domingo, 17 de junho de 2012

CONSTRUÇÃO NAVAL DO BRASIL

A CONSTRUÇÃO NAVAL NA MARINHA DE GUERRA DO BRASIL (1840-1858) Julio César Silva Góis de Paula1 Gilberto da Silva Guizelin2 José Miguel Arias Neto3 PALAVRAS-CHAVE: Construção naval; Marinha do Brasil; Embarcações mistas. A construção naval pode ser considerada a primeira modalidade industrial instalada no Brasil. Datam do final do século XVI os primeiros registros desta atividade no país.4 Contudo, apenas no século XIX, com a transferência da Família Real portuguesa e, conseqüentemente, dos principais órgãos e instituições políticas, administrativas e militares para o Brasil, é que a capacidade de fabricação dos estaleiros e arsenais que por aqui se encontravam, sobretudo o do Rio de Janeiro, seriam ampliados a fim de adequar-se aos planos de reestruturação das forças militares portuguesas.5 No decorrer da década de 1820, visto as necessidades de manutenção da unidade territorial do Império recém-independente, a organização da Marinha de Guerra Nacional e Imperial fez-se urgente. Como resultado: 1 Estudante da 3ª série do Ensino Médio do Colégio Estadual Souza Naves – Rolândia/PR; bolsista de Iniciação Científica Jr. pela Fundação Araucária. 2 Graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina, financiado com Bolsa de Iniciação Científica pelo programa de Inclusão Social da Fundação Araucária. 3 Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. Orientador e coordenador do Projeto de Pesquisa “A Formação do Estado Nacional Brasileiro e das Forças Armadas: A Marinha de Guerra do Brasil”, financiado com Bolsa de produtividade pelo CNPq; e, com Bolsa de pesquisa concedida pelo Instituto do Milênio, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pela Fundação Araucária. 4 A este respeito ver: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BOXER, Charles. O império colonial português (1415-1825). Trad. Inês Silva Duarte. Lisboa: Edições 70, 2002; LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. 5 GREENHALGH, Juvenal. O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na história (1765-1822). Rio de Janeiro: Editora a Noite, 1951, Vol. I. “A primeira esquadra foi formada pelo confisco dos navios da Armada portuguesa estacionados no Rio de Janeiro, e pela aquisição de outros. Em fins de setembro de 1822 foi lançado um ‘plano de organização da Armada’, que não passava de uma campanha de subscrição ‘popular’, que durou três anos, para aquisição de novos navios, reforma dos navios confiscados e manutenção das guarnições”.6 Tratava-se, portanto, de uma esquadra improvisada para atender as dificuldades momentâneas então enfrentadas pela instituição.7 O fato é que, desde, então, a construção naval ocupou um papel de destaque nos planos de constituição do Império brasileiro, como bem evidenciam as palavras do Ministro da Marinha em 1829, Miguel de Souza Mello e Alvim, para quem o Império do Brasil não podia: “(...) prescindir de ser uma potência essencialmente marítima, sem quebra de sua glória, de sua dignidade e de seus mais caros interesses (...) [se não] possuir atualmente uma Marinha respeitável, tanto pelo número e qualidade dos vasos que a compõe, como pela quantidade de marinheiros e soldados aguerridos, e mais do que tudo, pela benemérita corporação de oficiais de Marinha (...)”.8 Uma preocupação sucessivamente reafirmada nos relatórios dos ministros que se seguiram a Alvim. Principalmente, nos relatórios do ministro Joaquim José Rodrigues Torres, futuro visconde de Itaboraí: “(...) sem dúvida, de todos os ministros da Marinha no período regencial, (...) o mais importante. Não apenas porque deu início à implementação do programa de reformas do partido moderado mas também, porque imprimiu uma direção política que terminou por conduzir a importantes alterações na 6 ARIAS NETO, José Miguel. Em busca da cidadania: Praças da Armada Nacional (1867-1910). Tese de doutorado apresentada a Universidade de São Paulo, 2001, p. 28. 