seus saberes empíricos, tão importantes na minha aprendizagem, especialmente 67 nas relações Homem/ Natureza/Bicho, no conhecimento dos efeitos dos ciclos das estações nas lides do campo, nos tempos para sementeiras, enxertias, etc.. Com homens que não sabiam ler nos livros mas “liam” com alguma precisão, nas estrelas e no Pôr-do-Sol a previsão metereológica, os jovens aprendiam a amar a Natureza... Neste regresso imaginado às origens “entro” na aldeia, de novo, a arredondar caminhos, a juntar as pedras e a alinhar os madeiros para levantar o pórtico e reordenar o espaço íntimo. Depois de acamar as telhas e fechar a cúpula é só atear o fogo na lareira-fumeiro e repousar em paz ao som reconfortante do crepitar da fogueira ... Mas a azáfama continua no meu espírito: regar a horta, apanhar os frutos, recolher a lenha e preparar o forno para cozer o pão. Ir ao pipo pelo vinho e, em seguida, estender a toalha, servir os manjares e partilhar o pão e o vinho - frutos retribuídos a quem com amor trabalha a terra. É bom lembrar, hoje, o prazer de chapinhar os pés na água fresca das ‘’levadas” da rega, o paladar da fruta colhida da árvore e a novidade das primeiras cerejas e dos figos lampos; o sabor quente do pão a saír do forno, o reacender dos maranhos na cozedura em dias de festa e a fartura das iguarias, em tempos de carência, na semana da “matança” ou em dias de boda; e, enquanto se esperava pelas filhoses do Natal, vivia-se o ritual da abertura do pipo e da prova do vinho novo pelo S. Martinho, acompanhado de magustos, no aconchego das adegas. Lembro com nostalgia os cantares na lavra das sementeiras, nas desfolhadas, na apanha da azeitona, com os ranchos a competirem alegremente; os bailaricos ao som do harmónio e da gaita de beiços e os namoricos furtivos a cada esquina; a curiosidade a espreitar a cópola dos bichos e os mais atrevidos a tentar surpreender as moças no rio, nos banhos de S.João; as festas primaveris, misto de práticas religiosas ancestrais com ritos pagãos, ligadas à floração dos campos e às colheitas: rapazes e raparigas, enfeitados com cordões de flores, colocavam nas portadas das casas ramos de oliveira, espigas e papoilas e cantavavam, de rua em rua, o “Vito-Maio” aos moços, “Vito-Maio” às cachopas, uma malguinha de castanhas, vou pedir por essas portas “Vito-Maio”, Maio, Maio ...etc... Por altura dos Reis, grupos de rapazes iam pelas aldeias vizinhas, ao compasso da concertina e de lanterna na mão, a cantar as “Janeiras” e recolher dádivas, geralmente produtos da lavra dos ofertantes para, com o produto da venda, mandar rezar missas pelas Almas... A “semana gorda” era de festa para a garotada: uns iam pelas casas, mascarados, a pedir dinheiro e doces, a que muitos habitantes correspondiam na mira de identificar os incógnitos visitantes; outros, ao cair da noite, atiravam de surpresa e com estrondo para dentro das casas, as “Caqueiradas” do Carnaval, a que se seguia a fuga, pé descalço a “dar à sola”, pelas quelhas alcatifadas de mato. Depois, na quaresma, “serrava-se a Velha”, com latas e chocalhos, à porta das mulheres idosas da terra. Umas corriam-nos à pedrada e à vassourada; outras regalavam-nos com figos secos e castanhas, com votos de que voltássemos no ano seguinte. A noite de S. João era de festa, até altas horas, em volta da fogueira, no monte em frente à aldeia. A seguir à quaresma começávamos a juntar grandes quantidades de lenha e pinheiros desbastados nas redondezas. Os maiores, arrastados por juntas de bois, eram fixados em círculo, nos buracos abertos no chão, para sustentar o recheio formando, assim, um cilindro compacto de lenha ressequida. Ao atear-se o fogo, as labaredas pareciam atingir o céu e obrigavam toda a gente a recuar com exclamações, numa mistura de alegria e de temor! Um dos períodos