sexta-feira, 8 de junho de 2012

RAÍZES MEDIEVAIS DO BRASIL

Serviços Artigo em PDF Artigo em XML Referências do artigo Como citar este artigo Tradução automática Enviar este artigo por email Revista USP versão ISSN 0103-9989 Rev. USP n.78 São Paulo jun./ago. 2008 TEXTOS Raízes medievais do Brasil Hilário Franco Júnior Professor do Departamento de História da FFLCH-USP e autor de, entre outros, A Dança dos Deuses - Futebol, Sociedade e Cultura (Companhia das Letras) "[...] quem quiser se prender ao presente,ao atual, não compreenderá o atual" (Michelet, Le Peuple). Talvez todo país pareça um pouco enigmático aos olhos de seus próprios cidadãos, mas em alguns o fenômeno é sem dúvida mais intenso. Nesses casos, é preciso certo distanciamento físico e emocional do observador. No tocante ao Brasil não poderia ser diferente, daí a importância que tiveram para alguns de seus maiores intérpretes longas experiências no exterior. Seguramente se aplica ao nosso país o comentário de um poeta sobre o seu: "[...] a Rússia, como tudo que é grande, só se vê bem a distância"1. Distância que deve ser também temporal, não apenas espacial. Ora, as clássicas interpretações do Brasil partem sempre do "fato" de ele ter sido "descoberto" em 1500, no começo da "Idade Moderna", sem considerar a longa história que seus colonizadores europeus, permanentes ou circunstanciais, traziam consigo. A opção em examinar o Brasil a partir do nascimento, e não da gestação, limitou de certa forma aqueles valiosos diagnósticos da crise de identidade que sempre nos acompanhou como nação2. De fato, toda personalidade coletiva é constituída, mais do que as individuais, por inúmeros fatores anteriores à sua corporificação histórica. Negar-lhes cidadania analítica não os elimina do modo de ser brasileiro e reduz o alcance da compreensão pretendida. Bom exemplo desse procedimento é um daqueles grandes livros, talvez o maior deles, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Temos aí uma interpretação plena de finesse e inteligência, que nos parece, contudo, incorrer naquela mesma distorção de perspectiva. E no entanto a metáfora "raízes" indica como objeto não a árvore visível, o Brasil histórico conhecido, bem ou mal, por todos, e sim a parte oculta sob a terra e que determina as características dessa árvore esfíngica. O grande historiador não levou na devida conta, a nosso ver, sua própria metáfora. As raízes do Brasil evidentemente antecedem o Brasil. Elas são anteriores a 1500. Elas encontram-se no período que há muito se convencionou chamar de Idade Média. É verdade que Sérgio Buarque percebe a mobilidade social portuguesa daquele período como geradora de uma burguesia mercantil que não precisou impor um sistema de valores próprios para forjar sua identidade, antes, pelo contrário, adotou o modo de vida da velha aristocracia, que portanto não desapareceu e, assim, "as formas de vida herdadas da Idade Média conservaram, em parte, seu prestígio antigo". Entretanto, se ele vê no patriarcalismo lusitano um dos traços fundadores da organização social brasileira e se reconhece que a cultura nacional procede de Portugal por "tradição longa e viva", partilhando com a antiga metrópole uma "alma comum"3, o caráter medieval desses fenômenos fica mais implícito do que revelado e o estudioso perde assim a oportunidade de aprofundar as reflexões. Na mesma linha, ele recorta o tipo ideal do aventureiro lusitano sem associá-lo ao cruzado, de quem, contudo, procedia sociologicamente e de quem herdara o espírito. Ou, outro exemplo, para explicar o contraste entre as colonizações portuguesa e castelhana, uma rural, outra urbana, não recorre ao essencial, a diferente história urbana medieval nos dois reinos4. Estranha recusa ao legado medieval ocorre em relação ao mutirão (costume usado por camponeses para derrubar matas, plantar, colher, construir casas e fiar algodão), ao qual atribui origem indígena por se basear no auxílio recíproco e ser depois acompanhado por festividades5. Sem negar provável influência dos nativos nessa prática de trabalho coletivo (a etimologia da palavra é possivelmente tupi), não se pode minimizar o fato de os colonos europeus que aqui chegavam conhecerem há séculos tal costume. A economia senhorial da Idade Média tornava necessária a associação dos camponeses na realização de tarefas para as quais cada família isoladamente não possuía os meios requeridos. Era o caso da aradura, da colheita, da construção de moradias. Estas e outras formas de cooperação campesina ocorreram em toda a Europa medieval6, inclusive em Portugal, onde ainda há poucas décadas podiam ser observadas, sobretudo no Minho, no Trás-os-Montes e na Beira7, regiões de procedência de muitos colonizadores do Brasil. Portanto, surpreende retrospectivamente que o estudioso tenha deixado de lado elementos importantes para sua reflexão. Ainda mais porque o objeto do livro, já se notou com justeza, não era reconstituir linearmente a história brasileira, e sim examinar formas de vida social, de instituições e de mentalidade que, nascidas no passado, ainda faziam parte da identidade nacional do presente do historiador. Tratava-se, pois, de examinar o tradicional, o arcaico8. Ora, para os lusitanos dos Descobrimentos e dos primeiros tempos da colonização, tradicional era toda herança vinda da Idade Média. Logo, como vamos sugerir, não seria possível a Buarque de Holanda realizar completamente seu projeto sem colocar no centro da cena a contribuição medieval. Por que, então, nosso maior historiador deu pequena atenção àquela época? Provavelmente devido ao formato de ensaio sociológico do livro, à sua admiração pela cultura renascentista, às circunstâncias históricas nas quais escreveu. Quanto ao primeiro ponto, basta lembrar que poucos anos antes, durante sua estada em Berlim, sofrera forte influência da sociologia alemã, testemunhada pelas cinco referências que faz a Max Weber, mais do que a qualquer outro autor. Quanto ao segundo ponto, já se notou a atração do autor de Raízes do Brasil pelo Renascimento, a cujo modelo de civilização pretendia mostrar que o país estava filiado9. Talvez por isso ele remeta certas constatações diretamente à Antigüidade Clássica10, saltando a intermediação medieval que lhes deu tom próprio e existência histórica para os colonos portugueses e seus descendentes. Quanto ao terceiro ponto, já se assinalou que um dos traços distintivos da obra de Sérgio Buarque em relação à de outros "inventores" do Brasil foi justamente sua visão do futuro naquele momento de acentuada transição econômica, social e política do país11. E com efeito, se considerarmos as datas não somente da primeira (1936), mas igualmente da segunda (1947) e da terceira e definitiva edição (1955) do livro, e também o perfil intelectual consciente e engajado de Sérgio Buarque, pode-se pensar que o historiador não conseguiu escapar aos condicionamentos que lhe impunham aqueles momentos-chave na trajetória histórica recente do Brasil: Constituição de 1934, que atenuou o autoritarismo do Estado Novo, redemocratização do país em 1946, suicídio de Vargas em 1954, eleição presidencial livre no ano seguinte. De qualquer maneira, teria sido fundamental levar em conta que a experiência colonial moderna dos ibéricos de certa forma prolongou sua experiência colonial medieval, com a conquista da América aos pagãos indígenas correspondendo à reconquista da península aos "pagãos" mouros. O tradicional grito guerreiro desta, invocando Santiago, foi utilizado naquela, por exemplo no Maranhão em princípios do século XVII12. Nos dois casos, o processo não foi obra dos setores mais progressistas da sociedade, embora estes tenham a partir de um segundo momento se beneficiado dele. Enquanto a colonização inglesa da América foi realizada por segmentos sociais "modernos", gente que buscava novos horizontes, a colonização portuguesa foi obra de setores ainda "medievais", que pretendiam reproduzir em outro palco, mais amplo e rico, o enredo histórico anterior. Isso não significa negar ou minimizar as rupturas, as novidades, os elementos modernos presentes na colônia portuguesa desde os primeiros tempos. Mas justamente porque a supervalorização historiográfica desses elementos impediu a percepção dos elementos medievais, o presente ensaio coloca a ênfase nas continuidades. Ou seja, nos elementos históricos já ultrapassados na metrópole, ou em via de o serem, porém introduzidos com vigor na colônia, daí terem sobrevivido à separação política e gerado o clima de arcaísmo ainda presente em muitas facetas do Brasil. Para que estas possam ser compreendidas, é preciso deixar de lado o discurso imediatista que atribui os problemas nacionais ao presente ou no máximo a um passado recente, iludindo a sociedade quanto à urgência de um esforço coletivo global e contínuo ao longo de algumas gerações. A análise do que o Brasil é, e do por que o é, deve ser redimensionada. Nenhum diagnóstico portanto, nenhum prognóstico do Brasil será possível sem considerar a herança medieval que ainda age sobre nós. Dentro de nós. A duplicidade do Brasil atual é evidente mesmo ao visitante desavisado: favelas ao lado de edifícios imponentes, regiões atrasadas ao lado de outras avançadas, práticas sociais e culturais tradicionalistas ao lado de práticas contemporâneas. Definir tal situação é contudo controverso. Buarque de Holanda fala em, após a Abolição, um Brasil "americano" no Sul/Sudeste contraposto ao Brasil ibérico do Norte/Nordeste. Um sociólogo em "dois Brasis" separados "por diferenças de idade", um moderno, outro arcaico, que ele etiqueta como colonial. Um etnólogo, em "terra de contrastes" na qual "as épocas históricas encavalam-se umas com as outras". Um economista, em "Belíndia", isto é, país que mescla uma pequena área rica como a Bélgica e uma imensa área pobre como a Índia. Um jornalista, em diversidade estrutural, já que viajar pelo Brasil é deslocamento no tempo, não apenas no espaço. Um historiador, desenvolvendo a idéia anterior, em justaposição de épocas, a contemporânea das grandes cidades próximas ao litoral, a imperial das pequenas cidades do interior, a colonial das aldeias, a neolítica das zonas indígenas13. Como se vê, a herança da Idade Média não foi levada em conta por nenhuma avaliação global da história nacional, tão em voga nas primeiras décadas do século XX14. Mesmo o grande salto posterior da historiografia nacional não evitou que se continuasse a deixar de lado a contribuição medieval na formação do Brasil. Talvez não somente por tradicionalismo cronológico, mas também diante do ainda arraigado preconceito em relação à Idade Média - por recusa inconsciente em aceitar nossas facetas medievais, em alimentar aquilo que Nelson Rodrigues chamou de "complexo de vira-latas [...] a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo"15. Daí ter sido um estudioso estrangeiro, o mexicano Luis Weckmann, que recentemente - tratou com pouca repercussão, fato expressivo - da presença da Idade Média na vida brasileira, mesmo tendo-a limitado ao período colonial. De toda forma, ele relembrou que as metrópoles ibéricas não conheceram um Renascimento pleno que tenha representado, como em outras partes da Europa, transição da medievalidade para a modernidade. Mal tocados pela cultura renascentista, Espanha e Portugal continuaram a produzir, no século XVI, uma literatura cavaleiresca tardia, escritos místicos e uma espécie de novos monges-guerreiros, os jesuítas. Na América ibérica, conclui ele, o outono da Idade Média ocorreu apenas no século XVII16. Se essa constatação pode, em linhas gerais, ser aceita em certos planos, não o pode contudo em outros, especialmente no social, cultural, religioso e psicológico. Diversos elementos medievais continuaram presentes nos tempos seguintes, e alguns até hoje. Mas, para captá-los, é necessário ampliar o campo temporal observado, o corpus documental examinado, o instrumental metodológico utilizado. Deve-se alargar a atenção para a Europa medieval em geral e Portugal em particular. Não basta, porém, o cuidado do historiador em ressuscitar os fragmentos mortos do passado, é preciso também um olhar de etnólogo sobre as manifestações vivas do presente que carrega aquela herança. Todo material disponível, mesmo aquele aparentemente menos nobre que crônicas, diplomas e peças arqueológicas, deve ser analisado. Poucos estudiosos negariam atualmente que tanto o documento histórico quanto o etnográfico ganham esse