sexta-feira, 8 de junho de 2012

INSTITUIÇÕES DE CULTURA NA IDADE MÉDIA

JOAQUIM DE CARVALHO E A FILOSOFIA DA CIÊNCIA EM PORTUGAL Colóquio integrado no Projeto "Delfim Santos e a Filosofia da Ciência em Portugal" Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa | 14 Set 2012 Saiba mais Página Principal Obra Fotobiografia Acervo História da Cultura » Instituições de Cultura - Período Medieval » Instituições de Cultura - Período Medieval (1ª Parte) Instituições de Cultura - Período Medieval (1ª Parte) Não pode compreender-se a vida espiritual dum povo sem o conhecimento da mensagem das diversas gerações, cuja influência, transparente ou subterrânea, é contínua, não se lhe furtando o próprio génio, que tantas vezes aparenta uma cissura em face da herança tradicional e é sempre a revelação admirável duma individualidade. Esta mensagem do passado conheceu no decurso do tempo várias formas de sedimentação e transmissão, das quais as mais estáveis e sugestivas têm sido a escola e a biblioteca. Destacando estas duas instituições do conjunto de factores, cujo dinamismo informa a vida do espírito, não as estudaremos em si, como assuntos independentes, mas na medida em que projetam alguma luz na compreensão dos aspetos e do ritmo da literatura medieval. a) INSTITUIÇÕES ESCOLARES Cada época histórica concretiza nas instituições escolares um ideal pedagógico, de formação humana, e uma conceção do valor e utilidade da ciência. A Universidade foi a expressão pedagógica da cultura medieval, que o século XIII viu nascer e Portugal rapidamente assimilou; mas já antes do seu estabelecimento existia entre nós uma organização docente. Os mais antigos rudimentos de estudos regulares foram as escolas catedrais ou episcopais, funcionando junto das sés, como a de Coimbra, fundada à volta de 1082-1086 pelo Bispo D. Paterno, e cuja existência é ainda acusada em 1192. Precursoras dos seminários, nasceram por exigências eclesiásticas, isto é, a necessidade de habilitar ordenandos, sob a direção dum prebendado, o mestre-escola, cujo magistério se limitava ao ensino da gramática e dialética (lógica). Foram as escolas elementares da nossa Idade Média, e embora rareiem os documentos não é duvidoso afirmar que se generalizaram à maioria das dioceses, mormente depois dos concílios de Latrão, de 1179 e 1215, parecendo mesmo que o clero paroquial acompanhou esta difusão, pois só assim se pode explicar a existência dos mozinhos, os modestos escolares dos clérigos. Aparentada intimamente com as escolas catedrais, existiu desde os princípios do século XII uma escola capitular, na colegiada de Guimarães, à qual D. Dinis, em 1291, concedeu novos estatutos, consignando a obrigação da colegiada manter um mestre de gramática. Dum outro tipo de organização pedagógica, mais complexo, falam os documentos: as escolas monacais, entre as quais avultam as dos mosteiros de Santa Cruz de Coimbra, e Santa Maria de Alcobaça. Estes mosteiros, cuja história é inseparável da cultura medieval lusitana, foram centros de estudos regulares, que se mantiveram até à aurora da Renascença, — em Santa Cruz, como tudo indica, desde a sua fundação, em 1132, e em Alcobaça, desde 1269, sobretudo por influência de D. Fr. Estêvão Martins. Todas estas escolas, restritas ou públicas, como as de Alcobaça, tinham um quadro de estudos idêntico, o trivium (gramática, retórica e dialética), cuja frequência se completava nalguns mosteiros com o ensino da sacra pagina e da teologia. Foi o trivium, isto é, a via tríplice para o estudo da teologia, que dominou nas escolas mais antigas. Os documentos anteriores ao século XV não aludem às matérias do quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia) e, por outro lado, os inventários bibliográficos até àquele século acusam, além das disciplinas teológicas, um predomínio do trivium. A gramática, cujo conteúdo abrangia as regras da linguagem e o que em sentido lato se pode chamar o estudo da literatura, foi a disciplina mais cultivada, fazendo-se, porventura, a aprendizagem, pelos textos de Donato, Prisciano, e Alexandre de Villedieu (Ars minor e Doctrinal). Este ténue ensino nem dissipou