mais marcantes da minha infância foi o tempo da escola, apesar das dificuldades dessa época. Da Figueira para a vila, por entre pinheiros e hortas, os alunos da primária - dezenas, nessa altura e apenas uma menina, se não erro, este ano - animavam os caminhos jogando ao eixo, à bilharda, à malha e à bola. Quando disponível esperava-nos à saída o bonacheirão do Padre António, já idoso, que não perdia ocasião de se misturar com as crianças. De regresso a casa orientava as nossa brincadeiras e inventava jogos para nos e se entreter. Todos os anos comprava piões aos rapazes, pequenas lembranças às meninas e rebuçados a todos. Ainda existe na Figueira, na casa da sua família, a pequena capela onde celebrava missa aos Domingos e, nos intervalos das leituras, nos ensinava a Doutrina. O Padre António Laia era um homem bom que, longe dos olhares da família, ajudava os mais pobres e não cobrava dinheiro pelas missas que celebrava. Aqui fica a minha homenagem. Dos tempos da Primária lembro as andanças pelos campos à procura de ninhos e a armar abuises aos tordos e às rolas e as manhãs pelas hortas a montar armadilhas aos taralhões ... mas o que não posso deixar de evocar é a “Festa do Galo” pelo Carnaval que, como outras práticas da nossa cultura popular se perdeu, por estas paragens. Organizada pelos alunos com ajuda dos pais, consistia na angariação de fundos para comprar os galos a oferecer aos mestres. Em cada classe, um grupo de trabalho esmerava-se a enfeitar a preceito os andores com bandeiras, flores e serpentinas e, um pouco em segredo, adquirir os galos mais vistosos. No dia da festa os andores engalanados, carregados pelos alunos e seguidos pelo séquito, desfilavam à volta da escola com vivas aos professores. Percorriam as ruas da vila cantando quadras alusivas ao evento, recebiam uma chuva de confeitos das janelas e faziam 68 o julgamento do galo: “Este galo é o mais lindo, que aqui vai neste caminho, é para o Sr. professor, que nos ensina com carinho”; “Este galo meu senhor, tem as penas de galinha, é para o meu professor que já está carequinha”; “Este galo é ladrão, foi ao Vale do Serrão, comeu pinhos e melões, fez perca de sete tostões, nós vamos ao juiz, carregados de correntes, nosso mestre come galo, nós ficamos bem contentes”, etc., etc... Não havia TV mas a “malta” divertia-se. Aos domingos, quando tudo abalava para a missa e às compras na vila, a aldeia era da miudagem. Um dia, na ausência do dono, trouxemos para um recinto aberto, fora do curral, um enorme carneiro que tinhamos ensinado a marrar. Foi uma tourada, ou melhor, uma carneirada, onde não faltaram cabeças partidas... Também não faltaram reprimendas e valentes tareias da parte de alguns pais... Tantas histórias! Tantas que não cabem neste relato... Em certas ocasiões ajudava o pastor Talaça na recolha do rebanho ou na assistência a reses com partos dificeis. Sempre que podia, iludindo a vigilância do pastor ou, quando bem disposto, com a sua cumplicidade, mamava o leite das tetas como um autêntico cabrito... Era assim, cheia de peripécias, a vida na aldeia dos anos trinta e quarenta. Um dia, para apanhar um lindo sardão que se escondera nas pedras do muro de uma horta, destrui a parede até chegar ao réptil que dominei pelo pescoço. Atei-lhe um fio a uma pata e, ufano, andei a exibi-lo na aldeia até que o “Pirolito”, rafeiro reguila, o matou com uma patada. O choque foi tremendo e era ver o “Pirolito”, a partir dali, a fugir mal me avistava, adiando a tareia e eu a fugir do dono porque, como retaliação, pendurei o lagarto na aldraba da porta de sua casa e a tia Maria, ao voltar da fonte com o “asado” à cabeça, ia morrendo de susto, partiu o cântaro e ficou encharcada... Durante tempos alerta e pé ligeiro foi preciso o “Ti Manel” me tranquilisar, de longe, para não