estatuto ao serem utilizados como indícios explicativos das questões que lhe são colocadas: as fontes não criam o historiador e o etnólogo, mas o inverso. Esse material ampliado não revela, porém, por si só o objeto em questão. Ele deve ser processado por um método adequado. Possibilidade interessante é o "método regressivo" de Marc Bloch, que propugna ir do mais ao menos conhecido, passar o filme "em sentido inverso", fazer constantes idas-e-vindas entre passado e presente. Outra possibilidade é a "antropologia histórica", cujas perspectivas cronológicas enfocam a longa duração, os fatos repetidos, o cotidiano, a mentalidade; cujas perspectivas sociológicas valorizam o grupo e nele a dinâmica de subgrupos sexuais, etários, funcionais; cujas perspectivas culturais reavaliam o carismático (oficial e marginal) e a civilização material (técnicas, saberes, corpo, alimentação, etc.)17. No cruzamento e adaptação das duas propostas podemos pensar numa antropologia histórica retrospectiva, isto é, que examine os temas da segunda na seqüência da primeira. Dessa forma, pode-se esperar que a diacronia invertida abra janelas para olhares sincrônicos que não se deixem enganar por aculturações recíprocas. Com esse olhar abrangente e ágil podemos, talvez, comprovar em certas manifestações da vida brasileira a permanência de uma Idade Média ainda mais longa do que aquela definida para a Europa por Jacques Le Goff. É preciso, contudo, estar atento para distinguir duas situações de sentido diverso embora próximas na aparência. Há determinados fenômenos da história brasileira que se poderia estar tentado a classificar de medievais, mas que a rigor são realidades antropológicas encontráveis em diferentes épocas e sociedades. O analfabetismo ou a violência social, por exemplo, algumas vezes taxados de medievais, são-no apenas por metáfora ou analogia. Outras características brasileiras, pelo contrário, podem ser legitimamente chamadas de medievais por resultarem de uma continuidade histórica, explícita ou latente, de longa duração. São frutos de nossas raízes medievais. Mas também é preciso considerar que alguns traços "medievais" por metáfora ganham sentido mais literal em contextos globalmente medievais, caso dos dois exemplos acima citados. Falamos, portanto, não propriamente de uma Idade Média brasileira, e sim de um sistema de valores medievais no Brasil. Como Mário Martins percebeu, "a maneira medieval de ser e de sentir a sua mundividência e também o seu conteúdo poético e social [prolongou-se] no nordeste brasileiro onde o poder central nem sempre conseguiu impor-se, dando origem a uma espécie de vida feudal, com a psicologia correspondente". Mas por pelo menos duas razões seria simplista qualificar o Brasil de hoje de medieval no Norte/Nordeste e moderno no Sul/Sudeste. Do ponto de vista epistemológico, porque como aquele autor pertinentemente observou, "a Idade Média não é um tempo, mas antes certo modo de ser e de estar no mundo"18. Ora, este modo de ser resulta de ritmos assimétricos de cada um dos níveis (modernamente chamados de político, institucional, econômico, social, cultural, religioso, mental) do viver coletivo. Quer dizer, é possível um grupo humano ter traços "medievais" no plano político, por exemplo, e "modernos" no econômico. Do ponto de vista factual, porque os colonos portugueses e seus descendentes dispersaram-se pela maior parte do território brasileiro atual, embora com intensidades diferentes conforme as épocas e os locais, e também porque mais tarde a migração interna - que envolveu 10% da população total em 1950 - em especial no sentido Norte-Sul, favoreceu numa fase inicial a circulação do sistema de valores medievais antes de este se enfraquecer numa segunda fase diante das pressões da cultura dominante na região de instalação. Logo, melhor é definir o Brasil atual como resultado da interação de regiões de medievalidade com enclaves de modernidade, e de regiões de modernidade com enclaves de medievalidade. É esse o contraste que chama atenção e explica a dinâmica histórica própria ao país. As fortes oscilações na trajetória nacional do século passado resultaram da difícil convivência entre aquelas concepções de mundos, cujas relações tornaram-se cada vez mais difíceis com a vaga de imigração européia e asiática na passagem do século XIX para o XX e com os progressos da industrialização e da urbanização a partir de meados do século XX. De toda forma, as "estruturas fundamentais que persistem na sociedade européia do século IV ao XIX"19 são no essencial as mesmas que persistem no Brasil do século XVI ao XX. A SOCIEDADE SENHORIAL No contexto de pretendidas reformas no funcionalismo do Congresso, criticou-se no começo de 2001 um deputado federal que quando da contratação de assessores tentou justificar a inclusão de familiares argumentando que "eles não podem ser punidos [não sendo contratados] por serem meus parentes". Meses depois se debateu também a resistência do Judiciário à reforma que impede a contratação de parentes até segundo grau. Mas não se costuma levar em conta que essa não é apenas conduta pouco ética de segmentos fortemente corporativos: pesquisa do instituto Vox Populi realizada em princípios de 2000 tinha revelado que, enquanto 59% dos entrevistados eram contrários à contratação de parentes por parte de parlamentares, 46% não hesitariam em fazê-lo caso ocupassem cargos públicos20. Temos aí uma versão nacional e atual de fenômeno bem analisado por Norbert Elias: aquilo que do ponto de vista externo é visto como corrupção é procedimento lógico da práxis social em certo estágio da formação do Estado, no qual o fato de alguém galgar posição social de destaque e não favorecer a parentela é considerado atitude moralmente reprovável; é traição21. Tal visão comum a políticos e cidadãos na passagem do século XX ao XXI não é estruturalmente diferente da dos senhores feudais servidos por parentes próximos. Não deixa de ser curioso como a certidão de nascimento do Brasil fecha-se com pedido de ares nepotistas quando Pero Vaz de Caminha pede ao rei que perdoe seu genro que tinha sido degredado, o qual vai ser no ano seguinte, com a morte do escrivão, nomeado para substituí-lo22. Trata-se, em última análise, da concepção de familia (ou mansio, "casa"), conjunto de indivíduos unidos por laços variados de solidariedade, concepção germânica que submete o comportamento de cada um de seus membros aos costumes da tribo. Aí, mais do que sociedade (Gesellschaft), existe comunidade (Gemeinschaft). Tal noção, grosso modo, é a mesma no interior do Brasil de hoje. Neste, diz Carlos Rodrigues Brandão, família é "a unidade de referência que torna qualquer pessoa um integrante legítimo de uma parentela e da vizinhança de um bairro rural. Ninguém ofende a João, mas 'ao filho de seu Vicente e dona Maria' e, por extensão, ofende seus irmãos, ascendentes, filhos e outros parentes. A ofensa se volta contra todo o grupo doméstico, porque aquele sobre quem ela recai só é uma pessoa por ser de tal família"23. No interior da fechada família de tipo patriarcal, o poder do senhor é imenso sobre a massa escrava, o grupo de agregados e os familiares mais próximos. A grande família, medieval ou brasileira, deixa autoridade quase ilimitada nas mãos do patriarca. No Brasil colonial, e mesmo depois, o pátrio poder exercia-se até sobre a vida dos membros da família, sem que o poder público interviesse, lembra Sérgio Buarque. Esse quadro levou a se comparar a sociedade ao corpo humano encabeçado por um chefe de caráter patriarcal. Ainda no século XIX, um erudito como o visconde de Cairu concebia o Estado como vasta família cujo patriarca é a "cabeça" do corpo social24. Na mesma concepção tinha se inspirado o cronista jesuíta do século XVII brasileiro, para quem os escravos negros são "as mãos e os pés dos senhores de engenho"25. Essa analogia antropomórfica era contudo bem anterior, tinha raízes medievais e ibéricas. No século XII, João de Salisbury afirmara que no corpo social os agricultores representavam os pés, aos quais "é especialmente necessária a atenção da cabeça [...] já que sem os pés nenhum corpo, por robusto que seja, poderá caminhar por suas próprias forças". No século VII, uma lei definia o rei como a cabeça que conduz os "súditos membros"26. O personalismo que governava as relações sociais medievais engendrou - e no Brasil ainda engendra - fraqueza das instituições e das normas impessoais e gerais que devem comandar as sociedades modernas e democráticas. "O período que assistiu ao florescimento das relações de proteção e de subordinação pessoais [...] foi igualmente marcado por um verdadeiro estreitamento dos laços de sangue: porque os tempos eram agitados e a autoridade pública não tinha vigor, o homem tomava consciência mais viva das suas ligações com os pequenos grupos, fossem quais fossem, dos quais podia esperar algum socorro". Essa citação, que poderia se referir na história do Brasil tanto à sociedade açucareira do século XVII quanto à cafeeira do XIX, fala no trecho que substituímos acima por reticências em "o estado social que chamamos feudalismo"27. Nessa formação social havia certa indistinção entre coisa pública e coisa privada. A privatização da primeira deu-se quando grandes detentores de terra apossaram-se de funções (militar, fiscal, judiciária, monetária) que se tornaram patrimônio de algumas famílias. É verdade que no plano teórico a Idade Média conservou os conceitos vindos do Estado romano da Antigüidade: publicus é o pertencente ao povo, à coletividade, é aquele que age em nome de todos, é aquilo que ocorre diante de todos, abertamente; privatus é a esfera do particular, do pessoal, do familiar, daquilo que ocorre em casa, secretamente. No plano prático, contudo, a sociedade feudal embota a fronteira entre os conceitos. Interpenetra-os. Nela tudo é privado e ao mesmo tempo tudo se torna público. Exatamente como no caso brasileiro, no qual a coisa pública é vista não como pertencendo a todos, e sim como não pertencendo a ninguém. Ou melhor, como sendo de quem se apossa dela antes dos outros. A moralidade da casa é diferente da moralidade da rua; o que é vedado no espaço privado é permitido no público, e vice-versa28. Apesar de dedicados à produção voltada para o exterior, ao contrário de seus antecedentes medievais, os engenhos lembravam na vida cotidiana os senhorios feudais. Tanto uns quanto outros eram organismos completos, quase auto-suficientes, que tinham capela, oficinas, horta, criação e tudo quanto se precisasse. Os engenhos de açúcar dos séculos XVI-XVII mantinham dezenas, em alguns casos centenas, de homens armados para sua defesa contra selvagens ou corsários, da mesma forma que os domínios rurais dos séculos IX-X para fazer frente aos ataques dos "selvagens" (cruenti) normandos29 ou dos piratas sarracenos, e da mesma forma ainda que os senhorios dos séculos XI-XII contra os rivais locais. Os senhores de engenho, por segurança e precaução, enterravam nas suas casas jóias e ouro, assim como tinham feito os senhores medievais até o século X30. No Brasil tal situação não foi apenas do Nordeste ou da época colonial, sendo perceptível ainda nos séculos XVIII-XIX em locais tão afastados entre si como Maranhão e Rio de Janeiro. O fenômeno conhecido entre nós por coronelismo nada mais é do que a versão nacional do clientelismo e do patronato que existiu na Europa medieval. Os "coronéis" são poderosos que através da distribuição de favores constituem uma "família" no sentido feudal. Cada pai simbólico (correspondente ao senior), protetor, dispensador e comandante, em troca de fidelidade entrega a cada um de seus filhos adotivos (jovem, vassalus) bens e direitos para seu sustento. Na Europa da Idade Média esses vínculos recíprocos instauravam "uma confiança pseudofilial", permitiam a "assimilação da functio, isto é, do serviço público à amizade, ao reconhecimento do alimentado e à submissão do cliente". No Brasil de hoje, para o sertanejo nordestino "o ideal do rico generoso e bom é um dos constituintes do seu mundo"31. Diante disso, não é de estranhar que nos dois locais tenha se subestimado por séculos o espírito de rotina, de organização e de esforço contínuo. É o que comprova, no caso brasileiro, a epopéia colonial das bandeiras, a loteria da mineração e mesmo o ciclo açucareiro. Este, apesar da aparência de empreendimento racional, foi ocupação aventureira do espaço, e "não uma civilização tipicamente