a ignorância — ordenavam-se sacerdotes analfabetos — nem contentou os espíritos mais exigentes. S. Frei Gil estuda em Paris; e nos fins do século XII, em 1192, Sancho I consagra e estimula esta emigração intelectual, concedendo ao mosteiro de Santa Cruz 400 morabitinos para se manterem em França os monges que lá fossem cursar. Estas escolas eram a repercussão das instituições similares da Europa; e se por elas se atingia já o nível médio do ensino medieval, a organização docente, pelo menos na sua face externa, só ficou completa com a fundação da Universidade de Lisboa, em 1 de Março de 1290. Este “estudo geral” emanou, sem dúvida, da vontade esclarecida de D. Dinis, que à sua volta encontrou o apoio decidido do alto clero, mas não foi apenas um ato de majestade, e muito menos de mera imitação. Entramos no domínio das hipóteses; porém legítimas, porque ao cultivadíssimo espírito do rei seguramente se impuseram razões de ordem geral. Em 1286, o Bispo Domingos 'ardo, preceptor, com Aymeric d'Ebrard, futuro Bispo de Coimbra, da menoridade de D. Dinis, instituiu em Lisboa o ensino da teologia, que, segundo a inflexível didática medieval, pressupunha o magistério das artes (trivium) como introdução ao estudo da sacra pagina. Havia, portanto, na capital uma população académica; e se pensarmos que o Estado, em franca desorganização, carecia de juristas e altos funcionários esclarecidos, compreende-se que o rei atenuasse as deficiências do ensino, conquistando a autonomia docente da nação e libertando os escolares dos dispendiosos estágios em Paris, Bolonha ou Montpellier, as universidades preferidas para o estudo da Teologia, do Direito e da Medicina. O estabelecimento duma Universidade impunha-se, assim, como o termo natural destas aspirações; e, efetivamente, por diploma solene de 1 de Março de 1290, o neto de Afonso o Sábio, e seu herdeiro espiritual, funda a Universidade de Lisboa, que em 9 de Agosto deste ano o papa Nicolau IV sanciona, por bula dirigida já à Universidade dos mestres e estudantes do estudo geral olisiponense. “Para funcionarem desde logo as aulas, não era difícil encontrar no reino alguns doutores e mestres, habilitados e graduados pelas grandes Universidades, afamados centros de saber humano naquela época; foram, sem dúvida, estes os contratados para o novo Estudo. Quanto a alunos apareceriam, e por certo que apareceram imediatamente ali mesmo, em Lisboa; mas o que convinha era atrair à nova instituição uma frequência abundante, chamar à mais recente das Universidades a juventude portuguesa, que até então se sujeitava a grandes incómodos e trabalhos, para ir ao estrangeiro conquistar a ciência e os graus académicos. É com este fim que D Dinis, ao mesmo tempo que publica oficialmente... a fundação da Universidade, faz também um convite amplo e geral, concedendo privilégios extraordinários aos que concorrem ao Estudo, e prometendo-lhes, em termos claros e decisivos, a real proteção”. (António de Vasconcelos). Nas escolas da incipiente Universidade, estabelecidas no bairro de Alfama, no então chamado Campo da Pedreira, desde logo se leram publicamente as artes e, das disciplinas maiores, os dois direitos, civil e canónico, e a medicina, ficando excluída, pela bula de Nicolau IV, a teologia, cujo ensino se confiava aos dominicanos e franciscanos. Só nos fins do século XIV, por bula de Gregório XI (7 de Outubro de 1377), foi possível oficialmente completar o quadro dos estudos universitários, conferindo graus em todas as disciplinas aprovadas pela Igreja. Coube à dinastia de Avis a renovação da estrutura tradicional: D. João I dá-lhe novos estatutos, o infante D. Henrique, seu “protetor”, subsidia-a e instala-a de novo, e o infante D. Pedro formula perante D. Duarte o problema da sua “emenda”, isto é, reorganização. Sob este impulso forte nem só a Universidade rejuvenesceu, senão também o ensino leigo, com as escolas elementares, particulares e municipais (Évora), e o magistério filosófico livre, como a filosofia de Raimundo Lulo (Lisboa). Até à última transferência da Universidade para Coimbra, em 1537 — e dizemos última porque a sua sede se deslocou