fugir... Fizemos as pazes e ele ofereceu-me figos secos para comemorar. Pelos meus 13/14 anos tive direito a entrar no círculo dos serões do forno, onde a malta miúda era corrida à canholada, mediante suborno com “cigarros feitos”. Era preciso cair nas graças dos “mandões”, respeitados contadores de histórias. E os maços de tabaco, naquela altura, eram um luxo. Além da função principal o forno era a praça, o jornal, ponto de encontro onde o Cabo de Ordem, ao som do búzio, tocava a reunir para resolver problemas de interesse comunitário. Área coberta, ao fundo a boca do forno, uma cantareira lateral e um grande balcão de pedra para as masseiras e os tabuleiros e a servir de assento, ao serão. Tem ainda, na parede principal, uma tábua graduada com furos onde, por ordem de chegada, se coloca uma tabuleta a marcar a vez para cozer o pão. Pelo calor que irradiava o “forno” era o local privilegiado para os serões das longas noites de Inverno. Que saudades das histórias intermináveis onde o real e o fantástico se casavam com a maior das naturalidades! Salvé Bernardino Coxo (ainda vivo)! Salvé João Folga (já falecido)! (O meu Bem-Haja a tantos outros que, em versões livres e aumentadas de contos infantis e fábulas que mais tarde viria a conhecer, animaram aquele cantinho! Também se falava ali, com menor interesse por parte dos atentos ouvintes, do tempo, das lides campestres, das actividades profissionais, dos “artistas”: pedreiros e carpinteiros por exemplo. A atenção redobrava quando os mais velhos e experientes contavam as suas proezas da tropa, as conquistas amorosas e todo o tipo de aventuras da ceifa no Alentejo, das caçadas, muito exageradas por parte dos mais fanfarrões. As misteriosas e estranhas histórias a falar de mundos longínquos e maravilhosos apontavam “saídas” possíveis e cómodas para interrogações sem resposta e para a compreensão de fenómenos que não conseguia entender... Ouvindo-as, o meu pensamento transpunha fronteiras desconhecidas, elevava-se planando nas alturas como que a tentar ultrapassar a exiguidade do lugar e a pequenez dos horizontes. Para mim, o mundo parecia acabar onde o céu tocava os pinheiros dos montes em volta. Levitava pelo reino do sonho sem distinguir, muitas vezes, a realidade da fantasia. Mesmo hoje, à distância, muitas das minhas lembranças contém fragmentos que não sei já muito bem se os vivi ou se apenas os sonhei... Haverá certamente alguma relação entre os meus “vôos” impossíveis pelos reinos da fantasia, a mania que tinha de subir às árvores mais altas e aos telhados para ver as coisas lá de cima... e a minha adoração por escadas e aves. O planar dos milhafres lá no alto, pairando ao sabor das variações do ar, deixavam-me extasiado a contemplar aquela maravilhosa dança, frustrado por também querer voar e não ter asas!.. As aventuras daqueles tempos viviam muito do “desenrascanço” já que, na falta de recursos técnicos para vencer dificuldades a necessidade lá ia aguçando o engenho. E, na falta de assistência médica as pessoas recorriam, muitas vezes, a práticas ancestrais com marcas muito profundas, ainda hoje, na nossa região, que vão da simples utilização de ervas medicinais, tisanas, papas de linhaça e outros produtos naturais, aos rituais onde se cruzam as mesinhas com rezas e benzeduras. Assisti, vezes sem conta, pelas quelhas da aldeia, entre o martelar compassado dos teares e celebrados pelas mesmas mãos que criavam maravilhas a partir do linho e da estopa, aos exorcismos contra o mau olhado e cobranto, por exemplo. Muitos dos jogos tradicionais em que então se participava já só os conhecemos por ouvir falar ou pela generosidade esforçada de alguns que teimam 69 em não deixar morrer a cultura popular. Não quero deixar de apontar o exemplo da Dra. Assunção Vilhena que, com “A Flor do