agrícola"32. A exploração predatória da terra, decorrência da abundância de espaço e da pobreza de recursos tecnológicos, tinha claros antecedentes medievais. E continua a ser praticada, em particular na Amazônia. Diante da impotência do Estado e da dureza das condições de vida social, as relações pseudofamiliares - essência do feudalismo - ainda têm força no Brasil atual. Neste, da mesma maneira que na Europa medieval, a sobrevivência dos indivíduos depende muito da proteção de um grupo. Em ambas as sociedades as corporações tendem a se julgar acima das autoridades públicas, e eventualmente se opor a elas. Na história brasileira o exemplo mais claro é o do Exército, a "corporação" por excelência. Outro é o do Judiciário. Há poucos anos um ex-ministro da Justiça defendeu um sistema especial de aposentadoria para os juízes alegando que isso não seria privilégio e sim "prerrogativa", mais do que isso, "direito do povo em contemplar sua magistratura", função que é "sacrificado apostolado"33. No entanto, o mundo corporativo brasileiro, como o da Europa medieval, não é homogêneo, apresenta forte hierarquização intra e intercorporações, mesmo no seio do Estado34. Este, enquanto representante eqüidistante dos interesses de todos os cidadãos, é fraco. Mais do que um Estado, o que existe é um encavalgamento de corporações, legais e ilegais, ligeiramente articuladas entre si. Embora desigual, ou exatamente por isso, a sociedade senhorial brasileira significa forte possibilidade de mestiçagem, realidade do Portugal medieval que, com elementos e proporções específicas, foi transferida para as terras do Novo Mundo. Na metrópole a dominação muçulmana tinha estabelecido relações inter-raciais inicialmente difíceis, mas que com o tempo permitiram certo cruzamento, em particular entre escravas cristãs e senhores mouros. Com a Reconquista cristã o quadro inverteu-se e intensificou-se. De meados do século XI a meados do XIII cresceu tanto o número de escravos mouros, sobretudo usados em tarefas domésticas e artesanais, que pelo menos até o século XIV eles não devem ser considerados etnia e sim minoria religiosa, pois em termos raciais "portugueses cristãos e portugueses muçulmanos não se diferenciavam"35. Completada a Reconquista de seu território em meados do século XIII, os portugueses não podiam continuar a se expandir na Península Ibérica, onde Castela consolidava seu domínio. Passaram então a ambicionar terras fora da Europa, e assim, desde fins do século XIV, foi aumentando o número de escravos obtidos em operações de corso, berberes, negros, europeus orientais, guanches (nativos das Canárias), além da entrada de ciganos durante a segunda metade do século XV. Se a miscigenação com judeus (talvez 3% da população em fins do século XV) parece ter sido insignificante, com os negros deu-se o contrário36. Entre 1441 e 1505 foram levados para Portugal cerca de 150 mil africanos, em Évora havia em 1466 tantos negros quanto brancos, na Lisboa de 1535 viviam mais escravos que homens livres, no século XVI eles constituíam um quinto da população total37. Ou seja, os portugueses já eram mestiços ao chegarem à América, o que facilitou a mistura racial na colônia38. Entretanto, como a origem da mestiçagem lusitana dera-se no quadro histórico da Reconquista, no qual prevalecera evidentemente a lei do mais forte, geradora de tensões psicológicas e sociais, estas não deixaram de estar presentes na Conquista americana. Assim a mestiçagem colonial não impediu o preconceito e o fosso entre a elite branca e a massa não-branca. O resultado é que a violência social e a fraqueza institucional, que na Europa em torno do ano 1000 tinham gerado o fenômeno conhecido por encastelamento39, no Brasil levaram os proprietários fundiários a tomarem a proteção de seus bens nas próprias mãos. No campo os latifundiários coloniais e atuais contratam jagunços armados para impedir a invasão dos despossuídos. Nas grandes cidades o fenômeno é tardio (último quarto do século XX) e assume formas atenuadas, mas não deixa de existir. Os ricos das mansões e a alta classe média dos grandes apartamentos cercam-se de altos muros protegidos por grades, fios eletrificados, alarmes e, em pontos estratégicos, pequenas torres com guardas muitas vezes armados. O personalismo das relações gerou a sociabilidade que Sérgio Buarque de Holanda definiu como sendo a do "homem cordial". Quer dizer, comportamento na aparência hospitaleiro, generoso, franco, caloroso, que na verdade esconde emoções profundas e revela dificuldade no estabelecimento de relações sociais maduras. O brasileiro resiste à noção ritualista de vida, à civilidade que implica certa coerção. A cordialidade brasileira é o oposto da polidez. Preferimos as formas de tratamento familiar, que denotam intimidade, às de respeito, de reverência. Daí nosso hábito do uso exagerado do diminutivo, que pretende nos familiarizar com pessoas e objetos. A cordialidade seria, então, a transposição para o plano societário da mesma sociabilidade praticada no âmbito da família patriarcal. Nessa análise, sem dúvida um dos pontos altos de seu livro40, ele detecta o caráter medieval de hábito bem brasileiro. A tendência à omissão do nome de família no tratamento social é continuidade e intensificação de hábito da Idade Média, pois os sobrenomes surgiram apenas a partir do século XII41. Falta, contudo, notar a identidade medieval das modalidades de tratamento social preferidas pelos brasileiros. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, o cristianismo desde suas origens estimulou um clima intimista entre mundo terreno e mundo sagrado. Mesmo no Antigo Testamento, mais formalista, o salmista dirige-se a Deus na segunda pessoa. Os cristãos adotaram a prática desde o início. Como na inscrição da base do arco triunfal da Basílica de São Pedro, do começo do século IV, onde o imperador oferece aquela igreja a Cristo e seus apóstolos: "Porque sob tua direção o mundo se levantou triunfante para o Céu,/ Constantino, vitorioso, fundou para ti esta igreja"42. Tratamento igual é recorrente no Liber Ordinum, coletânea ibérica de orações do século V ao XI43. Na mais importante suma hagiográfica medieval, a Legenda Áurea, de meados do século XIII, ocorre a mesma coisa. Em livro litúrgico ibérico do século XV, a missa é chamada de ritual ad tuum altare44. Nas nascentes línguas vernáculas a tendência foi a mesma. No francês, o tu (c.980) é anterior ao vous como singular de deferência (c.1050), o verbo "tratar-se por tu" surgiu em fins do século XIII (tutoiser, 1280-1290; tutoyer, 1393), o "tratar-se por vous" no XIX (vouvoyer, 1834). No castelhano, entre o século XII e XIV, o vos de reverência ganhou valor de tú (que acabaria por substituí-lo na Espanha e certas colônias) e foi nessa acepção familiar que penetrou em outras colônias (como Argentina, Uruguai, Paraguai). No português, o "vós" singular (século XIII) foi sendo gradativamente eliminado pelo "tu" e posteriormente pelo "você" (1665). No Brasil, o "tu" predomina nos extremos do país e o "você" no restante, salvo no Nordeste onde "vós" continua cotidiano e informal, com verbo na terceira pessoa do singular45. O sentido respeitoso do latim senior ("o mais velho") penetrou nos idiomas românicos e gerou em francês sire (c.1050, depois, com o possessivo, monsor, em 1297, monsieur, em 1314), em castelhano señor (1077), em italiano signore (1219) e apenas tardiamente em português "senhor" (século XIII). Quer dizer, as demais línguas românicas têm uma dupla lexical de consideração social (vous/Monsieur, usted/señor, Lei/signore), o português somente uma palavra para isso (senhor) e uma dupla para a familiaridade (tu/você). Ou seja, por herança medieval o Brasil guarda formas democráticas de trato social no interior de sociedade senhorial, enquanto a França, por exemplo, preferiu formas aristocráticas de trato social no seio de sociedade democrática. A CULTURA ARCAIZANTE Existem planos culturais tão profundos, tão integrados na vida brasileira, que habitualmente sua origem medieval sequer é percebida. O mais importante deles é o da língua. Se um cidadão português atual encontra na língua falada no Brasil vocábulos e expressões em desuso, apesar do sprachliche Ausgleichung em curso devido aos atuais meios de comunicação de massa, é porque aquela última guarda inegáveis traços medievais. No plano sintático, o uso brasileiro da próclise onde os portugueses adotam a ênclise registra o estado da língua nos séculos XV-XVIII. No plano lexical, um levantamento recente revela, na fala de idosos analfabetos do interior de Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e São Paulo, formas do português dos séculos XIII-XVI (por exemplo, esmolna, demudar, pessuir, despois, preguntar, quaje, fige, mensonha, etc.), levadas àqueles locais pelos bandeirantes. No plano prosódico, o português brasileiro mantém a situação de 1200-1350, que sofreu poucas mudanças até o século XVI: por exemplo o final o pronunciado como u e o e como i, fato que se conservou também no português de Açores e de áreas periféricas de Portugal. Enraizada na América, a tradicional pronúncia das sílabas pré-tônicas não desapareceu apesar de essa ter sido a tendência em Portugal na passagem do século XVIII ao XIX46. Nada de estranho nesse quadro, pois é bem conhecido o fenômeno de os idiomas transplantados serem mais conservadores do que os das suas regiões de origem. Cícero já tinha chamado a atenção para o fato de na sua época ouvir-se na Gália palavras em desuso em Roma47. Ademais, a tendência arcaizante é própria da língua portuguesa como um todo, porque o latim ibérico tinha sido menos evolutivo que o da Gália48 e o de Portugal mais resistente a certas germanizações, como demonstra o fato único entre os idiomas românicos de nomear os dias da semana não a partir das divindades pagãs (lunedì, lundi, lunes, "dia da Lua", etc.) e sim de ordená-los com a palavra latina feria. Tal conservadorismo reforçou-se no Brasil a partir de 1550 com a chegada de lusitanos oriundos dos Açores e da Madeira, locais em que a colonização começada por volta de 1430 havia criado devido ao isolamento um tipo de linguagem ainda mais arcaica, então transferida ao Brasil. Em suma, afirma Serafim da Silva Neto, "não será exagerado classificar a língua dos primeiros colonizadores como pertencente ainda ao século anterior, isto é, representando um sistema lingüístico muito antigo"49. Da mesma maneira e pela mesma razão que a européia medieval, a cultura brasileira está baseada na oralidade. De fato, se ainda em 2006, segundo o IBGE, 9,6% da população é analfabeta absoluta e os analfabetos funcionais (pessoas incapazes de ler e escrever textos simples) constituíam-se em 16,4% dos brancos, 27,5% dos negros e 28,6% dos mestiços, essas cifras eram bem mais elevadas décadas antes. Entende-se assim o sucesso da radionovela na primeira metade do século XX e da telenovela posteriormente. Essas literaturas orais cumprem de forma eletrônica e prolongada (duram meses) as tradicionais funções da literatura de cordel (sociabilização de familiares e amigos reunidos em torno do rádio e atualmente da televisão; satisfação de necessidades psicológicas básicas através de arquétipos literários). Elas são a performance definida por Paul Zumthor para a literatura medieval50. Todavia, o sucesso dos modernos veículos de comunicação não excluiu da sociedade brasileira a literatura de cordel. Embora tenha passado a ser impressa a partir de fins do século XIX, ela conservou sua intenção de oralidade, sendo lida em voz alta para um público não-leitor. Daí ser literatura sempre arcaizante, na qual o poeta popular, ao contrário do culto, é tão mais respeitado quanto menos original, quanto menos rebelde às formas e conteúdos tradicionais. Por meio desse processo criativo que preserva valores já abandonados pela sociedade global, ele realiza uma "crítica a esta sociedade, mesmo sem o pretender conscientemente"51. Ora, tais valores são inegavelmente medievais, por isso aquela literatura representa janela privilegiada sobre nossas raízes profundas. Da mesma forma que a literatura européia medieval, freqüentemente o cordel brasileiro associa cavaleiros e clérigos, quer dizer, no ambiente nordestino, cangaceiros e líderes messiânicos. Algumas vezes características dos dois tipos são reunidas no mesmo personagem. No último quarto do século XIII a tradução portuguesa de A Demanda do Santo Graal atribui forte traço messiânico a Galaad e clara supremacia do sacerdócio da virtude sobre o sacerdócio oficial. Galaad foi o modelo de D. Nuno Álvares Pereira, o construtor da nacionalidade portuguesa em fins do século XIV e grande leitor das narrativas artúricas. Por isso, se Galaad é o "cavaleiro desejado", forte e puro, protetor de humildes e mulheres, Lampião é descrito como alguém que "não temia/ a ninguém no mundo inteiro [...]