sexta-feira, 4 de maio de 2012

PALÁCIO DO CATETE

Arquitetura, imaginário e poder no Palácio do Barão de Nova Friburgo Renata Reinhoefer Ferreira França [1] FRANÇA, Renata Reinhoefer Ferreira. Arquitetura, imaginário e poder no Palácio do Barão de Nova Friburgo. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 1, jan. 2008. Disponível em: . * * * No ano de 1854, Antonio Clemente Pinto, rico fazendeiro da região de Cantagalo e Campos, no Rio de Janeiro, recebe do Imperador o título de Barão de Nova Friburgo pelos serviços prestados à região norte fluminense. Em 1858, compra a casa de número 159 da Rua do Catete e um terreno de fundos que vai até o número 18-A da Praia do Flamengo [2] e encomenda ao arquiteto alemão Carl Friedrich Gustav Waehneldt (1830-1873) a construção de sua nova residência. O projeto do Palácio do Barão de Nova Friburgo [Figura 1] é apresentado na Exposição Geral da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1862, ficando com medalha de prata. Traz influência da arquitetura italiana, mais precisamente dos palácios urbanos de Florença do final do século XV e dos palácios à beira do Grande Canal de Veneza.O prédio é concluído em 1867, mas o Barão muda-se para lá em 1 de julho de 1866, ainda em obras de acabamento. Nossos objetos de estudo são duas salas localizadas no segundo andar, mais conhecido como Piano Nobile (Piso Nobre) [Figura 2] , cuja diversidade de estilos e divisão dos espaços por funções específicas - características da arquitetura oitocentista – são notórias. Grandes janelas abrem-se para a rua do Catete dando a ver os Salões Pompeano, Nobre e Azul. O Salão Nobre é dedicado aos bailes, e sua posição estrategicamente central na fachada, permite aos transeuntes, tais como Santos [3], entrever as festas reafirmando, em toda sua pompa, a importância e riqueza de seu dono. Já não lhe bastava o que era. A casa de Botafogo[4], posto que bela, não era um palácio, e depois, não estava exposta como aqui no Catete, passagem obrigatória de toda a gente, que olharia para as grandes janelas, as grandes portas, as grandes águias no alto, de asas abertas. Quem viesse pelo lado do mar, veria as costas do palácio, os jardins e os lagos... Oh, gozo infinito! Santos imaginava os bronzes, mármores, luzes, flores, danças, carruagens, músicas, ceias...Tudo isso foi pensado depressa, porque a vitória, embora não corresse (os cavalos tinham ordens para moderar a andadura), todavia, não atrasava as rodas para que os sonhos de Santos acabassem (MACHADO DE ASSIS, 1998b: 48-49). Além do Salão Nobre, Santos poderia ver o Azul e o Pompeano. O Salão Azul, situado entre este e a Capela, marca a transição entre o sagrado e o profano, e o Pompeano é utilizado pelas mulheres depois do jantar. Como oposição significativa, escolhemos o Salão Mourisco [Figura 3] para dialogar com o Pompeano [Figura 4] já que ambos seriam de apoio ou transição e utilizados depois do jantar - o primeiro pelos homens e o segundo pelas mulheres (PROURB, Interior: Estética e Função : 2o pavimento). Suas respectivas decorações são relacionadas a atividades íntimas e não de intensa participação social. Esse tipo de especialização dos salões por funções e esquemas decorativos é um artifício usado pela burguesia da época para fazer saltar aos olhos de quem lá fosse o seu poder social em consolidação, bem como seu polimento cultural e mentalidade progressista, legitimando sua “nobreza”. O Salão Mourisco O tema do Salão Mourisco, com arabescos em estuque nas paredes e teto, é muito difundido no século XIX, dada a conquista da Argélia pela França. É um espaço destinado aos prazeres do fumo e dos jogos. Alencastro (ALENCASTRO, 1997: p.60-62) nota que fumar vira moda na Regência e no Segundo Reinado, tido como um gesto público de sociabilidade. Fuma-se o charuto e não o cachimbo, preferido pelos europeus. Essa diferença deve-se ao fato de muitos negros brasileiros também terem o hábito de fumar cachimbos, costume ancestral africano. O fumo relaciona-se ao nacionalismo brasileiro - em A Moreninha de Joaquim Manuel de Macedo, Carolina