7 Entre 1823 e 1824 coube a Marinha “patriota” a tarefa de consolidar a independência do Império, travando com as forças militares portuguesas diversas campanhas navais, sobretudo, nos mares da Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará e Cisplatina. Seguida as Campanhas pela Independência, eclodiu a Confederação do Equador, em 1824, movimento separatista das províncias do nordeste. A segunda metade da década de 1820 seria ainda preenchida pela Guerra da Cisplatina travada com as Províncias Unidas do Rio do Prata entre 1825 e 1828. Ver: História Naval Brasileira. Rio de Janeiro: SDM, 2002, Vol. III. Tomo I. 8 Relatório do Exmº Senhor Conselheiro Miguel de Souza Mello e Alvim, Ministro da Marinha, apresentado à Assembléia Geral em 30 de maio de 1829. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1876. configuração da Armada Nacional ao final da Regência e início do Segundo Reinado (...)”.9 Logo, o presente trabalho, ainda em andamento, tem, pois, como objetivo abordar as transformações sofridas quanto as características e estruturas das embarcações que compunham a esquadra nacional nos primeiros anos do Segundo Reinado, marcados pela expansão econômica e pela relativa estabilidade dos interesses e da política entre as partes constituintes do império, quadro característico do processo de consolidação e centralização do Estado, implantada durante a administração saquarema e o gabinete da conciliação. Neste intuito, visamos analisar, primeiramente, os tipos de embarcações adotadas pela Marinha no referido período. Seguida a esta explanação cabe-nos refletir acerca das implicações acarretadas aos quadros de oficiais navais, tendo em vista o contraste de suas atribuições, em parte características de uma Marinha “arcaica” e, em outras, de uma Marinha “moderna”. Contudo, antes de prosseguirmos, devemos ter em mente que, o sentido de “arcaico”, aqui exposto, não deve prender-se, exclusivamente, aos modelos e materiais da fabricação de embarcações de madeira movidas a vela, mas, deve, também, compreender as vicissitudes comuns a cultura marítima praticada desde o advento das Grandes Navegações em mar aberto, iniciadas no século XV, e desenvolvidas até meados do século XIX, envolvendo uma fina sociologia entre os homens do mar e as profissões a que eram designados.10 Assim como, o sentido de “moderno” não deve se limitar as inovações tecnológicas e armamentistas trazidas a tona com a propulsão a vapor, a partir da segunda metade do século XIX, pois este reúne, também, diversos outros significados em relação a estratégia, logística e capacitação de seu pessoal.11 9 ARIAS NETO, José Miguel. Op. Cit., p. 54. 10 A este respeito ver: ELIAS, Norbert. Estudos sobre a gênese da profissão naval: Cavalheiros e Tarpaulins. In: Mana. Vol. 7, nº 1, 2001, p. 89-116; RODRIGUES, Jaime. Cultura marítima: Marinheiros e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (Séculos XVIII e XIX). Revista Brasileira de História. Vol. 19, nº 38, 1999, p. 15-53. 11 KEEGAN, John. Uma história da guerra. Trad. Pedro Maia Soares. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Encerradas as contendas que se seguiram a independência, em 1822, a verdade é que a situação do material flutuante da Marinha não era das melhores. Grande parte das embarcações empregadas necessitavam de necessários e caros reparos, sem contar que boa parte dos vasos de guerra estavam praticamente arruinados. Não por menos, em 1833, Rodrigues Torres alertava que a Armada nacional só podia contar “(...) infelizmente [com] alguns poucos [e] pequenos vasos (...) desarmados (...)”.12 O que realmente se sucedeu durante toda a regência. Acontece que, a manutenção do velho navio de madeira requeria além de tempo, dinheiro e grande número de mão-de-obra, coisas que a Marinha pouco dispunha! Apenas com o desenvolvimento da economia capitalista, na transição dos anos de 1840 para os de 1850, com a supressão do tráfico transatlântico de escravos e o (re)direcionamento dos fundos de capitais para outras atividades, como para a economia cafeeira e demais setores mercantis, é que o Estado passou a arrecadar maior renda em impostos.13 Sendo, boa parcela destes destinados à ampliação e renovação da Armada, que deveria seguir o rastro dos interesses e projetos políticos vislumbrados para o Brasil. É nesta época que a Marinha brasileira passa a incentivar a admissão de navios mistos: à vela e a vapor.14 Afinal, mesmo as novas maquinas empreendidas na construção naval demandavam elevada e constante manutenção, sem