/ ele protegia ao pobre/ com todo prazer que tinha/ defendia uma criança/ uma velha, uma mocinha"52. A crença medieval de que o rei Artur não teria morrido e esperava escondido o momento de voltar foi reatualizada e reintensificada em Portugal quando D. Sebastião morreu na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, jogando Portugal em profunda crise política, com perda da independência. O messianismo sebastianista não era apenas popular, mas também erudito, como provam o Vieira e os jesuítas que o difundiram na colônia. O terreno era favorável para tanto graças à tradição que identificava o local de repouso de Artur como sendo a ilha Brasil e aos movimentos messiânicos indígenas, daí o sebastianismo ter se mantido vivo no Nordeste pelo menos até o século XIX, como indicam os eventos da Cidade do Paraíso Terrestre, do Reino Encantado e de Canudos, todos baseados no mítico retorno do rei53. Também na literatura culta brasileira a Idade Média esteve e está presente. Os exemplos possíveis seriam vários54. No século XVII, a poesia do baiano Gregório de Matos é trovadoresca tanto na sua sátira quanto no seu misticismo, daí ser considerado o "Villon brasileiro"; a prosa do padre Antônio Vieira expressa em vários momentos o milenarismo-messianismo medieval prolongado no sebastianismo português (História do Futuro, 1649; Clavis Prophetorum, 1663). No século XVIII, modelos medievais inspiraram algumas vezes a cronística (caso do franciscano pernambucano Antônio de Santa Maria Jaboatão, 1695-1779), a genealogia (Pedro Pais Leme, 1714-77), a épica moralizante e plena de maravilhoso cristão do agostiniano mineiro José de Santa Rita Durão (Caramuru, 1781). No século XIX, a do maranhense Antônio Gonçalves Dias oscila algumas vezes entre o lírico (Sextilhas de Frei Antão, 1848) e a gesta (I Juca-Pirama, 1851); a do mineiro Alphonsus de Guimarães está centrada nos três "inimigos da alma" (diabo, carne, mundo), como na obra dos eclesiásticos medievais; na produção do cearense José de Alencar aparecem diversos elementos do imaginário medieval, sobretudo em O Guarani (1857) e em O Sertanejo (1875). No século XX, o paulista Mário de Andrade não se isentou de elementos medievais no seu Macunaíma (1928); nem o paraibano Augusto dos Anjos no poema Barcarola (1912) segue o subgênero poético medieval que dá título à obra; ou o pernambucano João Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina (1954-55), auto no modelo ibérico medieval; ou ainda o paraibano Ariano Suassuna, em seu "romance armorial" A Pedra do Reino (1971), amplo painel de temas medievais55. Tampouco o mineiro João Guimarães Rosa, cujo Grande Sertão: Veredas (1956) debaixo de sofisticada criação literária reaproveita intensamente elementos medievais. Em especial, já se notou, da tradição carolíngia, que, além de motivos e temas, marca no romance a própria estrutura narrativa, centrada na idéia do combate entre mouros e cristãos56. Mas não somente carolíngia. Há várias passagens de forte sabor medieval de outras procedências: a travessia dos jagunços pelo vale da Guararavacã do Guaicuí lembra uma estada no Paraíso; eles vagam pelo deserto como exilados na Terra, daí a ausência do Pai, pois o herói e narrador, Riobaldo, é órfão; este assume diferentes nomes conforme as circunstâncias, da mesma forma que santos, papas e cavaleiros; o grande amigo e paixão de Riobaldo, Diadorim, era mulher que vivia disfarçada de homem, fato revelado pelos preparativos para seus funerais, topos da hagiografia medieval. Aquilo que levou recentemente um estudioso a considerar Grande Sertão: Veredas como precursor da Internet - forma narrativa não-linear, associativa, hipertextual, em rede - nada mais é na verdade do que um elemento central do mundo medieval, o pensamento analógico57. Quanto às principais manifestações dionisíacas da cultura brasileira, o futebol e o carnaval, a antropologia histórica retrospectiva pode mostrar que decorrem da visão de mundo de uma sociedade fronteiriça e cruzadística como tinha sido desde suas origens a de Portugal e a de sua extensão colonial. Predomina nela, de fato, o espírito que prefere o risco e não o planejamento, que coloca a esperança de sucesso em um golpe de sorte e não em esforço continuado, que valoriza atos de coragem e não de lucidez, que considera sinal de inteligência enganar o outro. Logo, não por acaso as palavras-chaves daquelas duas expressões culturais são "improvisação" e "ilusão". Bem entendido, a origem do futebol tal qual o conhecemos hoje é recente, vem da Inglaterra de fins do século XIX, porém derivado de modalidades lúdico-esportivas medievais das quais guardou certos traços de personalidade. Enquanto na maior parte da Europa aquele esporte está centrado no espírito de concorrência capitalista e de fair-play protestante, no Brasil ele manifesta traços de nossas raízes medievais. Aqui ele recebe a adesão que se conhece por permitir ao indivíduo participar de uma corporação (equipe, torcida) que tenta superar outras (no interior das regras com o drible, fora das regras com a simulação de faltas ou mesmo a violência). Por ser um jogo com o destino baseado para alguns na esperança de que uma situação favorável seja prolongada, para outros que uma situação difícil não perdurará, para outros ainda que o mais forte não ganhará sempre. A deusa Fortuna, cara aos pagãos antigos e também aos cristãos medievais, é instituição nacional: "não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe", diz o conhecido provérbio. Porque a história nacional é relativamente curta para mostrar mudanças importantes no destino coletivo, o futebol parece significar o melhor exemplo do equilíbrio necessário entre esperança e desesperança58. O carnaval, por sua vez, remonta sua genealogia à Festa dos Loucos, que na Europa dos últimos séculos medievais funcionava como exutório das tensões sociais ao temporariamente suspender barreiras hierárquicas e interditos morais. No Brasil colonial, apesar de proibido, desde o século XVI, o Entrudo português cumpria papel semelhante59. No Brasil atual, a despeito de variantes regionais, o carnaval faz a mesma coisa por liberar abertamente a nudez, os gestos eróticos, os excessos alcoólicos. É mundo ao contrário por valorizar habilidades populares (música, dança, fantasias, carros alegóricos), por colocar no centro da atenção social gente dos estratos sociais desfavorecidos (na função de compositores e passistas). É utopia de três dias com sua falsa riqueza (fantasias de papel e pedras coloridas), sua ordem social efêmera (definida pelo papel de cada indivíduo no desfile de sua escola de samba), sua vida bem compassada (o ritmo é critério fundamental entre as notas atribuídas ao desfile). Aliás, se o ritmo é talvez o traço mais marcante do futebol e do carnaval, é porque embora essencial para todas as sociedades ("socialmente e individualmente o homem é um animal rítmico", notou Mauss) ele o é ainda mais para as arcaicas, inclusive a medieval (nas modernas há certa desritmização, constatou Michon)60. Com efeito, a Europa daquela época não era átona, pelo contrário, cantava, escandia, ritmava, por razões estéticas e de memorização. Ela também dava lugar de destaque ao ritmo gestual, presente na liturgia, na linguagem manual dos monges, nos torneios. O ritmo cromático facilmente perceptível no futebol e no carnaval é herança indígena, africana e geográfica (sol, mar, vegetação, fauna), mas igualmente medieval61. Parte mais evidente ainda do legado medieval é outra manifestação festiva, a cavalhada62. A despeito das variantes locais, pode-se descrevê-la como simulacro de batalha entre um grupo representando os cristãos e outro, os mouros. A encenação começa com os primeiros propondo aos segundos a conversão, cuja recusa dá início à luta feita de gestos beligerantes e palavras desafiadoras, com música e danças entremeadas, até que o confronto lúdico se encerra com a vitória dos cristãos. Não é secundário que estes estejam fantasiados de azul e os mouros (grupo muitas vezes constituído de negros e mestiços) de vermelho, isto é, de acordo com a oposição cromática e valorativa entre a cor celeste e marial e a cor infernal e satânica, "a cor do outro" na definição de Michel Pastoureau63. Como toda rememoração, esta não era neutra, as velhas lutas entre mouros e cristãos serviam no contexto colonial de estímulo à submissão e conversão de índios e negros, e no contexto atual reforçam a identidade coletiva, daí os "mouros" de um ano voltarem na festa seguinte como "cristãos". A modalidade musical considerada mais tipicamente brasileira - o samba-, embora seja quase sempre definida como criação do século XIX a partir de elementos africanos, já foi vista como música de origem portuguesa devido ao seu sistema harmônico e tonal, aos instrumentos musicais europeus, à importância da improvisação, à possível origem da síncope no 6/8 lusitano64. Um dos instrumentos mais usados para obter essa batida já era comum em Portugal de fins da Idade Média, onde, de acordo com Gil Vicente, havia "em cada casa pandeiro". Uma das grandes características do samba fora do âmbito comercial é sua performance, a participação do público que transforma em obra coletiva a música, mesmo quando de criação individual bem identificada, de forma semelhante à que ocorria nas narrativas medievais, acompanhadas ou não por música65. Não é só o samba que parece ecoar influências medievais. É interessante notar que a revivificação da cultura occitana em fins do século XX revelou similaridades tanto entre o forró brasileiro e a canção trovadoresca (ambos tocados com acordeão, triângulo, violão e zabumba) quanto entre as improvisações poéticas dos emboladores nordestinos e as dos trovadores nas suas tençons, formas estéticas que do Midi alcançaram a Galícia, daí Portugal e, através deste, o Brasil66. Enquanto a culinária do Norte brasileiro possui inegáveis traços indígenas e a do Nordeste claras raízes africanas, a de Minas não nega sua filiação portuguesa com abundante recurso à carne de porco e de galinha, ao feijão, à couve, ao ovo, à banha suína. Podemos mesmo perguntar se o prato nacional por excelência - a feijoada - não teria algumas raízes medievais. Apesar de ele ter registro apenas no século XIX e de o feijão-preto ser de origem americana, desde o século XII a Europa conhecia diferentes preparações cozidas de feijão (palavra atestada em português desde o século XIII), ou outras leguminosas67, com carne de porco, caso do cassoulet tolosano, da fabada asturiana, do cocido montañés cantábrico, do feijões de Treviso veneziano, da feijoada trasmontana, do petit-salé (à base de ervilha) auvérnio. Na mesma época os muçulmanos introduziam na Hispânia o arroz. Era comum por toda a Europa, de Portugal à Polônia, a couve, geralmente usada sob forma de sopa, se possível com algum embutido (preparação que com a batata americana viria a constituir o moderno caldo-verde português). Ou seja, os ingredientes da feijoada eram bem conhecidos desde a Idade Média. Destarte, não é absurdo, como hipótese, definir a feijoada como prato estruturalmente medieval ao qual as regiões coloniais portuguesas agregaram produtos regionais. Origem, longevidade e facilidade de preparo que explicariam, aliás, sua adoção pouco adequada em clima tropical68. Essa possível origem da nossa feijoada estaria confirmando as raízes medievais do país pois, diz Claude Lévi-Strauss, as estruturas de uma região são inconscientemente traduzidas pela sua cozinha69. A RELIGIOSIDADE SINCRÉTICA E INFORMAL Ninguém que se interesse pelos fenômenos religiosos negaria a importância de manifestações como as peregrinações a Aparecida do Norte e Juazeiro ou a impressionante procissão do Círio de Nazaré, em Belém do Pará. Mas talvez poucos associariam essas atuais expressões religiosas brasileiras a um traço fundamental da mentalidade medieval, o contratualismo, ou seja, a troca de serviços humanos por favores divinos70. E, no entanto, se as peregrinações estão em recuo na contemporaneidade européia (excetuados os casos de