recomenda a seu namorado que não fume charutos cubanos, e sim brasileiros, como atitude de patriotismo - além da fabricação de charutos ser uma importante atividade econômica da época. Quanto aos jogos, o divertimento dos homens de sociedade compreende a prática do voltarete, do xadrez, do gamão e do whist, enquanto os mais moços praticam o jogo da palhinha (SCHWARCS, 1998: p.111). No que tange à relação entre um salão de fumar e jogos e os motivos orientalistas, Edward Said (SAID, 1996: p.197) pontua que, para os escritores do século XIX, como Flaubert, existe uma associação quase uniforme entre o Oriente e o sexo. Para os europeus da época o Oriente simboliza ao mesmo tempo uma promessa e uma certa ameaça sexual, de sensualidade latente. Flaubert, em seus romances, associa o Oriente ao escapismo da fantasia sexual, seus personagens anseiam por coisas que não têm em suas entediantes e reprimidas vidas burguesas, deixam-se levar por sonhos de liberdade sexual licenciosa associados a idéias de “haréns, princesas, príncipes, escravos, véus, rapazes e moças que dançam, sorvetes, unguentos e coisas do gênero” (SAID, 1996: p.197). O Oriente do devaneio oitocentista é o lugar do proibido, imagem fixada por alguns autores que viajam ou simplesmente imaginam o Oriente à época. Nesse período circulam teorias sobre bases biológicas da desigualdade, que pregam uma validade científica para a divisão de raças em atrasadas e avançadas, onde raças incivilizadas deveriam ser submetidas, - tudo isso tem relação direta com o conceito de Oriente para os europeus. Outras idéias essenciais sobre o Oriente (SAID, 1996: p.212) dizem respeito ao que consideram que seja o seu atraso, sua mentalidade aberrante, sua tendência ao despotismo, seus hábitos de imprecisão, sua excentricidade, sua separação geográfica, sua apática maleabilidade e sua feminina penetrabilidade. Essa última, a feminina penetrabilidade, nos permite fazer alguns desdobramentos. Um deles seria a penetrabilidade do feminino no homem. O homem oitocentista tem um protocolo rígido de comportamento a seguir. Tem de ser austero, comedido e racional. Qualquer devanear é questão feminina. É possível pensar que, quando esses homens se unem em uma sala onde se permitem devanear, incorporam uma atitude eminentemente feminina. É interessante notar que, quando ocorre a ocupação do Palácio pelo governo público, em 1897, momento em que já não há a encenação e a frivolidade ornamentada da corte, o excesso decorativo do Salão Mourisco passa a causar constrangimentos na elite do Governo: “O ar pitoresco da sala limitava sua utilização em ocasiões solenes” (MUSEU DA REPÚBLICA, 1994: p.40). Em sua decoração vê-se a representação de algumas figuras em trajes exóticos, outras envoltas em véus, provavelmente traçando uma ponte facilitadora às imagens dos devaneios a partir de uma realidade sugerida. Todo o clima da sala, seus arabescos nas paredes em azul, vermelho e dourado, com suas formas sinuosas e as figuras representadas, levariam o freqüentador, já envolto na fumaça dos charutos e outros vícios relaxantes, a viajar em seu mundo imaginário. Talvez, naquele canto, as pessoas fossem remetidas aos locais das histórias exóticas contadas sobre o Oriente, o que as lembraria da “predestinação inevitável” dos poderosos e avançados, e da necessidade real de se pontuar as diferenças, sempre. Afinal, em fins do século XIX a questão do imperialismo é debatida tanto pelos pró-imperialistas como pelos anti-imperialistas usando a tipologia binária das raças, culturas e sociedades avançadas e atrasadas. Nada melhor do que um Salão Mourisco para rememorar, clarificar e sacramentar esses conceitos. O espaço de que estamos tratando é exclusivamente destinado aos homens. Quem fuma são os homens e a eles cabem os devaneios de poder. Mais uma vez podemos ver pontos de contato entre a função da sala e seu motivo decorativo: o Oriente está ligado a elementos da sociedade ocidental tais como delinqüentes, loucos, mulheres e pobres - os excluídos -, que têm em comum a conotação de problemas a serem