falar da necessidade de gente com anos de especialização em academias e oficinas para desempenhar tais funções, configurando nos mesmos problemas de antes, talvez um pouco mais acentuados: falta de fundos e de gente. Poderíamos, então, presumir que a escolha da Marinha brasileira pelo navio misto foi uma questão meramente financeira e estrutural? Se assim o fizermos, estaremos assumindo o discurso da obviedade, ou seja, pecando por simplificação. Segundo Gilson Rambelli, um erro muito comum entre os jovens pesquisadores e especialistas na área da arqueologia náutica e subaquática. Uma 12 Relatório do Exmº Sr. Joaquim José Rodrigues Torres, Ministro da Marinha, apresentado à Assembléia Geral em 8 de maio de 1833. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1876. 13 A respeito deste assunto, ver: ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: As Relações Econômicas Internacionais no Império. São Paulo: SENAC, 2001. 14 ARIAS NETO, José Miguel. Op. Cit., p. 74. área nova dentro das ciências humanas – pois surgiu há pouco mais de 50 anos, em 1960 – e que vem levantando importantes e detalhadas informações a respeito da construção, carregamentos, rotas e das dinâmicas sociais desenvolvidas a bordo. Resultando em estudos mais concretos e abrangentes dos aspectos que envolvem a “nave” (o instrumento), a “navegação” (a ação)15 e, porque não, como queremos crer, o “navegante” (o controlador). De tal forma, insistimos nas perguntas: Por que da escolha do navio misto? Por que não continuar, exclusivamente, com a utilização dos navios à vela ou, por que não substituir, radicalmente, o material flutuante por novos movidos a vapor? A resposta a estas indagações se encontra, certamente, no ponto de vista financeiro, mas também, no que o professor da Real Academia Militar da Inglaterra, John Keegan chama de fatores contingentes – dificuldades com os suprimentos, aprovisionamentos e equipamentos –, advindos das limitações das inovações tecnológicas desenvolvidas até então.16 Seriam, pois, as desvantagens, relacionadas a estas questões que colocaram, durante algum tempo, os responsáveis pela Marinha em posições divergentes. Ora defendendo a conservação dos velhos navios a vela que estivessem em bom estado e, com o qual já havia certa familiaridade no tocante aos reparos e ao espaço interno das embarcações; ora defendendo a substituição da esquadra por vasos mais modernos, por demonstrarem maior capacidade de auxílio e de fogo.17 A opção pela construção de navios mistos pela Marinha do Brasil, fez-se, portanto, de forma serena e racional, ponderando as vantagens e desvantagens da navegação à vela e a vapor. De tal forma, sem ceder ao entusiasmo da evolução tecnológica pelo qual passavam as principais Marinhas do mundo – a saber: a britânica, a francesa e a norteamericana – os responsáveis pela Armada nacional brasileira conseguiram conciliar as 15 RAMBELLI, Gilson. Tráfico e navios negreiros: Contribuição da arqueologia náutica e subaquática. In: Navigator: Subsídios para a história marítima do Brasil. Rio de Janeiro: SDM. Vol. 2, nº 4, dezembro de 2006, p. 59-72. 16 Conforme assinala Keegan, paradoxalmente a substituição da vela pelo vapor levou a maior dependência das belonaves em relação com a costa, uma vez que até a tardia adoção do óleo como combustível, as caldeiras das embarcações consumiam grande quantidade de carvão, que além de escasso, ocupava um espaço considerável do interior do navio, já dividido entre a tripulação, suprimentos, armamentos e a sala das máquinas. Ver KEEGAN, John. Op. Cit., p. 94-111. 17 ARIAS NETO, José Miguel. Op. Cit., p. 75.Ver também: GREENHALGH, Juvenal. O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na história (1822-1889). Rio de Janeiro: Gráficas do IBGE, 1965, Vol. II, p. 284-285. necessidades modernizadoras do poderio naval brasileiro às dificuldades financeiras e contingentes enfrentadas pela instituição. Paralelamente ao processo de renovação da esquadra naval, ocorreu a manutenção, e, porque não dizer o aprofundamento das desigualdades em relação à formação e composição do trabalhador marítimo. Assim afirmamos, uma vez que, enquanto a introdução de novas técnicas e artilharias refletiram no aprofundamento da dependência de operários