Compostela, Fátima e Lourdes, as duas primeiras ibéricas...) e mantêm-se fortes naqueles casos brasileiros, é exatamente pela relação inversa que as duas sociedades têm com suas origens medievais. A européia vê na Idade Média uma etapa forte do seu passado, portanto objeto de estudo legítimo e privilegiado, mas não dado do seu presente. A brasileira vê com reticências a validade do estudo daquela época, recusando que esteja ligada a ela, porém vivencia-a muito mais do que imagina, como estamos sugerindo. É o caso do sincretismo religioso típico do Brasil com sua mescla de catolicismo, xamanismo indígena, crenças africanas e, mais recentemente, religiões orientais e seitas evangélicas, que prolonga, com outros componentes, a religiosidade sincrética da Europa medieval. Assim como nesta ocorrera uma cristianização do paganismo clássico e uma paganização do cristianismo, na colônia portuguesa houve cristianização dos negros e africanização do cristianismo. Cristianismo que era mais medieval que pós-tridentino devido ao isolamento do Brasil e ao caráter arcaico de sua população e suas instituições71. Não por acaso já foram encontrados nas tradições populares brasileiras hábitos, comportamentos e crenças presentes em Dante Alighieri. O Paraíso hierárquico e feudal do poeta florentino corresponde à concepção que dele tinham brasileiros entrevistados entre 1923 e 1945 por Luís da Câmara Cascudo. Embora este considere o homem psicologicamente regional, parece que, como comentou Giuseppe Cocchiara, "as tradições populares [...] são no povo sempre pura história contemporânea". Daí por que existe larga faixa de encontro entre as superstições observadas pelo etnólogo brasileiro no Nordeste do século XX e aquelas da Europa medieval estudadas por Jean-Claude Schmitt72. Com efeito, campo cultural considerado do ponto de vista moderno como austero, a religião foi na Europa medieval freqüentemente vivida de outra maneira, e no Brasil de ontem e de hoje também. Aqui como lá, o poderio da Igreja e da religião institucionalizada não corresponde à prática e aos sentimentos religiosos. A origem disso pode estar no espírito e na estratégia de conversão dos nativos americanos, que não foi essencialmente diferente dos da Alta Idade Média quando da evangelização das populações européias pagãs. Nos dois casos recorreu-se à aculturação forçada (batismos em massa, cristianização formal de divindades locais, etc.) e mesmo à pura violência contra os pagãos (germanos num caso, indígenas no outro). Em ambas as situações importante instrumento foram os sermões, como os do monge São Bonifácio no norte europeu alto-medieval e os do jesuíta José de Anchieta na colônia portuguesa americana. A formação territorial portuguesa feita às custas de terras reconquistadas aos muçulmanos foi uma longa Cruzada, transferida para além-mar quando aquela primeira etapa completou-se em 1249. As expedições ao litoral africano que começaram em 1415 receberam bula de Cruzada. A ocupação do Brasil teve inegáveis aspectos cruzadísticos e evangelizadores. No relatório que apresenta ao rei, Pero Vaz de Caminha parece mais entusiasmado com as possibilidades de conversão - os indígenas "não têm nem entendem crença alguma", e por isso "se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé", de acordo com a intenção do rei "que tanto deseja acrescentar à santa fé católica" - do que com as potencialidades materiais da terra recém-alcançada: "o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente"73. Segundo um estudioso do tema, uma das características do catolicismo brasileiro colonial é ter sido "patriarcal", ter estado a serviço do senhor local, coerentemente com o quadro social de então. É verdade, e exatamente por isso não se pode concordar que ele tenha sido "criação genuinamente brasileira"74. Na Europa a Igreja esteve por longo tempo (888-1057) sob o domínio dos senhores laicos, que podiam vender, doar ou transmitir em herança as igrejas e mosteiros erguidos em suas terras; podiam apropriar-se das esmolas e dízimos; podiam nomear sacerdotes, cuja função desde o século VIII era atribuída a título de beneficium ou feudo75. O "catolicismo patriarcal", prossegue aquele autor, estabeleceu na colônia uma espécie de sociedade de ordens. De novo a constatação é correta, mas não se pode esquecer que a partir de longínquas origens indo-européias aquela tenha sido a forma medieval de organização social, baseada em hierarquia tripartida de oratores (eclesiásticos), bellatores (guerreiros) e laboratores (trabalhadores braçais). Por fim, o mesmo estudioso destaca que o "catolicismo patriarcal" escapava à legislação clerical, facilitando o sincretismo religioso e criando um "catolicismo popular" distinto daquele. Mais uma vez, a base desse fenômeno é nitidamente medieval. A fraqueza institucional e certa indefinição dogmática que caracterizaram a Igreja até o século XI favoreceram a sobrevivência de uma religiosidade cristã autônoma, à qual não escapavam os próprios eclesiásticos. Somente a partir daquele momento a plasticidade do cristianismo medieval foi recuando diante da monarquização do papado, da dogmatização do pensamento, da liturgização da sensibilidade, da canonização dos santos, da erradicação das heresias. Se o cristianismo tem "tendência à intolerância", esta claramente se acentuou desde o século XII, quando se estabeleceu que os hereges devem ser induzidos a aceitar a salvação mesmo contra sua vontade76. Para tanto foi criada no sul francês a Inquisição, em 1229. Em 1252, em nome do bem da coletividade, ela recebe do papa autorização de praticar a tortura para identificar, localizar e reprimir formas de pensamento diferentes da canônica. Introduzida em Portugal em 1547, subordinada à autoridade monárquica, a Inquisição chegou ao Brasil em fins do século XVI com a mesma função controladora das consciências e repressora de idéias não-oficiais. Toda diferença deveria ser anulada: Vieira sonhava com o momento em que os portugueses poderiam banhar suas espadas "no sangue dos hereges na Europa, no sangue dos muçulmanos na África, no sangue dos pagãos na Ásia e na América"77. A atuação da Inquisição tanto na metrópole portuguesa quanto na colônia americana parece ter introduzido na psicologia coletiva uma "razão da força" que não deixaria de ser utilizada séculos depois em certos momentos da vida política dos dois países. Como bem viu Laura de Mello e Souza, na nossa história a intolerância é legado colonial, ao que é preciso acrescentar que esta tinha, por sua vez, inegáveis origens medievais78. O fato não está descolado, é claro, do catolicismo colonial que já foi definido como "messianismo guerreiro dos portugueses colonizadores", religião penetrada pela idéia de guerra santa e de santos guerreiros, caso de Santo Antônio, que, no nosso contexto, tornou-se uma espécie de capitão-do-mato caçador de escravos foragidos79. Ora, esse belicismo mental tinha sido um dos grandes traços caracterizadores da psicologia coletiva do homem medieval, que no caso particular da Península Ibérica levara o pacífico apóstolo Tiago a ser visto como matamoros80. Mas o principal campo de batalha deve ser na própria mente, contra pensamentos impuros, e no próprio corpo, contra seus impulsos, daí a necessidade da mortificação, propugnada por muitos relatos de cordel e sobretudo por uma espécie de suma catequista bastante difundida no Nordeste brasileiro no século XIX, a Missão Abreviada. Para esta, prolongando o contemptus mundi dos monges medievais, "ninguém se despreza como deve"81. É por esse aspecto penitencial que Antônio Conselheiro carregava consigo a Missão Abreviada82. Se em região menos tocada pelas culturas africana e indígena como era a Minas Gerais do século XVIII geralmente se comungava apenas na Quaresma, não se tratava de situação nova, colonial, pois tinha sido comum na Europa medieval como um todo, inclusive em Portugal, onde mesmo um devoto como Nuno Alvares comungava apenas quatro vezes ao ano83. Se "o mistério da transubstanciação sempre traz dificuldades de compreensão" na Minas colonial84, era porque desde a Idade Média a questão colocava problemas. Ao contrário do conceito teológico da transubstanciação, elaborado em fins do século XI contra hereges espiritualistas, a maioria dos fiéis entendia a mudança de substância do pão em carne de Deus como ato mágico do sacerdote. Eles queriam ver a hóstia no momento em que ocorria o mistério divino, o que levou no século XIII à generalização do rito de elevação. Acreditava-se que olhar a hóstia naquele momento trazia benefícios à saúde. A prática de roubar hóstias consagradas para fazer amuletos foi comum tanto na Europa medieval quanto no Brasil colonial85. Outro claro medievalismo da vida religiosa brasileira são os muitos santos populares, figuras reverenciadas pela população mesmo sem terem recebido aprovação eclesiástica. O caso mais conhecido é o de padre Cícero, fervorosamente cultuado no Nordeste. Ele fez carreira política, ganhou fama de milagreiro, mas sempre despertou desconfiança das altas autoridades eclesiásticas, que em 1893 cassaram-lhe as ordens sacerdotais. Sua popularidade não diminuiu, contudo, e após sua morte ergueu-se em Juazeiro uma estátua dele com 27 metros de altura (menor apenas que a do Cristo Redentor do Rio de Janeiro), que atrai anualmente milhares de peregrinos. Santificações espontâneas e laicas como essa haviam sido comuns na Europa até fins do século XII, quando a Igreja passou a controlar e definir os processos de canonização. Mesmo depois, porém, novos objetos de culto continuaram a surgir, inclusive um cachorro que curava crianças86. Em Portugal o processo não foi diferente, pelo que sugere a crítica do bispo Martinho de Braga no século VI, tanto que em 1640 uma imagem do sapateiro Gonçalo Eanes Bandarra, considerado profeta da Restauração, tenha sido exposta num altar da Sé de Lisboa segundo o testemunho do padre Vieira. Na sua análise do homem cordial, Buarque de Holanda aponta com razão a "intimidade quase desrespeitosa" que se dirige aos santos, expressão de "uma religiosidade de superfície". E reconhece que tal procedimento vinha da Europa medieval87. Todavia não explora esse fato, e assim deixa de lado um material que poderia lançar luzes sobre a religiosidade mais formal que espiritual do brasileiro. De fato, pressionados por condições materiais difíceis e impressionados pelas forças da natureza, os homens da Idade Média tendiam a exteriorizar seus sentimentos religiosos. A comunicação com o mundo divino dava-se por meio de gestos, palavras, objetos, mais do que através de reflexão e interiorização. Os santos eram respeitados não por suas virtudes, mas por seus poderes. Quando um santo não atendia ao pedido do fiel era ofendido, maltratado e punido. Usava-se seqüestrar imagens santas, mesmo de Cristo, para coagir os poderes superiores. Em Portugal não foi diferente do restante da Europa medieval, com tal prática tendo se prolongado na longa duração histórica até, pelo menos, meados do século XX, apesar de combatida pelas Ordenações do Reino de 1403 e pelas Constituições sinodais de Braga de 169788. Em toda a Europa da Idade Média, inclusive Portugal, restos de corpos santos procurados por seu pretendido poder miraculoso eram comprados, trocados, roubados, falsificados89. Outra importante expressão da sensibilidade coletiva, que, sem ser específica da Europa medieval cristã, ali teve papel essencial, foi o messianismo milenarista. Assim, não é estranho que ao longo da história luso-brasileira largas parcelas populacionais tenham aguardado a vinda de um Messias e a conseqüente instalação de uma sociedade perfeita que anteciparia a sociedade paradisíaca. A crença veterotestamentária em um Messias-rei, a tradição mítica do retorno messiânico do rei Artur e toda a atmosfera apocalíptica medieval confluíram, em 1578, no desaparecimento do rei D. Sebastião diante dos muçulmanos, o que fez dele a síntese das expectativas messiânicas portuguesas. Ele estaria, como Artur, em uma caverna ou em uma ilha esperando o momento de voltar e resgatar a grandeza de seu povo. A sensibilidade sebastianista não deixou, como se sabe, de ter desdobramentos na colônia americana, o mais importante deles o movimento liderado por Antônio Conselheiro em Canudos, no interior da Bahia, e duramente reprimido em 1897. A força do fenômeno permaneceu no imaginário nordestino, tanto que pouco antes da eleição presidencial de 1989, pelo