Feto Real” e “Gentes da Beira Baixa” (em vias de ser publicado) dá um importante contributo nesse sentido no que respeita, sobretudo, ao Concelho de Proença-a-Nova. Devo terminar, que vai longa esta “Romagem de Saudade”. Embora não fosse fácil, esforcei-me por omitir acontecimentos trágicos que, ciclicamente, abalavam a terra, e os dramas familiares que, em maior ou menor grau, marcaram negativamente alguns dos habitantes. As mortes a semear orfandades, a doença a atirar para a penúria famílias numerosas, as rixas por partilhas ou divisão de águas, a falta de pão, etc. - coisas tristes da vida que eram e continuam a ser, comuns às sociedades humanas..., mas, porventura terão tido ali menor expressão do que em outras localidades o que me levou a exaltar os aspectos mais positivos... * Artista Plástico 70 1- Dentro de uma coordenada de interdisciplinaridade, marca dominante do espírito que define a realização das Jornadas de Estudo “Medicina na Beira Interior - da préhistória ao séc. XX”, decorreu a apresentação de 21 comunicações que, em conteúdo variado, desenvolveram os temas escolhidos para este ano: 1 - Amato Lusitano na História do Renascimento Europeu; 2 - As Idades do Homem. 2 - Como consequência imediata, verificou-se um saliente enriquecimento relativamente ao leque de Ciências Humanas, materializado nas múltiplas achegas constatadas e que, sem dúvida, ajudaram à formulação de princípios que melhor caracterizam a existência do homem desta região, no decurso dos tempos. 3 - Ficou salientado que, embora a matéria essencial de estudo tenha como referente a realidade antropológica da Beira Interior, um alargamento geográfico que permita uma relação com o exterior, como aconteceu nestas Jornadas, poderá constituir também motivo de enriquecimento no que se refere a variadíssimos aspectos do trabalho de investigação. Sirvam como exemplos as comunicações que versaram pura temática da história da medicina portuguesa ou conteúdos de âmbito mais geral que se formalizaram em processos operatórios da Psiquiatria, da Literatura, da Mitologia, do Memorialismo... 4 - Congratularam-se os presentes com o significado de um trabalho preparatório que conduziu ao estabelecimento de relações com a Sociedade Portuguesa de História da Medicina e de Filosofia Médica (SPHMFM) e a Sociedade da História da Medicina Portuguesa (SHMP), representadas nestas VI Jornadas, pelos seus presidentes, respectivamente Professor Doutor Nuno Grande e Doutor A. Fortes Espinheira. Todo um programa de colaboração irá ser intensificado. 5 - A exemplo de Jornadas anteriores, também agora foi evidenciado o interesse em que seja levada a efeito a edição de obras de grandes vultos do passado que, escritas em latim, não permitem uma recepção alargada por parte dos investigadores. Fruto palpável deste propósito será a oportuna edição do “Index Dioscoridis” de Amato Lusitano, cuja versão se encontra ultimada devido ao labor do Doutor Firmino Crespo, e para cuja apresentação pública contribuirá a SPHMFM. 6 - Embora sem confirmação oficial, parece estar para breve, por parte da Câmara Municipal de Castelo Branco, a implantação de um horto com as plantas medicinais usadas por Amato Lusitano, tornando-se assim realidade o teor de uma proposta surgida em Jornadas anteriores. Notícia que despertou nos participantes visível júbilo. 7 - As VII Jornadas de Estudo “Medicina na Beira Interior - da pré-história ao séc. XX” foram marcadas para os dias 10 e 11 de Novembro de 1995. Os temas escolhidos serão: 1 - A Mulher na obra de Amato Lusitano; 2 - A Mulher da Beira Interior nas suas relações com a Medicina. Escola Superior de Educação de Castelo Branco, Dias 11 e 12 de Novembro de 1994. VI JORNADAS DE ESTUDO 71 COPYRIGHT AUTOR DO TEXTO

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