estrangeiros e, da urgente necessidade em se formar especialistas nacionais para lidar com as novas estruturas da Armada; a manutenção não só das velhas estruturas físicas e dos velhos ofícios marítimos, como também, das tradicionais práticas de inscrição marítima –recrutamento forçado – buscando nas camadas humildes da população a gente necessária para compor o quadro de oficiais das Forças Armadas do Império, refletiram a política “moderada” do regime imperial: catalisando as vontades daqueles que pediam por mudanças aos anseios daqueles que resistiam a qualquer alteração que afetasse a ordem hierárquica e disciplinar da instituição.18 Deste modelo de composição do quadro de oficialato e de marinhagem, resultou um profundo contraste entre os homens e as profissões desempenhadas nos Arsenais de Marinha, principalmente, no do Rio de Janeiro, centro da política naval estimulada pelo regime. Lá se encontravam, já no fim dos anos de 1840, gente e espaços ligados às novas tecnologias formados no exterior, caso dos engenheiros e operários de graus menores, como os funileiros – responsáveis pela manutenção do motor – belgas, ingleses, franceses e alemães. Ao mesmo tempo, em que por toda parte, deparava-se com a gente humilde local, muitos deles pardos e negros, utilizados desde grumetes – responsáveis em recolher e estender as velas nas gáveas, o que, por si, revela uma função arriscada e veloz, necessária de gente de baixa estatura e magra –; carregadores – estes mais robustos e altos para subir e 18 Ver ARIAS NETO, José Miguel. Op. Cit., p. 98-127. descer os carregamentos –; a carvoeiros – responsáveis pelo abastecimento das caldeiras, prática que, certamente, cobrava saúde e juventude daqueles que as realizavam.19 As reflexões aqui expostas constituem, assim, um ensaio primário para um estudo mais aprofundado em relação à temática da construção naval que aqui propomos. Um tema recente nas discussões acadêmicas no Brasil, e, que, pouco a pouco vem enriquecendo a historiografia naval brasileira, carente de maiores atenções. Logo, repleta de lacunas a serem preenchidas. Tal qual, a relação entre o tipo de embarcação escolhida pela Armada Nacional e as perspectivas político-ideológicas traçadas para o país, pelo regime imperial. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: As Relações Econômicas Internacionais no Império. São Paulo: SENAC, 2001. ARIAS NETO, José Miguel. Em busca da cidadania: Praças da Armada Nacional (1867- 1910). Tese de doutorado apresentada a Universidade de São Paulo, 2001. BOXER, Charles. O império colonial português (1415-1825). Trad. Inês Silva Duarte. Lisboa: Edições 70, 2002. ELIAS, Norbert. Estudos sobre a gênese da profissão naval: Cavalheiros e Tarpaulins. In: Mana. Vol. 7, nº 1, 2001, p. 89-116. GREENHALGH, Juvenal. O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na história (1765- 1822). Rio de Janeiro: Editora a Noite, 1951, Vol. I. _____________. O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na história (1822-1889). Rio de Janeiro: Gráficas do IBGE, 1965, Vol. II. 19 A disposição das profissões realizadas nos arsenais e a bordo das embarcações, podem ser vistas mais claramente nas obras de Greenhalgh acerca do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, tanto no primeiro volume, onde ele se prende aos ofícios típicos da navegação à vela, quanto no segundo volume, onde ele traça a transição da substituição das práticas tradicionais da navegação à vela às inovações trazidas pela navegação a vapor. História Naval Brasileira. Rio de Janeiro: SDM, 2002, Vol. III. Tomo I. KEEGAN, John. Uma história da guerra. Trad. Pedro Maia Soares. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006. LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. RAMBELLI, Gilson. Tráfico e navios negreiros: Contribuição da arqueologia náutica e subaquática. In: Navigator: Subsídios para a história marítima do Brasil. Rio de Janeiro: SDM. Vol. 2, nº 4, dezembro de 2006, p. 59-72. RODRIGUES, Jaime. Cultura marítima: Marinheiros e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (Séculos XVIII e XIX). Revista Brasileira de História. Vol. 19, nº 38, 1999, p. 15-53. COPYRIGHT AUTOR DO TEXTO

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