para esta cidade por duas vezes (1308-1338, e 1354-1377) — a vida universitária é, nas suas várias modalidades, obscura e raquítica. Há sintomas denunciadores duma atividade escolar, como a fundação, em 1291, por Domingos Jardo, dum colégio ou pousada gratuita para 6 estudantes no Hospital dos St. Paulo, Elói e Clemente; mas não pode documentar-se o labor docente e só por analogia e induções se divisam vagamente os métodos de ensino e os textos adotados. “Mas, se em tamanha obscuridade pode arriscar-se alguma conjetura, persuadimo-nos que o direito romano se lia então pelo Digesto, explicado principalmente pelas glosas de Irnério e Acúrcio. O Decreto de Graciano, as decretais de Gregório IX, ou o Extra, e o Sexto, constituíam nesta época o corpus ¡uris canonici, e deviam por isso ler-se nos cursos desta faculdade. A medicina de Avicena e a filosofia aristotélica completavam, provavelmente, o ensino académico no estudo geral de Lisboa” (J. M. de Abreu). b) LIVRARIAS A ciência medieval foi uma ciência livresca, para empregar o galicismo, que a crítica de Montaigne europeizou. O mestre lia, comentava ou glosava; e o estudante decorava e exibia nas disputationes, regulamentares ou livres, a sua argúcia e subtileza na compreensão. O livro constituía assim o companheiro de lentes e escolares, e companheiro duplamente valioso, porque juntava à necessidade pedagógica o valor das coisas invulgares. Havia, naturalmente, a indústria do livro, cujas oficinas não raro aliavam aos estilos caligráficos a beleza das ilustrações; mas estes editores, empregando materiais dispendiosos, pagavam-se por altos preços, por força que só as instituições poderosas ou altas personalidades logravam organizar livraria. É, nos mosteiros e, mais tarde, quando se inicia a secularização da vida intelectual, nos paços régios, que em Portugal se documenta o labor destes escritórios medievais. Exercendo placidamente o seu meticuloso mister, “assentados à sua estante de arquibanco, rodeados de tigelas de cores, de folhas de couro, de plumas, de estiletes, de brunidores, de pincéis, de espátulas, de regrões de chumbo”, os copistas monásticos “não sabiam o que era a vaidade: se, como o mestre laubarnense Egas ou como o mestre Vasco, pintor-copista de Afonso V, punham o seu nome, e às vezes o seu retrato, nas obras que copiavam, era para que Deus os conhecesse melhor e se lembrasse deles no céu” (Júlio Dantas). Feitos por devoção ou exigências da Ordem, estes livros constituíam quase sempre património do mosteiro, enriquecendo-o sem entrarem no mercado. Nesta raridade e carestia, atenuada às vezes pela consulta pública dos catenati (livros encadeados) ou pelos empréstimos, encontrariam, decerto, os estudantes a mais excelente desculpa para as exigências paternas ou do mestre; mas com que desvanecimento falavam os felizes que os possuíam e com que saudade se enumeravam nos testamentos! O sentimento da leitura não foi, talvez, em nenhuma época, tão delicado. No Leal Conselheiro, o rei D. Duarte moraliza com ternura sobre o “ler dos bons livros e boa conversação” e seu sobrinho, o condestável D. Pedro de Portugal, mal-aventurado rei de Aragão, lança-se “en el pielago de los estoriografos e de los sabios” como lenitivo para as desditas que o torturavam “en la secreta camara de [su] pensamiento” (Tragédia de la insigne reina Doña Isabel). LIVRARIAS MONÁSTICAS Não houve um mosteiro sem livraria, mas raras ultrapassaram os meros fins litúrgicos e ascéticos. Destas exceções, as mais relevantes e de mais profunda significação na vida intelectual lusitana, foram as livrarias de Lorvão, Santa Cruz de Coimbra e Santa Maria de Alcobaça. O mosteiro de Lorvão, num vale onde a estreiteza de horizontes é um permanente convite ao recolhimento interior, foi no século XII residência de beneditinos, que laboriosa e devotamente cultivaram o serviço literário, legando-nos alguns manuscritos, hoje no Arquivo Nacional, que, como o Livro das Aves (1183), volucrário atribuído a Hugo de S. Vítor, e o chamado Apocalipse de Lorvão (1189), comentário do Beato de Liebano, são dos mais notáveis exemplares de iluminura e da pintura