que se noticiou, quando o então candidato Lula estava em Canudos distribuindo pão e começou a chover, a população local viu nele um novo Antônio Conselheiro90. O profetismo bíblico e medieval freqüentemente anunciava através de sonhos o Messias e uma Nova Era, e o mesmo ocorreu com Vieira e o padre Cícero. Como os profetas bíblicos, eles criticavam e orientavam os governantes, o rei de Portugal no primeiro caso, o governador do Ceará no segundo91. No imaginário nordestino, atestam muitos relatos de cordel, o profeta e o Messias fundiram-se na figura do padre Cícero. Este é o próprio Cristo, que voltou ao mundo como um bebê que a Virgem trocou com outro recém-nascido. Para os fiéis, Juazeiro é Jerusalém, o Riacho Salgadinho é o bíblico Rio Jordão, a Serra do Catolé, onde ele orava, é o Horto das Oliveiras e "fica no centro do mundo" segundo um cantador que desloca assim para o Nordeste brasileiro o topos de Jerusalém "umbigo do mundo". É nessa Jerusalém nordestina que se dará o Juízo Final, quando o santo reconduzirá seus romeiros de volta ao Paraíso92. O espírito milenarista que alimentava nos medievais uma expectativa escatológica latente, aflorada em datas simbólicas, manifesta-se nessas mesmas circunstâncias no Brasil. Em fins de 1899, a proximidade do fim do século e a crença de que a passagem do cometa Biela marcava o fim do mundo enlouqueceram algumas pessoas, houve pelo menos um suicídio e uma morte por estado de choque. Um século depois, diante da proximidade do fim do milênio, pessoas se mataram no Piauí, presos foram libertados porque o mundo ia acabar93. Diante de suas dificuldades concretas, tanto a sociedade medieval quanto a brasileira parecem se anestesiar com a imagem de um novo mundo messiânico. Para um apócrifo bíblico muito popular na Idade Média, "nesses dias toda a terra será cultivada com justiça; toda ela ficará cheia de árvores e de bênçãos. Nela serão plantadas toda espécie de árvores aprazíveis e de vides, [...] cada semente produzirá mil"94. Para um homem simples do interior paulista no século XX, depois do Anticristo um anjo de Deus descerá do céu e "um boi assado vai correr a terra, de casa em casa, com um garfo e uma colher fincados"95. Para um folheto de cordel, "daí por diante será/ um viver de sensatez/ não haverá mais misérias/ nem domínios de outros reis"96. Arraigada, essa crença na superação da fase apocalíptica com a inauguração da etapa messiânica parece ter sido sintetizada na máxima adotada pelo Partido dos Trabalhadores após sua vitória na eleição presidencial de 2002: "A esperança venceu o medo". A PSICOLOGIA COLETIVA CICLOTÍMICA "Quando as glórias que gozei/ vou na idéia revolver,/ sinto à força da saudade/ meu triste pranto correr./ Os que já tive, doces momentos,/ são hoje a causa dos meus tormentos." Esta canção anônima brasileira sintetiza bem um tema recorrente da sensibilidade lusitana desde o século XIII - a saudade. Na música popular brasileira ela aparece em todos os gêneros e em todas as épocas. Ela pode se referir a uma pessoa, a um tempo, a um espaço, a um fenômeno natural, a um objeto. Em todos os casos, "a saudade é dor pungente/ a saudade mata a gente". Muitas vezes se pensou que sentimento tão forte e onipresente na psicologia lusitana resultara justamente da expansão ultramarina, do afastamento da "pequena casa portuguesa" na conhecida metáfora de Fernando Pessoa. Mas a palavra é de princípios do século XIII, revelando a tomada de consciência de sentimento evidentemente anterior. Como Jean Starobinski observou com razão a propósito de outro conceito, "o sentimento não é a palavra, mas não pode se disseminar a não ser através de palavras. A história dos sentimentos não pode por isso ser outra coisa que a história das palavras pelas quais a emoção se enuncia"97. Ora, a noção de saudade é algumas vezes aproximada da de "melancolia", mas como esta palavra existia há séculos em latim e desde 1176 em francês (língua bem conhecida no Portugal de então)98, dificilmente teriam surgido em português na mesma época soydade e melanconia se os termos se recobrissem. Como este último designava, é sabido, um estado psíquico negativo e indefinido, um desencanto em relação à vida (melas = negro, kholia = bile), aquele primeiro surgiu para indicar algo mais preciso. Talvez por isso, ele é com freqüência confundido (sobretudo por não-lusófonos) com nostalgia, palavra criada em 1688 pelo médico alsaciano Johannes Hofer para designar nosograficamente a falta da terra natal (Heimweh)99. O étimo grego nostos, "retorno", não deixa dúvida quanto ao seu sentido espacial: trata-se de dor (algos) à espera do retorno. Por isso mesmo o vocábulo foi rendido em francês (nostalgie) no sentido de maladie du pays,e ganharia acepção igual em inglês (nostalgia). Porque tinha "saudade", a língua portuguesa demorou a incorporar "nostalgia" a seu léxico (1836), bem depois do francês (1759), do italiano (1764), do inglês (1770). Saudade é, portanto, sentimento de falta, de ausência. Do quê? Aparentemente, da mesma forma que "nostalgia" quatro séculos mais tarde, de um espaço amado e perdido: "pero das terras averei soidade", cantava Nuno Eanes Cerzeo na segunda metade do século XIII. Mas, por sinédoque, essa perda era também das pessoas que ali viviam: "eu das gentes algun sabor avia", explicitava o mesmo trovador100. Ter saudade é estar distanciado do objeto de amor. Como na pluma dos trovadores medievais, o objeto de amor é idealizado, estereotipado101, é menos uma mulher concreta que o próprio Amor, provavelmente também seria menos uma terra conhecida do que a Terra por excelência, o Éden. Essa hipótese é reforçada pela comparação entre uma canção de D. Denis, de fins do século XIII, na qual se dá a segunda ocorrência da palavra (soydade), e uma hagiografia cujas particularidades lingüísticas levam a pensar que seria do século XIV ou anterior102. A canção fala na saudade de uma senhora que leva o trovador a rogar a Deus "que mh a leixe, se Lhi prouguer, ueer", caso contrário ele pode "enssanceder ou moirer con pesar", pois "se a non uyr, non posso uiuer". A hagiografia, por sua vez, diz que o santo tinha "grã desejo de veer o parayso terreall e que nuca folgava se nõ quando ouvya fallar e elle. E em seu coraçõ senpre rrogava a Deus que lhe demostrasse aquell lugar ante que ell do mudo saysse"103. Também é interessante notar que alguns anos antes de D. Denis, no começo da década de 1260, as Cantigas de Santa Maria usaram três vezes a palavra (grafada soidade duas vezes e soydade uma) na acepção de "desejo"104. Mas era possível sentir saudade do Éden, espaço não conhecido pessoalmente? Sim, porque "cada homem é Adão"105. Dito de outra forma, a saudade manifesta-se no indivíduo, porém, é sentimento da espécie. Daí a Europa medieval ter sido obcecada pelo desejo de regresso ao Paraíso Perdido. Todo cristão se via neste mundo como "exilado", "estrangeiro", alguém fora do seu lugar, em busca da "pátria celeste". A idéia partiu do Antigo Testamento (incola ego sum in terra), penetrou no Novo106 e atravessou toda a Idade Média. Para Gregório Magno (540-604), autoridade extremamente reputada, "quando o primeiro pai do gênero humano foi afastado das alegrias do Paraíso como decorrência de sua falta, ele veio à tristeza do exílio e da cegueira que sofremos [...] e não foi mais capaz, como antes, de ver as alegrias da pátria celeste"107. Um pensador do século IX faz eco e define a vida terrena como "perda da herança de nossa Pátria Celeste, da qual nos encontramos por muito tempo exilados"108. Um cronista monástico anônimo do século XI afirma que "esta vida é peregrinação em terra estrangeira e não na pátria, prisão de escravidão e não lar de liberdade, exílio de catividade e não moradas da cidade e do reino celestes"109. O mesmo conceito é registrado por um divulgador bastante popular no século XII e um texto oficial do papado no século XIII110. É significativo que na primeira descrição da terra recém-descoberta pelos europeus, Pero Vaz de Caminha tenha enfatizado tanto o caráter adâmico dos indígenas "[...] todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as suas vergonhas. [...] Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto. [...] Então se deitaram na alcatifa, para dormir, sem nenhuma preocupação de cobrirem suas vergonhas [...]. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, muito novas e muito gentis, com cabelos muito pretos e compridos, caídos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. [...] E uma daquelas moças [...] certamente era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha - que ela não tinha! - tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feições, provocaria vergonha, por não terem as suas como a dela. [...] Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres moças, nuas como os homens, que não se apresentavam mal [com] suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que não havia nisso vergonha alguma". Não por acaso, além de dois degradados que a esquadra de Cabral deixou na nova terra, dois grumetes fugiram de noite para aqui ficar111. Séculos depois, alguns folhetos de cordel pregam - como tinham feito os hereges adamitas em fins da Idade Média - a volta ao estado adâmico, para o qual a habitação deve ser uma gruta, a vestimenta os próprios cabelos, a alimentação apenas vegetais112. É inegável que a identificação bíblica entre "exilado" e "estrangeiro" atravessou os séculos. Sendo o exílio punição pelo Pecado Original, portanto penitência, era também "peregrinação longe do Senhor"113. É essa dolorida distância - os textos são unânimes em afirmar que a maior limitação fora do Paraíso é o afastamento da beatitude divina - que fundia os conceitos de "exilado", "estrangeiro" e "peregrino" no de "solitário". Aliás, é expressivo como nas línguas românicas o adjetivo e o adjetivo substantivizado surgiram antes do substantivo abstrato: solitaire/solitude (1190 e 1393), solitario/solitudine (1310 e 1518), solitario/soledad (século XIII e XV), solitário/ solidão/solitude (respectivamente século XIV, 1525 e século XVI). Por isso é bastante verossímil a antiga proposta que faz soidade derivar de solitate114. Em todo caso, a consciência coletiva cristã medieval estava impregnada pela idéia do exílio terreno, desenvolvida, defendida e comunicada pelo clero em toda a Europa ocidental, inclusive Portugal. Apesar de nível intelectual globalmente inferior ao das regiões não fronteiriças da Europa, Portugal conhecia aquelas especulações teológicas por intermédio dos religiosos transpirenaicos que ali se instalaram desde fins do século XI, sobretudo cluniacenses115. Não é sem importância notar que a primeira ocorrência de "saudade" talvez tenha se dado na pena de um trovador clerical, caso aceitemos a hipótese de Carolina Michäelis de Vasconcelos, que vê no apelido Cerzeo uma derivação de cêrceo, isto é, circinus ("tonsurado")116. A segunda ocorrência foi com D. Denis117, o rei-trovador que talvez tenha sido discípulo de Aymeric d'Ebrard, além de influenciado por Bertrand de Ventdorn e Jaufré Rudel. Colocados no extremo da Europa, diante da imensidão do oceano, de um lado, e dos infiéis de outro, os portugueses tiveram talvez por isso a sensibilidade mais aguçada pela expectativa de sair da Finis terrae para a Vera terrae. A figura medieval do homo viator foi a partir do século XV encarnada pelos portugueses, que correram mares e terras para grandeza e riqueza do reino, mas também para purgar a falta ancestral, para cumprir o fado (palavra que significativamente surgiu naquela época) humano. Não é casual, nem deve ser explicado exclusivamente por motivos materiais, que em fins do século XV e começo do XVI dois diferentes monarcas lusitanos tenham enviado emissários em busca do Império de Preste João. É expressivo que se as circunstâncias da expansão marítima e dos interesses portugueses na África levaram, no século XV, a identificar o Preste João com o imperador abissínio, os cronistas do século XVI negaram tal identificação118. Continuou-se a sonhar com o império joânico do Oriente, quer dizer, limítrofe ao Paraíso e por contágio cheio de características paradisíacas119. A saudade foi se enraizando de tal maneira na alma coletiva portuguesa, que apesar de Portugal ser o único lugar no mundo onde esse povo de emigrantes sente-se em casa, mesmo aí "são tão estrangeiros como fora dele" porque "sua verdadeira pátria [é] a do sonho adormecido mas nunca extinto