resolvidos, conquistados e submetidos, confinados. Aparece outro desdobramento da feminina penetrabilidade: a visão do Ocidente como o masculino e do Oriente como feminino. O Oriente deveria ser submetido, enquadrado e penetrado pelo Ocidente. É possível supor então que o caráter masculino desse espaço esteja em ser destinado aos conquistadores, aos selecionados, que gostam de ser relembrados disso. Quantas sensações a arquitetura e decoração não proporcionariam àqueles homens unidos em uma sala, num canto só seu do Palácio, onde a representação os estimularia a sentir todo esse poder? O contágio do espaço. A poética do espaço. Indo para além das situações vividas, descobrindo as sonhadas. O devaneio fica mais real quando cercado pelo espaço que o enfatiza: “A representação de uma casa não permite que um sonhador fique indiferente por muito tempo” (BACHELARD, 1996: p.64), diz Bachelard. Poderiam os homens ficar indiferentes à sedução desse ambiente quando cercados, dos pés a cabeça, de convites, melhor, de convocações em acordo com suas expectativas? Não se trata de nenhuma sugestão alheia à vontade daqueles homens, desconhecida e enigmática. Eles captam sua mensagem, anseiam por ela o que potencializa a arquitetura e decoração, unindo o reconhecimento que têm de si mesmos à imaginação, formando um elo poderoso. Ao sonhador não é permitido ficar muito tempo indiferente à representação de uma casa. Ele é arrebatado, o espaço se desdobra e, sob o olhar estarrecido, abrem-se as portas do universo, transportando-os para outros lugares e tempos, lugares existentes na memória e no desejo. A localização do salão também carrega uma relação com o masculino. Seu posicionamento na casa, voltado para o fundo com vista para a propriedade, para os jardins e para a rua Silveira Martins, caracteriza sua posição de controle. Reservados e protegidos, vêem mais do que são vistos, podem espreitar a rua a uma certa distância e vigiar suas posses de perto, além de revelar aos outros homens que dividem a sala toda a extensão da propriedade. É um canto situado entre grandes salões: o Veneziano, destinado às conversas e visitas, e o de Banquetes, dos jantares grandiosos. Bachelard diz que “o canto é um refúgio que nos assegura um primeiro valor do ser: a imobilidade” (BACHELARD, 1996: p.146). O nosso canto analisado, não traz ele essas características de refúgio? Os aspectos de meia caixa: metade porta, metade parede, não portam a dialética do interior e exterior? Não seria ali o refúgio do masculino: pelo tratamento das imagens, evocativas de uma outra realidade, pelas características inebriantes de cortina de fumaça e vícios permissivos, por seu posicionamento na casa, por sua situação de canto, por suas dimensões acolhedoras e não aquelas opressivas dos grandes salões? O Salão Mourisco não intimida, convida. É difícil pensar a arquitetura e a decoração surtindo o mesmo efeito se o salão tivesse as dimensões ou o posicionamento do Salão de Banquetes, por exemplo. Parece-nos ser mesmo uma proposta de canto, de imobilidade, onde se poderia deliciar um bom charuto com seus iguais, contrapondo-se às exigências das conversas formais da sala de visitas, e aos ainda teatrais jantares com suas profusões de pratos, louças, etiquetas e protocolos. Um canto é um espaço reduzido onde gostamos de encolher-nos, onde nos recolhemos em nós mesmos, uma solidão. Ele fala à intimidade até por suas portas, que, se fechadas, não comprometem o trânsito entre aposentos da casa, já que se pode passar do Salão de Banquetes ao Amarelo (Veneziano) por outra via. É a certeza da imobilidade. Não há com o que se preocupar. Se alguém estiver em seu interior, definitivamente não estará em uma passagem, masem um canto só seu. Como na reportagem “A Vida Elegante”: “[...] o seu magnífico salão mourisco, onde é tão doce, à luz enternecida, repousar do brilho dos outros salões” (ALMEIDA, 1994: p.29). Há ali uma restrição de espaço: aproxima-se de uma caixa, de um exterior protegido, e talvez por isso mesmo seja o lugar do devaneio. Ora, se é onde estamos seguros, pela