proto-mudejar em Portugal. Lorvão é o tipo da benemerência duma Ordem e da atividade dum convento; mas em Santa Cruz e Alcobaça descobrem-se horizontes mais dilatados. Em Santa Cruz de Coimbra (1132), famosa casa dos cónegos regrantes de Santo Agostinho, assistimos à irradiação da influência intelectual do mosteiro. A livraria já não é apenas o fruto do labor imposto pela constituição monástica, ou a satisfação duma curiosidade de espírito: é o instrumento de estudos regulares, a sede duma pequena academia sábia. De alguns mestres que no mosteiro professaram teologia e artes perdura o nome nas crónicas; e dos discípulos, quem desconhece a tradição tão consistente de que Santo António de Lisboa adquiriu nesta escola as bases do seu extenso conhecimento das Escrituras? O espólio desta livraria perdeu-se quase inteiramente; mas por sumárias notícias, que mal consentem frágeis induções, pode dizer-se que o mosteiro coimbrão soube aliar aos fins religiosos os fins de cultura, organizando a primeira livraria de alcance pedagógico. Se a livraria de Santa Cruz foi a alma mater dos estudos no centro do País, a do mosteiro de Alcobaça constituiu a biblioteca nacional do Portugal medievo. Fundado em 1148 por D. Afonso Henriques, nasceu com a própria nacionalidade; e, se sacrificou, como lhe impunha a natureza do seu instituto, ao internacionalismo da respublica christiana, enriquecendo-se de disciplinas que, como a teologia, a filosofia e as humanidades, se colocavam num plano supranacional, foi no entanto em Alcobaça que a memória do passado se registou e reconheceu como sinónimo e cimento da consciência histórica da Nação. Durante séculos, o labor do escritório alcobacense foi constante, copiando, trasladando ou lançando no pergaminho e no papel as criações dos próprios monges. E assim, pouco a pouco, se foi formando uma notável coleção de códices, que pelo número, variedade e riqueza granjearam a Alcobaça urna dilatada fama. Altas personalidades, como a beata Mafalda, irmã de Afonso II, e o Infante Santo, D. Fernando, aceitavam ofertas ou solicitavam o empréstimo de livros; e do estrangeiro, Poggio Bracciolini, ardoroso humanista, escrevia em 1441 ao Bispo de Burgos, Afonso de Cartagena, pedindo que lhe desnudasse os códices clássicos do mosteiro, in quo plurimi esse dicuntur. Por volta de 1520, o abade Fr. João Claro, doutor parisiense, numa epístola ao rei, alude à livraria, dizendo não contar 500 códices, dos quais alguns eram “antigos muito verdadeiros e muito solenes”. Os catálogos redigidos no séc. XVIII, o grande século da erudição em Portugal, revelam-nos, apesar dos erros e defeituosa redação, algumas preciosidades desta livraria, que o Visconde de Santarém ainda visitou nos princípios do século passado, e na qual contou do século XI, 1 códice; do XII, 10; do XIII, 72; do XIV, 70 e do século XV, 23. Pelas indicações dos bibliógrafos e sobretudo pelo espólio hoje integrado na Biblioteca Nacional (Fundo Alcobacense) e Arquivo da Torre do Tombo, num total de 462 manuscritos, podemos ajuizar da atividade desta corporação, cujo trabalho incidiu, no decurso do tempo, sobre “velhos manuscritos da Bíblia e dos Santos Padres; exposições, comentários e glosas dos textos sagrados; coleções de epístolas, sermonários e homiliários dos escritores clássicos medievais; algumas obras escolhidas dos autores clássicos (Cícero, Virgílio, Aristóteles); santorais e monografias hagiológicas; tratados e compêndios de gramática, retórica, poética e filosofia; curiosas etimologias, ou léxicos, e enciclopédias medievais; numerosos livros litúrgicos (missais, breviários, saltérios, hinários, coletários, rituais, cerimoniais, etc., segundo o antigo rito cisterciense); tratados teológicos, dogmáticos, ascéticos e morais; livros e coleções canónicas e jurídicas (as Decretais com as suas glosas e comentários, as bulas e cartas régias relativas à ordem de Cister); traduções portuguesas das regras de S. Bento e Santo Agostinho e das constituições cistercienses; cópias dos nossos cronistas (Fernão Lopes, Azurara, Galvão, Rui de Pina), etc....” (A. Anselmo). LIVRARIAS EPISCOPAIS E CAPITULARES Neste