no fundo do seu ser", como bem percebeu Eduardo Lourenço120. Essa pátria onírica é que explica a definição de Teixeira de Pascoaes, em 1911: "a Saudade é irmã da Eternidade"121. Natural, portanto, que a ausência edênica tenha se transferido com os portugueses para a vasta casa brasileira e aqui ganhado intensidade na escala do país. Este se tornou o país do futuro122, primeiro para a metrópole, depois para si mesmo, mas o amanhã tarda a chegar pela pressa em alcançá-lo. O imediatismo dos portugueses que viam na Reconquista e mais tarde na sua colônia americana a possibilidade de obtenção rápida de terras e salvação continua presente no Brasil de princípios do século XXI. O país não sabe esperar. O governo não investe a longo prazo, faz investimentos de fachada que não trazem soluções reais, apenas adiam problemas: um túnel ou viaduto feito em meses é preferido a novas linhas de metrô, que demandam anos; uma política monetária que gera falsas riquezas por curto tempo é preferida a uma política educacional que gere capital humano de qualidade por gerações, a prática assistencialista que remedia a situação de milhões de pessoas é politicamente mais remuneradora do que transformações de fundo. O cidadão comum prefere pagar juros altíssimos e satisfazer de imediato certos desejos, mesmo hipotecando assim seu futuro. Como comentou Eduardo Gianetti da Fonseca, o Brasil precisa fazer "a crítica da razão curta"123. Mas para isso é necessário superar a fase dos debates realistas/nominalistas em que ainda nos encontramos. E a ultrapassagem dela não se dá apenas por voluntarismo. Ainda é forte o sentimento com que o Brasil foi construído e que parte de um passado imemorial (a perda, a Falta primordial) e empurra para um porvir indefinido (porque de tonalidades milenaristas) que paralisa pela envergadura do empreendimento (a reconquista do Paraíso Perdido). A demora em alcançar o futuro parece ser prolongamento da frustração de que a terra vista confessadamente nos primeiros tempos como sendo o Paraíso logo se revelou bem diferente do sonho124. A frustração no transplante de instituições, idéias, hábitos, para outra realidade física levou ao sentimento difuso, bem percebido por Sérgio Buarque, de que "somos ainda hoje desterrados em nossa terra"125. Dividido entre o desejo de acreditar na ilusão herdada de que esta é terra paradisíaca (à qual se atribui os arquétipos medievais de natureza rica, clima agradável, humanidade gentil) e a constatação da dureza da realidade imediata (secas no Nordeste, enchentes no Sul, violência social por toda parte), o brasileiro desenvolveu - se é possível sintetizar questão tão complexa e de tantas nuanças regionais, grupais e temporais - forte instabilidade emocional. Com muita freqüência oscilamos entre sentimentos extremos, seja em relação a uma tarefa cotidiana, a um amor, a um time de futebol ou ao próprio país. Pouco antes de ganhar sua primeira Copa do Mundo, o maior cronista esportivo nacional constatava que "o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética [...] em todos os setores e, sobretudo, no futebol"126. Se nesse campo aquela vitória inverteu o quadro - bom exemplo das bruscas modificações de humor nacional - e desde então "com o brasileiro não há quem possa", como dizia o hino comemorativo à conquista da Copa de 1958, em outros domínios a auto-imagem nacional continua negativa. Tal instabilidade emocional era típica da Europa feudal, como Marc Bloch mostrou há mais de meio século127. Em Portugal, bom exemplo é Pedro I (1357-67), que como rei podia dar vazão a arroubos que nada indica que fossem percebidos como condenáveis. Aliás, se o cronista, que não disfarça sua simpatia pelo monarca, registrou tais impulsos extremados, é provavelmente porque sabia que seus leitores e ouvintes veriam no rei uma espécie de microcosmo da sensibilidade nacional. Se, de um lado, ele punia pessoalmente os malfeitores e não hesitava mesmo em torturá-los para obter confissão, de outro, adorava dançar e dar festas, e certa feita, insone, convocou alguns músicos e saiu de madrugada bailando pelas ruas da cidade128. No Brasil, essa alternância fácil entre desespero e esperança pode ter sido acentuada (como causa? como efeito?) pela alta taxa de adesão declarada a alguma religião: conforme o Censo de 2002, apenas 12,5 milhões no total de 170 milhões de brasileiros negavam ter uma religião. As próprias tentativas de entender o país não escaparam a cores fortes. Separadas por apenas oito anos, a visão de Paulo Prado é negativa ("numa terra radiosa vive um povo triste"), a de Gilberto Freyre positiva ("a miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social, [agiu] poderosamente no sentido da democratização social no Brasil")129. • • • O próprio caráter de dependência em relação ao exterior, que tem marcado nossa sociedade, prolonga - através de outros instrumentos e conceitos - a situação de Portugal medieval. Como sugerimos em outro trabalho e Jérôme Baschet recentemente confirmou, a trajetória histórica dos países ibéricos levou-os a ter um feudalismo atípico decorrente em grande parte da tardia influência transpirenaica. De fato, a partir do século XI a "revolução feudal" reorganizou a sociedade de além-Pireneus, permitindo o crescimento demográfico e gerando uma dinâmica expansionista interna (arroteamentos, conquista das zonas eslavas) e externa (Cruzadas no Oriente Médio, colônias comerciais italianas no Império Bizantino e no Extremo Oriente). Nesse contexto, os territórios ibéricos em grande parte ocupados pelos muçulmanos revelaram-se atraentes a franceses, alemães, ingleses e italianos. Através de peregrinos que se dirigiam a Compostela, de monges da ordem de Cluny que se instalavam na Hispânia, de guerreiros que participavam na Reconquista e se casavam com mulheres da nobreza local, o feudalismo transpirenaico penetrou na península. Porém, marcado por dois traços que fizeram da versão ibérica algo diferente. De um lado, aquela penetração deu-se em meados do século XII, já na etapa feudoburguesa da sociedade transpirenaica. De outro, a organização feudal ibérica naturalmente não foi simples transplante de modelo estrangeiro, e sim adaptação às condições particulares daquelas regiões, marcadas pela longa luta antimuçulmana. O resultado foi, comparativamente ao além-Pireneus, o surgimento de sociedades política e socialmente arcaicas, demográfica e economicamente dependentes130. Versão brasileira, revisada e alargada, de texto publicado em Sincronie. Rivista Semestrale di Letterature, Teatro e Sistemi di Pensiero, 10, Roma, 2006, pp. 105-26. 1 Ivan Kireevskij, Polnae Sobranie Socinenij [1861], Ann Arbor, Ardis, 1983, vol. I, p. 48. Sérgio Buarque de Holanda passou dois anos na Alemanha (1929-30) e dois na Itália (1953-54), Gilberto Freyre, três entre Portugal e Estados Unidos (1930-33), Caio Prado Júnior, dois (1937-38) na França. 2 Balanço realizado por José Carlos Reis, Identidades do Brasil: de Varnhagem a FHC, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2000. Cômodo e competente conjunto de sínteses daquelas obras está em: Luis Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um Banquete no Trópico, 2 volumes, São Paulo, Senac, 1999-2000. 3 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, pp. 36-7, 80-1 e 40. 4 Idem, ibidem, pp. 44-7 e 95-9. 5 Idem, ibidem, p. 60. 6 Monique Bourin e Robert Durand, Vivre au Village au Moyen Age. Les Solidarités Paysannes du 11e au 13e Siècles, Paris, Messidor, 1984; Robert Fossier, Villages et Villageois au Moyen Âge, Paris, Christian, 1995; Robert Durand, Les Campagnes Portugaises entre Douro et Tage aux XIIe et XIIIe Siècles, Paris, Centro Cultural Português, 1982, pp. 148-67, 196-8. 7 Orlando Ribeiro, "Villages et Communautés Rurales au Portugal", Biblos (Coimbra), 16, 1940, p. 413; Ernesto Veiga de Oliveira, "Trabalhos Colectivos Gratuitos e Recíprocos em Portugal e no Brasil", Revista de Antropologia (São Paulo), 3, 1955, pp. 21-43. A estrutura agrária coletivista seria muito antiga, de origem celta, tendo-se mantido ao longo do tempo, até hoje, devido às condições geográficas montanhosas do Norte português de acordo com Orlando Ribeiro e Hermann Lautensach, Geografia de Portugal. O Povo Português, Lisboa, Sá da Costa, 1989, vol. 3, pp. 631, 652 e 656. 8 Brasílio Sallum Jr., "Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil", in Luis Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um Banquete no Trópico, op. cit., vol. I, p. 238. 9 Nello Avella, "Il Ritorno del Maestro Cordiale", na tradução italiana do livro de Sérgio Buarque, Radici del Brasile, Florença, Giunti, 2000, pp. 21-2 e 26. 10 Raízes do Brasil, pp. 32, 38, 81, 89-90, 95, 141, 201 (n. 3). 11 Fernando Henrique Cardoso, "Prefazione" à edição citada na nota 9, pp. 5-7. 12 Diogo de Campos Moreno, Jornada do Maranhão por Ordem de S. Magestade Feita o Anno de 1614, Lisboa, Academia Real de Ciências, 1812 (Collecção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos domínios portugueses, 1-IV), pp. 32-3, 58. Também nas tentativas coloniais portuguesas na África, no século XVI, mantinha-se o mesmo espírito cruzadístico e a mesma intervenção de Santiago (cf. Trovas do Bandarra, 80, ed. de Nantes de 1644, Lisboa, Inapa/Academia Portuguesa de História, 1989, p. 33). 13 Respectivamente, Raízes do Brasil, pp. 171-6; Jacques Lambert, Os Dois Brasis, Rio de Janeiro, MEC, 1959; Roger Bastide, Brésil, Terre des Contrastes, Paris, L'Harmattan, [1957] 1999, p. 16; Edmar Bacha, "Belíndia", in Opinião, 1974, aproveitando Lambert (1959, p. 105), para quem "no Brasil reproduzem-se os contrastes do mundo", com certos aspectos lembrando Los Angeles e Chicago e outros, a Índia e o Egito; Euclides da Cunha, Os Sertões, ed. Leopoldo M. Bernucci, São Paulo, Ateliê, [1902] 2002, pp. 71-249; Pedro Calmon, Espírito da Sociedade Colonial, São Paulo, Nacional, 1934, p. 197 (idéia seguida por Bastide, pp. 8-9). 14 Curiosamente, essa recusa deu-se tanto por parte daqueles que exaltaram a colonização ibérica (como Oliveira Vianna, Populações Meridionais do Brasil, São Paulo, Nacional, 1920, ou Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala, 31a ed., Rio de Janeiro, Record, [1933] 1996) quanto dos que viram nela um parasitismo econômico formador de elites retrógradas (Manoel Bonfim, A América Latina. Males de Origem: o Parasitismo Social e Evolução, Rio de Janeiro, A Noite, 1905). 15 Nelson Rodrigues, "Complexo de Vira-latas", in À Sombra das Chuteiras Imortais. Crônicas de Futebol, São Paulo, Companhia das Letras, [1958] 1993, p. 52. 16 Luis Weckmann, La Herencia Medieval del Brasil, México, Fondo de Cultura Económica, 1993. Cf. também La Herencia Medieval de Mexico, México, El Colegio de Mexico, 1984, 2 volumes. Mas, de forma geral, por motivos provavelmente opostos, também os estudiosos estrangeiros não levam em conta as raízes medievais na formação do Brasil. Exemplo recente é Bartolomé Benassar e Richard Marin, Histoire du Brésil, 1500-2000, Paris, Fayard, 2000. Sobre as limitações do Renascimento português, ver José Sebastião da Silva Dias, Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI, Lisboa, Presença, 1973. 17 Marc Bloch, Les Caractères Originaux de l'Histoire Rural Française, Paris, Armand Colin, [1931] 1976, vol. I, p. XIV; Apologie pour l'Histoire ou Métier de l'Historien, ed. Étienne Bloch, Paris, Armand Colin, [1942] 1993, pp. 96-7; Jacques Le Goff, "L'Historien et l'Homme Quotidien", in Pour un Autre Moyen Age, Paris, Gallimard, [1972] 1977, pp. 335-48. 18 Mário Martins, "A Sobrevivência da Epopéia Carolíngia no Brasil", in Estudos de Cultura Medieval, Lisboa, Brotéria, 1983, vol. III, pp. 418 e 432. 19 Le Goff, "Pour un Long Moyen Age" [1983], in L'Imaginaire Médiéval, Paris, Gallimard, 1985, p. 10. 20 Cf. Veja, nº 1639, 8/3/2000, p. 20. 21 Norbert Elias, A Sociedade dos Indivíduos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, [1988] 1994, p. 148. 22 A Carta de Pero Vaz de Caminha, ed. Sílvio Castro, Porto Alegre, L&PM, 1985, p. 73. 23 Carlos Rodrigues Brandão, O Trabalho de Saber. Cultura Camponesa e Escola Rural, São Paulo, FTD, 1990, p. 136. 24 Raízes do Brasil, pp. 81-2; José da Silva Lisboa, Princípios de Economia Política, Lisboa, 1804, pp. 39 e 42, citado em Raízes do Brasil, p. 85. 25 André João Antonil, Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, São Paulo, Nacional, s/d, p. 54. 