imobilidade, se é onde estamos recolhidos em nós mesmos, é o lugar perfeito para sonhar. Esse isolamento do vasto mundo exterior, essa proteção de esconderijo é o que propicia o ambiente favorável ao relaxamento e ao deslocamento pelo imaginário. O Salão Pompeano O Salão Pompeano tem duas portas voltadas para o Salão Nobre e uma porta de ligação com o Salão Veneziano (Amarelo). Suas janelas se abrem para as ruas Silveira Martins e Catete. A decoração apresenta mosaicos nos assoalhos e a mobília da sala é composta de sofás e tamboretes dourados com assento em estofo de couro onde se sobressai o tom vermelho. Nas paredes também é a cor vermelha que domina, com aplicação de figuras e alegorias sobre um fundo branco. Acima da altura das portas, “quatro ricas galerias com cortinas e sanefas de setim carmezim e aplicações de puro estilo Pompeano encimam as portas desta sala, iluminando a noite por focos elétricos, cujo lustre imita o mesmo estilo” [5]. Alguns qualificam o salão apenas como de apoio às festas, sem função definida, dizendo que as alusões a Pompéia nas paredes teriam uma razão ligada à época de sua feitura, em que ocorriam escavações e novas descobertas, como a do uso de cores nos monumentos clássicos. Essa descoberta, determinada pela divulgação dos achados arqueológicos de Pompéia a partir de 1817, marca as modificações nos padrões do neoclassicismo europeu e nas influências registradas nos arquitetos em formação a partir desta época, como Gustav Waehneldt. Cabe dizer que é atribuído à Baronesa da Nova Friburgo o posicionamento considerado não usual do Palácio, nas esquinas da Silveira Martins e Catete, à beira da rua, tendo um terreno imenso para trás [Figura 5]. Segundo a tradição oral isso ocorreu porque a baronesa queria apreciar o movimento da rua, já que em suas fazendas de Cantagalo e Friburgo vivia cercada de árvores e sem vista urbana. Consta que ela queria “manter contato direto com a cidade e sua vida agitada” (MATHIAS, 1965: p.33). Talvez seja um indício do motivo da escolha do posicionamento do salão das mulheres. A vida mais cosmopolita e sofisticada do Rio de Janeiro tem seu início em 1808 com a vinda da corte joanina. Os novos hábitos trazidos pelos fidalgos da corte são absorvidos pela sociedade da cidade do Rio de Janeiro, que se torna então sede do Reino de Portugal e Algarve (DINIZ, 1984: p.41). Nessa época, aumenta o número de estrangeiras na cidade, e a mulher passa a participar, ainda que com restrições, da vida da sociedade. Essa entrada se confronta com os costumes coloniais anteriores, nos quais a mulher levava uma vida de normas de comportamento rígidas, em regime de semiclausura. Essa semiclausura doméstica seria imediatamente reduzida com a chegada da corte cujos membros demandam ambientes adequados à exibição de seu luxo e requinte, e de acordo com seus hábitos europeus. D. João VI, que aprecia a música e as artes cênicas, manda vir ao Brasil diversos músicos estrangeiros e incentiva o teatro lírico. Logo o piano vira febre no Rio de Janeiro – que Araújo Porto Alegre chega a chamar de “cidade dos pianos”, em 1856 (ALENCASTRO, 1997, p. 49). Ao comprar um, as famílias inauguram seus salões, um espaço privado de sociabilidade, e dão um novo ritmo aos saraus, bailes e serões musicais. O aumento no consumo de pianos - que dão status - produz uma virada na música e na dança imperial, nos anos 1850. A sociedade se diverte muito. A mulher da época, com a ampliação de sua vida social, vai transformando seu comportamento: nos bailes e serões exercita a arte do cerimonial, do bem receber em casa e diverte-se com o canto e a dança. Surgem também novos hábitos de consumo e passeios: é moda passear à tarde, tomar chá nas cafeterias elegantes, como o Alcazar, Belle Helène e Café de la Paix (SCHWARCS, 1998: p.107) , usar vestidos requintados feitos com tecidos ingleses e modelos parisienses. As mulheres andam nas ruas de vestidos longos de saias amplas, xales de seda da Índia e chapéus pequenos com penteados feitos no disputado salão do senhor Charles Guinard e usando perfumes providenciados