movimento de simpatia pela vida intelectual participam também, embora modestamente, os bispos e cabidos. Pelos documentos até hoje publicados, são os bispos de Braga, Évora (D. Vasco Perdigão, 1462) e sobretudo os do Porto, designadamente dos séculos XIII e XIV, D. Sancho Pires (1296), D. Vicente (1334) e D. Sancho (1336) os que mais praticam a bibliofilia, ajuntando obras de Padres da Igreja, canonistas e oradores sacros. Esta bibliofilia, como era natural, ampliou-se aos cabidos. Assim, o cabido do Porto organizou uma biblioteca com o legado bibliográfico do bispo portuense D. Vasco (1331); o de Lisboa, cuja livraria nos é mal conhecida, emprestou em 1423 ao infante D. Pedro uma obra de Avicena em dois tomos, o que parece indicar que o rol dos seus livros contava já disciplinas seculares, e temos por sem dúvida que os 20 códices de Mumadona, a mais antiga livraria de Portugal, legados em 959 ao convento de Guimarães, constituíam o fundo livresco da colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, quando no século XII aquele convento se transformou na célebre colegiada. Estas livrarias eclesiásticas, regulares ou seculares, representavam acima de tudo a cultura religiosa e canónica, essencialmente tradicionalista. Foi principalmente nos paços régios que a cultura literária e científica encontrou proteção e ambiente para o seu desenvolvimento; mas como fórmulas de transição, modestas e de ténue projeção, não podem esquecer-se as livrarias seculares. LIVRARIAS SECULARES A Câmara de Lisboa possuiu uma livraria que, a conjeturar por um empréstimo feito em 1466 a um estudante, deveria ser constituída principalmente por livros de Direito. Da Universidade nada sabemos. Se pudéssemos fazer um juízo retrospetivo pelos inventários feitos em 1532 e 1536, a conclusão não seria honrosa e teríamos de afirmar que o Estudo Geral de Lisboa viveu à margem de toda a renovação ideológica, fossilizando-se nos velhos textos. Por isso talvez fosse por ironia maliciosa que em 1537 se falasse tanto na “trasladação” da Universidade para Coimbra, onde após a mudança ressurgiu com vida intensa e gloriosa. Ë legítimo, porém, supor que os seus professores individualmente ajuntassem livros, como então se dizia. E realmente dum temos notícia, — o Dr. Diogo Afonso Mangancha, uma celebridade da primeira metade do século XV, cuja livraria de decretalista legou em 1447 ao colégio para 10 estudantes pobres, por ele instituído. LIVRARIAS REAIS Com a primeira dinastia, a livraria real, embora traduzisse sempre um desejo de ilustração, foi um património pessoal, livremente disponível, que nascia e desaparecia com a vontade do próprio fundador. No século XV, porém, perde este carácter pessoal para alcançar o de propriedade da Coroa, conquistando uma posição inédita, renovadora, na cultura nacional. Menos policiada que as livrarias monásticas, aberta a novas ideias, satisfazendo novas inquietações de espírito, a livraria real assinala então uma fase intensa de secularização intelectual. Das livrarias de tipo pessoal a mais notável é a de D. Dinis, o rei-poeta, a quem as musas do amor cortês parece terem propiciado as mais cuidadosas realizações práticas. No testamento feito em 1321, deixa a seu filho D. Afonso, dentre outros bens, todos os livros “que pertencem à minha capela”. Este legado significa que possuía livros litúrgicos; mas é fora de dúvida que a sua livraria deveria exprimir, além das religiosas, outras preocupações de espírito. Pelas citações das suas cantigas e outros documentos contemporâneos, tem-se dito que lera os poemas Tristão e Isolda, Flores e Brancaflor, as Cantigas de Santa Maria, de Afonso, o Sábio, o Roman des Douze Pairs, e como obras históricas, a Crónica Geral de Espanha. Dir-se-á pequena esta biblioteca; mas não deve considerar-se a escassez de documentos como sinónimo de pobreza ou incultura. A corte dionisiana foi um centro intelectual, cujos raios nitidamente se desenham nas traduções que D. Dinis promoveu, na floração poética do seu tempo e na consagração dos contemporâneos, expressa doridamente no planh que o jogral Joham, de Leon, compôs à sua morte: Os namorados que trobam d'amor todos deviam gram doo fazer, et non tomar em si nenhum prazer porque perderon tam boo senhor com'el-rey D. Denis de Portugal. Esta corrente mingua após D. Dinis, mas com a nova dinastia de Avis redobra de curso, marcando um sulco indelével. Rui de Pina diz na Crónica de D. Afonso V, que este “foi o primeiro rei destes reinos que ajuntou bons livros e fez livraria em seus paços”. Esta asserção contraria o que indubitavelmente sabemos dos seus predecessores, devendo interpretar-se como “significando que este monarca dera maior incremento à livraria real, franqueando-a aos eruditos, pelo menos às pessoas da corte mais afeiçoadas ao estudo” (Sousa Viterbo). É com D. João I que se organiza o primeiro núcleo da livrari4i da Coroa, que D. Duarte e Afonso V conservaram e aumentaram. O exemplo paterno foi uma sugestão viva; e nessa corte intelectual, onde as inquietações morais se tornam reflexivas e sabiamente conscientes, toda a “ínclita geração, altos infantes”, no verbo camoniano e no sentir da grei, se consome numa ânsia de saber, convertendo os seus palácios em pequenas cidades de livros, que hoje só por indícios podemos reconstituir, salvo do Infante Santo, D. Fernando, que nos legou a descrição dos 44 códices que doou. Pelo rol dos livros de D. Duarte recompõe-se em parte a livraria de D. João I. Teófilo Braga estudou com sagacidade este assunto, bastando ao nosso ponto de vista uma rápida visão do panorama que abrangia. Nele se divisam obras jurídicas, como as Conclusões de Bártolo, o Código, com o comentário de Cino de Pistoia, e as Partidas, de Afonso o Sábio; políticas, como o Regimento dos Príncipes, de S. Tomás de Aquino, ou de Egídio Romano; religiosas, como os Evangelhos; literárias, como o Livro das Trovas de D. Dinis, a Demanda do Santo Graal, e A Confissão do Amante, do inglês John Gower; históricas, como a História Geral de Espanha, e livros de cetraria e venatória. Se se atribuir o Livro de Montaria a D. João I, e cremos não haver razões para que se não lhe reconheça pelo menos a colaboração neste tratado, recentemente impresso por um dos mais notáveis eruditos da nossa época, o rol indicado por seu filho é pequeno. Analisando esta fonte, teremos de incluir na livraria régia escritos de Padres da Igreja (Santo Agostinho, Beda) e doutores, como S. Bernardo, livros de gramática, retórica, filosofia, isto é de Aristóteles, cujo tratado Da Alma parece conhecer, e de astronomia, como Ptolomeu, os árabes Albenazar e Ali ben Ragel, traduzido em parte, em 1410-12, e existente na Bodleiana de Oxford, assim como o Livro de Mágica que compôs Juan Gil de Burgo, o qual é, sem dúvida, o “grande livro de astronomia” citado no Livro da Montaria. Todas as ciências se acham, assim, representadas na livraria régia, sendo de notar particularmente a astronomia, confundida ainda com a astrologia. É que a livraria não servia apenas de regalo ou para satisfação duma curiosidade: era uma condição teórica da grande obra de expansão ultramarina, da segurança e probidade dos descobridores, cuja calma reflexão se não compadecia com o espírito de aventura. Foi esta função que conferiu à livraria palatina um valor indelével, convertendo-a num foco de cultura e integrando-a na vida profunda da Nação. Os sucessores de D. João I recolheram e dilataram esta herança, especialmente D. Afonso V, que por assim dizer a abriu ao público, adquirindo livros, curando da sua instalação, estipendiando escrivães e iluminadores e confiando a sua guarda e conservação a Gomes Eanes de Zurara (desde 1451, pelo menos), que nela terminou a Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné e colheu a erudição histórica e moralizante que peja os seus escritos. Tudo o que no século XV teve renome europeu, na literatura, clássica ou contemporânea, na história, na ciência, encontrou um eco de simpatia em Portugal. O fundo da livraria real, sucessivamente acrescido, e sobretudo as citações dos escritores quatrocentistas, documentam exuberantemente esta ressonância e interesse pelas novidades e ideias, a tal ponto que não careciam de abonar-se com exemplos estrangeiros os portugueses que