pela perfumaria Desmarais. O glamour da corte é completado pelas livrarias Garnier e Irmãos Laemmert. A rua do Ouvidor fornece o máximo em elegância, demandada pelo modelo masculino do Rio de Janeiro, influenciado pelos hábitos da corte. Esse modelo é o de um homem preocupado com sua própria aparência, que também desfila na rua do Ouvidor. Em “Fulano” de Machado de Assis, o protagonista, por ocasião da morte de sua mulher “dividiu a dor com o público; e se enterrou a mulher sem aparato, não deixou de lhe mandar esculpir na Itália um magnífico mausoléu, que esta cidade admirou exposto, na Rua do Ouvidor, durante perto de um mês” (MACHADO DE ASSIS, 1998a: p.150, vol.2). Nesta mesma famosa rua as damas passeiam elegantemente vestidas, entretidas por toda a sorte de vitrines. Com isso tudo, as mudanças na forma de viver das mulheres se tornam mais explícitas e, em consequência do mundanismo que invade o Rio de Janeiro, a mulher de classe alta passa a desempenhar não só o papel de dona-de-casa e mãe mas também de dama de salão. Assim, além dos aprendizados anteriores (leitura, escrita, cálculo, catecismo, costura e bordado) tem também aulas de canto, dança e conversação. A partir deste cenário, pensemos o salão Pompeano. Em meados do século, a mulher freqüenta saraus e bailes, expõe-se e admira a vida da cidade através das janelas das casas, lê romances e passeia nas ruas em lojas elegantes e cafés. É o princípio de uma nova maneira de vida, mas tudo isso dá-se por demandas da corte, o que não as libera no mundo. As mulheres figuram como ofertas da casa para o mundo exterior, não vivem o exterior livremente, apesar de todos os novos direitos adquiridos. O fato de disporem da fachada principal da casa, da vista da rua e à vista da rua, seria um privilégio ou manipulação? É apenas a forma que o homem a guarda, ainda num determinado e confinado espaço, que se modifica. John Berger adverte que a “presença social da mulher desenvolveu-se como resultado de sua habilidade em viver sob essa tutela e dentro desse espaço delimitado” (BERGER, 1999: p. 48). Para o autor, o uso e as convenções estabelecem que a presença social da mulher seja diferente daquela do homem. A presença de um homem é calcada na promessa de poder que corporifica, que pode ser “moral, físico, temperamental, econômico, social, sexual - mas seu objeto é sempre exterior ao homem”. É o que sua presença revela do que é capaz de fazer para você ou por você que conta, enquanto a presença de uma mulher exprime sua própria atitude em relação a si mesma e define o que pode o que não lhe pode ser feito. Nesse sentido, tem que fiscalizar o modo como aparece para os outros, em última instância para os homens, sendo o sucesso dessa empreitada de crucial importância para o êxito de sua vida. Os homens atuam e as mulheres aparecem. Os homens olham as mulheres. As mulheres vêem-se sendo olhadas. Isso determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres, mas ainda a relação das mulheres entre elas. O fiscal que existe dentro da mulher é masculino: a fiscalizada, feminino. Desse modo ela vira um objeto - e mais particularmente um objeto da visão: um panorama. (BERGER, 1999: p. 49) Voltemos a Santos, personagem de Machado de Assis: Ao passar pelo Palácio Nova Friburgo, levantou os olhos para ele com o desejo de costume, uma cobiça de possuí-lo, [...] Para Santos a questão era só possuí-lo, dar ali grandes festas únicas, celebradas nas gazetas, narradas na cidade entre amigos e inimigos, cheios de admiração, de rancor ou de inveja. (MACHADO DE ASSIS, 1998b: p.48-49) Os homens passam pelo palácio, erguem os olhos em sua direção “com o desejo de costume, uma cobiça de possuí-lo”. E o que vêem? Vêem os salões ligados aos prazeres do presente e suas maravilhas: grandes festas únicas e damas nas janelas. As mulheres do século XIX estão na posição de objetos de desejo, na passiva posição feminina. O homem passa em seu carro pela rua, a mulher aparece à janela, a ser contemplada. O homem é o sujeito desejante. Ativo, ele tem a mobilidade necessária. O comportamento de