no século XVI formaram grandes bibliotecas. Em 19 de Janeiro de 1483, Afonso V concedia o privilégio da isenção de impostos para os livros que Guilherme de Montrete, Francisco de Montrete e Guido importassem e vendessem em Lisboa, porque “ao bem comum” convinha “em nossos regnos aver muitos livros”. Era a consagração oficial da maravilhosa invenção da imprensa, e ao mesmo tempo uma nobre saudade à nova aurora da Humanidade. c) TRADUÇÕES MEDIEVAIS Foi dentro de fronteiras delimitadas, que, em Portugal como alhures, se exerceu a atividade intelectual da Idade Média. O sentimento da posse de algumas verdades, religiosas ou objetivas, colhidas estas em geral na enciclopédia aristotélica, satisfez as exigências do espírito, cuja fisionomia confiante não conheceu as dúvidas incitadoras. Os livros bastavam-lhe, e o que hoje se compartilha pelo laboratório e pelo instituto concentrava-se então nas livrarias, cuja maior parte viveu uma existência obscura, confidencial. Santa Cruz de Coimbra, Alcobaça, e as bibliotecas da Corte romperam este anonimato, colocando-se perante as necessidades da cultura nacional como instrumentos de estudos regulares, auxiliares do trabalho de criação e centros de traduções. A coordenação destas funções, em parte conexas, dar-nos-ia o significado destes organismos; porém, no ponto de vista da história da língua e da literatura, é proeminente o movimento de traduções. O latim era a língua das disciplinas sábias, que, pela substância, como pela expressão, alcançaram um verdadeiro internacionalismo; mas é óbvio que só uma minoria podia acompanhar diretamente o curso das ideias e das novidades. A tradução impunha-se então, como hoje, como processo de difusão e de nacionalização, exprimindo a variedade de textos o ritmo da adaptação e integração das ideias, sentimentos e géneros literários, embora se não possa dizer em absoluto que os dois movimentos fossem paralelos e mutuamente mensuráveis. Das livrarias monásticas, é em Alcobaça que mais extensamente se desenvolve esta ação nacionalizadora. Traduzem-se agiografias, como a Vida de Santa Maria Egipcíaca, Santo Aleixo, Santa Eufrosina, a Visão de Tundalo, as quais, com a Regra de S. Bento, também vertida, exprimem com mais frescura a sensibilidade medieval do que a própria poesia; obras místicas e ascéticas, como os livros de S. João Cassiano (De institutione coenobiorum e Collationes), tão lidos entre nós, o Orto do Esposo, o Espelho da Cruz, do dominicano Domingos Cavala, e o De anima, de S. Bernardo; e escritos dos Padres da Igreja, como os Diálogos, de S. Gregório Magno, os Solilóquios, de Santo Agostinho, e o Tratado do Ajuntamento dos Bons Ditos e Palavras, de Santo Isidoro de Sevilha. Trasladava-se principalmente do latim, mas não se ignoravam outras línguas. Assim, do castelhano, traduziu-se o Livro das Confissões, de Martin Perez, que o Infante Santo pediu por empréstimo ao mosteiro para mandar copiar e D. Duarte utilizou no Leal Conselheiro; e do francês, o Castelo Perigoso, obra dum cartuxo. Ao lado desta literatura de edificação ou formação ascética, desenvolveu-se a cultura secular, a que os paços régios deram ambiente e estímulo, promovendo a incorporação na linguagem de escritos, pelos quais se operou um alargamento da visão, convidando os olhos a baixarem do céu à terra, do numinoso às criações da imaginação e aos valores, que, como o Estado e o Direito, constituem o fundamento da vida civil. Antes de 1252, traduzem-se do castelhano as Flores das Leis, de Jácome Ruiz, jurisconsulto de Afonso, o Sábio, cujo código das Partidas, mandado trasladar por D. Dinis, teve larga difusão em Portugal. A estas traduções, impostas por assim dizer pela conveniência do Estado, outras se juntam, as quais denunciam uma atividade intelectual desinteressada. D. Dinis é o primeiro grande intérprete deste movimento, mandando traduzir do árabe a Crónica do mouro Rasis e o livro das Concordâncias, do bispo Gastão Fox, o qual “era repartido em 7 partes, tratando nas três primeiras de Deus e da imortalidade da alma, e nas outras fazia a concordância dos ditos das sibilas com os profetas e discorria sobre o