Santos afina-se com os discursos masculinos sobre a feminilidade, onde a mulher estaria alienada num lugar de puro desejo do Outro (KEHL, 1998: p.117). Os termos usados por Machado de Assis ao se referir ao Palácio são: desejo, cobiça de possuí-lo, grandes festas celebradas, amigos e inimigos, admiração, rancor, inveja, maravilhas, gozo infinito. A visão do palácio, “exposta como aqui no Catete, passagem obrigatória de toda a gente, que olharia para as grandes janelas, as grandes portas” que deixam tudo à mostra, à vista, mas longe do toque, estimula os transeuntes a imaginar as maravilhas de seu interior sugerido pelo que é visível do lado de fora. E o visível é o glamour dos bailes, dos saraus e festas, com sua gente bem arrumada e de modos finos, dançando e tocando o que havia de mais elegante na época; e a mulher, exposta à rua pelas grandes janelas das salas, as quais elas tinham ganho o direito de explorar, porta-se como objeto entreaberto, numa situação limite entre o velado e o exposto. A tentação que as grandes janelas e portas do Catete exercem sobre Santos funciona calcada na sugestão deste cosmos do entreaberto. Santos está no exterior. Seus olhos e imaginação seriam impelidos a entrar, convidados a vagar e descobrir uma imensidão misteriosa, da qual o resto de seu corpo jamais chegaria a participar. É exatamente o entreaberto que garantiria todo o efeito de desejo. O acesso (aos que estavam de fora) é garantido apenas a alguns, em determinados momentos. Artíficios da sedução e do poder, que é exclusivo e seletivo. Que presença impressionante não alcançaria assim, o Barão de Nova Friburgo? Bibliografia ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “Vida privada e ordem privada no Império” in História da Vida Privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. (org.) Luiz Felipe de Alencasto. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. ALMEIDA, Cícero Antonio F. Catete - Memórias de um Palácio. Rio de Janeiro, Museu da República, 1994. BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. São Paulo, Martins Fontes, 1996. BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1999. DINIZ, Edinha. Chiquinha Gonzaga. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos, 1984. KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. Rio de Janeiro, Imago, 1998. MACHADO DE ASSIS, Joaquim. Contos - Uma antologia. vols. 1 e 2. São Paulo, Companhia das Letras, 1998a. MACHADO DE ASSIS, Joaquim. Esaú e Jacó. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 1998b. MATHIAS, Herculano Gomes. “O Palácio do Catete”. Anais do Museu Histórico Nacional, v. XV. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1965. ________________________. Museu da República: Guia do Visitante. Rio de Janeiro, Museu da República, 1994. PROURB, FAU-UFRJ (professores e alunos). Um Palácio na Cidade. Internet: http://www.fau.ufrj.br/prourb/catete, “Interior: Estética e Função : 2 pavimento”. SAID, Edward W. Orientalismo - Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. SCHWARCS, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. São Paulo, Companhia das Letras,1998. -------------------------------------------------------------------------------- [1] Mestranda do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ [2] Em 1864, o Barão comprou também os prédios de número 161 e 163 da rua do Catete. [3] Santos é um personagem do romance Esaú e Jacó de Machado de Assis. [4] A Casa de Botafogo era a residência de Santos. Pela condição financeira do personagem, capitalista e diretor de um banco, percebe-se que era uma casa de alto luxo, como se lê na página 41: “Ao desembocar na Praia de Botafogo, a enseada trouxe o gosto de costume. A casa descobria-se a distância, magnífica; Santos deleitou-se de a ver, mirou-se nela, cresceu com ela, subiu por ela. A estatueta de Narciso no meio do jardim sorriu à entrada deles” [5] Retirado de material do arquivo do Museu da República - Transcrição do Jornal do Commércio de 20/02/1897. COPYRIGHT AUTOR DO TEXTO

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