estado de bem-aventurança e purgatório” (Fr. Francisco Brandão); a Crónica Geral ou História de Espanha, e tratados de alveitaria e cetraria, de Fr. Teuderique de Valência e Jordão de Calábria, trasladados em 1318 por Mestre Giraldo, físico do rei. No seu século, e porventura no seu reinado, nacionalizou-se, com notável fortuna, a literatura de ficção, tendo chegado até nós os romances do ciclo bretão, a Demanda do Santo Graal e Joseph Ab Arimatia vertidos, como tudo indica, diretamente do original francês (Pseudo Boron). “Da existência destes dois códices, não será ilógico concluir a de uma compilação na qual entrasse também o Merlin ou Conto do Brado, e portanto que as três partes de que se compunha o ciclo foram cedo vertidas para português. No primeiro destes livros, que constitui a primeira parte da trilogia, fazem-se referências ao segundo, e neste, que formava a terceira, menciona-se o Conto ou Romanço do Braado, como sendo a segunda; existindo a primeira e a terceira, não é nada crível que a segunda deixasse de ter sido traduzida, aliás a leitura de toda a coleção perdia grande parte do seu interesse” (J. J. Nunes). D. Dinis é a réplica portuguesa de Afonso, o Sábio. Com a sua morte, este esforço civilizador hiberna, para reviver intensamente na dinastia de Avis. As fundas inquietações morais, ideológicas e políticas de quatrocentos, de tão largas projeções na vida nacional, patenteiam-se então nos vários livros traduzidos em grande parte por mandado ou incentivo da família real. O Regimento dos Príncipes, de Egídio Romano, as Meditações, de Santo Agostinho, o De officiis, de Cícero, trasladado pelo infante D. Pedro, o Estímulo do Amor Divino, de S. Boaventura, a Retórica, de Cícero, traduzida em espanhol pelo doutor Alonso de Cartagena a pedido de D. Duarte, o Livro de Marco Paulo, são exemplos desta insaciável curiosidade, que se desenfadava da filosofia, da história e da mística, lendo com delícia os romances de Tristão, Galaaz e Merlim, sem dúvida em vulgar. “Tanto a ordem dos Namorados com a meio-mítica da Madressilva se liga à leitura assídua dos romances do ciclo bretão pelos paladinos do mestre de Avis. O Condestável considerava este último, antes de 1385, como herói digno de imitação, conforme ensina a sua crónica. E muitos nobres davam a seus filhos aquele e outros nomes românticos, como augúrio de felicidade” (D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos). Quer-se melhor prova desta vulgarização que o juízo severo de Fernão Lopes: “hoje mais não cumpre que se leiam as proezas de Tristão e de Lançarote”? O século XV foi em Portugal um século amante da erudição e com ela se desperta uma vaga nostalgia da sabedoria clássica. A citação era veneranda, e não raro os livros originais inseriam extratos e passagens traduzidas, que por vezes capitularíamos de plagiatos, se o sentimento de probidade literária não fosse uma conquista relativamente moderna. O Leal Conselheiro é, sob este aspeto, um livro típico, incorporando algumas versões, designadamente uma Homilia de S. Gregório e passagens dos Estabelecimentos, de S. João Cassiano, de S. Tomás de Aquino e do De secretis secretorum, atribuído falsamente a Aristóteles. D. Duarte indica as suas fontes; mas nas Crónicas de Azurara, as excursões pela antiguidade e as declamatórias reflexões morais nem sempre deixam perceber onde termina a inventiva pessoal e começa o trabalho do copista. Este movimento tem o seu período culminante na época de D. Duarte, que não hesitou em ditar as regras “para bem tornar alguma leitura em nossa linguagem”. Era a justificação deste intenso processo espiritual, que enriquecendo e aperfeiçoando a língua, educou ao mesmo tempo o espírito, sugerindo-lhe por vezes novas vias. E-MAIL DE DESTINO: COMENTÁRIO: ?> Vamos corrigir esse problema Indique-nos o problema que encontrou na página visitada. Se pretende ser notificado sobre a resolução do problema, deixe-nos o seu email: Encontrou um problema neste artigo? Ajude-nos a melhorar. Disqus LoginSobre o DisqusGostei Não gostar Ainda bem que gostou. Gostaria de partilhar? 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