26 Policraticus, V, 2, PL 199, col.540 cd; Lex Visigotorum, II,1.3, ed. Karl Zuemer, MGH.Leges, vol.I, p. 47, linha 11 (subtita membra), idéia que na mesma época ainda está presente em: Braulio de Saragoça, "Epistola", 5, in Epistolario de San Braulio, ed. Luis Riesco Terrero, Sevilha, Universidad de Sevilla, 1975, pp. 67-71. 27 Marc Bloch, La Société Féodale, Paris, Albin Michel, [1939-1940] 1973, p. 207. O paralelo com Portugal é estudado, sob outro enfoque metodológico, mas com informações interessantes, por Armando Castro, Portugal na Europa do seu Tempo. História Sócio-económica Medieval Comparada, Lisboa, Seara Nova, 1970. 28 George Duby, "Poder Público, Poder Privado", in História da Vida Privada. Da Europa Feudal à Renascença, trad., São Paulo, Companhia das Letras, [1985] 1995, pp. 19-25; Roberto da Matta, A Casa e a Rua. Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil, Rio de Janeiro, Rocco, [1984] 2000. Exemplo recente, e significativo, é a maior autoridade do país, o presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, ter durante cerimônia na Usina Hidrelétrica de Tucuruí jogado ao chão, atrás da cadeira do governador do Pará, o invólucro de um bombom que ganhara e acabara de comer (O Estado de S.Paulo, 26/11/2004, p. A5). 29 Casa-grande e Senzala, p. 95; Abbon de Saint-Germain des Près, Bella Parisiaca Urbis, v. 178, ed.-trad. Henri Waquet, Paris, Belles Lettres, 1964, p. 28. 30 Casa-grande e Senzala, p. LX; Renée Doehaerd, Le Haut Moyen Âge. Economies et Sociétés. Paris, PUF, 1971, pp. 319-23. 31 Respectivamente, Duby, "Poder Público, Poder Privado", op. cit., p. 31; Alfredo Macedo Gomes, Imaginário Social da Seca, Recife, Massangana, 1998, p. 107. Pode-se mesmo perguntar se, desse ponto de vista, a bolsa-família distribuída atualmente não estabelece nos quadros da democracia formal em vigor laços de fidelidade recíprocos entre os beneficiários (eleitores contemplados) e o dispensador (governo federal). Este não representa para aqueles "o ideal do rico generoso e bom"? 32 Raízes do Brasil, p. 49. 33 Saulo Ramos, "Direito da Magistratura, Privilégio do Povo", in Folha de S. Paulo, 16/9/1997, p. A2. 34 Em outubro de 1998, o Superior Tribunal de Justiça determinou (desrespeitando procedimentos constitucionais) aumento salarial dos juízes (desconsiderando a realidade econômica nacional e mesmo a comparação com a remuneração de seus pares em países do Primeiro Mundo). O Supremo Tribunal Federal posicionou-se contrário e abriu-se uma crise intracorporativa. 35 José Mattoso, Identificação de um País. Ensaio sobre as Origens de Portugal, 1096-1325, Lisboa, Estampa, 1985, vol. I, p. 251; António Henrique de Oliveira Marques e João Alves Dias, "A População Portuguesa nos Séculos XV e XVI", in Biblos (Coimbra), 70, 1994, p. 187. 36 Oliveira Marques e Alves Dias, op. cit., pp. 190-1; Maria José Pimenta Ferro, Os Judeus em Portugal no Século XIV, Lisboa, Centro de Estudos Históricos, 1970; António Brásio, Os Pretos em Portugal, Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1944; Charles Verlinden, L'Esclavage dans l'Europe Médiévale. Peninsule Ibérique-France, Bruges, De Tempel, 1955, pp. 550-1, 561, 566-71, 615-29, 838. 37 Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, Lisboa, Presença, [1963-1971] 1983, vol. IV, p. 161; Maurício Goulart, A Escravidão Africana no Brasil das Origens à Extinção do Tráfico, São Paulo, Alfa-Omega, [1949] 1975, pp. 7-28. 38 Casa-grande e Senzala, pp. 5-10, 201-20; Raízes do Brasil, pp. 53-5, 64. Goulart (op. cit., p. 262) calcula em 3.600.000 o número de africanos introduzidos no Brasil do século XVI a meados do XIX. 39 Pierre Toubert, Les Structures du Latium Médiéval, Roma, École Française de Rome, 1973, 2 vols.; Miquel Barcelò e Pierre Toubert, L'Incastellamento, Roma, École Française de Rome/Escuela Española de Historia y Arqueologia en Roma, 1998. 40 Raízes do Brasil, pp. 146-51. 41 É ilustrativa uma consulta à lista de candidatos a vereador da maior cidade do país nas eleições municipais de 2004 e a informalidade de suas alcunhas. Vários nomes civis são usados no diminutivo: Alfredinho, Carlinhos Silva, Celinho, Chiquinho Faria, Chiquinho Kumagai, Claudinho, Dê, Edinho, Flavinho, Joãozinho, Lôla, Luizinho, Marinho, Netinho, Neuzinha, Osvaldinho, Paulinho Pauli, Paulinho Rodrigues, Paulinho Sobral, Paulinho Varotti, Rubinho, Soninha, Toninho, Toninho Alves, Toninho Campanha, Toninho Francisco, Toninho Meireles, Toninho Paiva, Toninho Souza. Outros no aumentativo: Cidão, Cidão Oliveira, Cidão Tibúrcio, Jorjão, Paulão Triguinoso, Zelão, Zezão. Muitos aparecem de forma condensada: Babu, Bel Leme, Benê, Beto Camargo, Beto Custório, Beto Ramos, Chico Biasi, Chico Lopes, Chico Neto, Cida, Cida Carvalho, Cida Macedo, Cida Santos, Dany, Deja, Gegê, Giba, Jura, Lino, Miro Correia, Nene, Roni, Tião Bezerra, Tião Farias, Tilla, Tino, Tony Silva, Zé Maria, Zé Miranda, Zé Wilson, Zoza. Em certos casos são antecedidos por uma qualificação profissional: Agente Valdir, Bispa Lenice, Bombeiro Caicó, Capitão Cosme Lopes, Coronel Nogueira, Delegado Arnaldo de Lima, Doutor Minan, Dra. Dirce do Projeto Rondon, Enfermeira Angélica, Engenheiro Ricardo Teixeira, Irmão Anísio, Irmão Francisco, Mestre Kim, Pai Marcelo, Pastor Saulo Rodrigues, Policial de Paula, Praça Clóvis, Professor Carlos, Prof. Munhoz O Homem da Moto, Sargento Araújo, Sargento Nezinho-O Réco, Tenente Martan, etc. Em outros são seguidos de indicativo profissional: Afonso Camelô, Betão do Lava Rápido, Chiquinho dos Correios, Cremilda Taxista, Dinão Joalheiro, Juá da Imobiliária, Luiz dos Livros, Paulinho Nossa Caixa, Paulão da Manutenção, Regina Prata Tia dos Mousses, Telles Cabeleireiro, Toninho do Jornal, Toninho do Palácio, Zezinho Hospital São Paulo. Em outros incorporam a origem geográfica: Alcides Amazonas, Bahia, Bahia Santos, Carlão da Saúde, Ceará do PSDC, Manuel Pernambuco, Maranhão, Mineirinho, Murilo Ceará, Pino de Santana, Sindi da Leste. Inúmeros são simplesmente apelidos pessoais tornados públicos: Amarelo, Azulão, Betinho Corinthiano, Bigode, Biriba, Biro Biro, Bozo, Brasilino de Presente, Canarinho, Cascavel Guerreiro, Cheron, Chico do PV, Chorinho da Vila, Coelho da Toca do Coelho, Concheta, Dona Iza, Farid Furacão, Feijão Miranda, Garota da Lage, Gildo Capoeira, Gilmar do Prato, Girafa, Gisa Della Maré, Guerreiro, Homem da Cândida, Ivan O Terrível, Jacaré, Jaiminho Kixodó, Jegue Dente de Ouro, Johnny Chocolate, Jubileu, Kojak, Maninho, Maria Helena A Força da Mulher, Pampa, Pateta, Paulinho Esse É O Caminho, Pé de Frango, Pelé, Pezão, Pitoco, Polé, Porcina, Primo Preto, Purê, Quito Formiga, Rose de Obá, Seu Madrugada, Taça, Tia Fátima, Tia Jô, Tico, Tirrim, Toninho do Bolo, Tureba, Ursão, Wadão Caminha, Zé do Caixão, Zé do Povo, Zé Índio, Zoza. Material etnográfico interessante, como se vê, que permitiria diferentes considerações que não podemos fazer aqui, e que não chega a surpreender quando o presidente da República é conhecido por um íntimo "Lula". 42 "QUOD DUCE TE MUNDUS SURREXIT IN ASTRA TRIUMPHANS/ HANC CONSTANTINUS VICTOR TIBI CONDIDIT AULAM" (cf. Ernst Diehl, Inscriptiones Latinae Christianae Veteres, Berlim, Weidmannos, 1925, vol. I, nº 1752, p. 340). 43 Liber ordinum en usage dans l'Eglise wisigothique et mozarabe du cinquième au onzième siècle (ed. Marius Férotin, Paris, Firmin Didot, 1904 - Monumenta Ecclesiae Liturgica, 5), por exemplo, em nota de 1039, "tu es agnus dei, qui tollis peccata mundi" (I, 4, p. 53), "Domine deus omnipotens, sanctifica huius aquam fontis aduentum spiritus tui" (I, 15, p. 55), "omnipotens sempiterne deus, tue glorie pietatem" (XXXIII, 205, p. 93). De 1052, "in tu nomine deus omnipotens ei iesu Christi filii tui domini nostri signo" (I, 3-4, p. 69). 44 Missale mixtum dictum mozarabes, II, 444, PL 85, col. 988 D. 45 Alain Rey, Dictionnaire Historique de la Langue Française, Paris, Le Robert, 1992-1993; Joan Corominas, Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, Madri, Gredos, 1983; Rafael Lapesa, "Personas Gramaticales y Tratamientos en Español", in Revista de la Universidad de Madrid, 19, 1970, pp. 141-67; Mário Marroquim, A Língua do Nordeste, São Paulo, Nacional, 1934, p. 120. 46 João Alves Pereira Penha, Traços Arcaicos do Português Popular do Brasil, Franca, Iguatemi, 1971; Gladstone Chaves de Melo, A Língua do Brasil, 4a ed., Rio de Janeiro, Padrão, 1981; Heitor Megale (org.), Filologia Bandeirante, São Paulo, Humanitas/Fapesp, 2000; Serafim da Silva Neto, História da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, [1952] 1970. 47 Brutus, 46, 171, ed. Henrica Malcovati, Berlim, Teubner, 1970, p. 50, linhas 24-5. 48 Albert Carnoy, Le Latin d'Espagne d'après les Inscriptions: Étude Linguistique, Hildesheim/Zurique/Nova York, Georg Olms, [1906] 1983; Kurt Baldinger, La Formación de los Domínios Lingüísticos en la Península Ibérica, Madri, Gredos, 1962, pp. 87-101. 49 História da Língua Portuguesa, op. cit., p. 587. 50 A Letra e a Voz. A "Literatura" Medieval, São Paulo, Companhia das Letras, [1987] 1993. 51 Jerusa Pires Ferreira, Cavalaria em Cordel, São Paulo, Hucitec, 1979, p. 13. 52 La Queste del Saint Graal, ed. Albert Pauphilet, Paris, Honoré Champion, 1980, pp. 7, 34, 77 et passim; João de Barros, Lampião e Maria Bonita no Paraiso do Édem, Tentados por Satanás, vv. 61-62, 73-76, s/c, s/ed., p. 3. 53 Harvey L. Sharrer, "The Passing of King Arthur to the Island of Brasil in a Fifteenth-century Spanish Version of the Post-Vulgate Roman du Graal", in Romania (Paris), 92, 1971, pp. 65-74; Curt Nimuendaju Unkel, As Lendas da Criação e Destruição do Mundo como Fundamentos da Religião dos Apapocuva-Guarani, São Paulo, Hucitec/Edusp, 1987; Maria Isaura Pereira de Queiroz, O Messianismo no Brasil e no Mundo, São Paulo, Alfa-Ômega, 2ª ed. 1977, pp. 217-41. 54 Antonio Candido de Mello e Souza, Formação da Literatura Brasileira, São Paulo, Martins, 1959; Péricles da Silva Pinheiro, Manifestações Literárias em São Paulo na Época Colonial, São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1961; Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, 2ª ed., São Paulo, Cultrix, 1975; Chico Viana e Maurice Van Woensel, Poesia Medieval, Ontem e Hoje, João Pessoa, Editora Universitária UFPB, 1998; Lênia Márcia Mongelli, "Entre Onças e Barbatões: as Maravilhas Caboclas de José de Alencar", in Signum (São Paulo), 5, 2003, pp. 195-232; Massaud Moisés, "Vestígios da Idade Média na Ficção Romântica Brasileira", in Ângela Vaz Leão e Vânia O. Bittencourt (orgs.), Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais, Belo Horizonte, Abrem/PUC-MG, 2003, pp. 59-73. 55 Sobre este último autor, talvez o mais medievalizante de todos, ver: Lígia Vassallo, O Sertão Medieval. Origens Européias do Teatro de Ariano Suassuna, Rio de Janeiro, 1993; "Ariano Suassuna Entrevistado por Lênia Márcia Mongelli", in Signum, 6, 2004, pp. 211-39. 56 Marilyse Meyer, "Tem Mouro na Costa ou Carlos Magno 'Reis' do Congo", in Caminhos do Imaginário no Brasil, São Paulo, Edusp, 1993, pp. 150-4. 57 João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, São Paulo, Abril, 1983; Willi Bolle, Grandesertão.br, São Paulo, Editora 34, 2004; Hilário Franco Júnior, "Modelo e Imagem. O Pensamento Analógico Medieval", in Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais, pp. 39-55. 58 Hilário Franco Júnior, A Dança dos Deuses. Futebol, Cultura, Sociedade, São Paulo, Companhia das Letras, 2007. 59 Jacques Heers, Festas de Loucos e Carnavais, Lisboa, Publicações Dom Quixote, [1983] 1987; Julio Caro Baroja, El Carnaval, Análisis Histórico-cultural, Madrid, Taurus, 1965; Roberto da Matta, Carnavais, Malandros e Heróis, Rio de Janeiro, Zahar, 1979; Maria Isaura Pereira de Queiroz, Carnaval Brasileiro: o Vivido e o Mito, São Paulo, Brasiliense, 1992; Harvey Gallaghen Cox, The Feast of Fools. Essay on Festivity and Fantasy, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1969; 60 Marcel Mauss, Manuel d'Ethnographie, Paris, Payot, 1947, p. 85; Pascal Michon, Rythmes, Pouvoir, Mondialisation, Paris, PUF, 2005, especialmente pp. 101-32, 413-59; Jean-Claude Schmitt, "Les Rythmes de la Vie. L'Invention de l'Anniversaire", in Annales. Histoire. Sciences Sociales (Paris), 62, 2007, pp. 793-838. 61 A acentuada cromaticidade medieval sugerida há muito por Jacques Le Goff (La Civilisation de l'Occident Médiéval, Paris, Arthaud, 1967, pp. 412-4), e comprovada por Michel Pastoureau (Une Histoire Symbolique du Moyen Age Occidental, Paris, Seuil, 2004, pp. 113-209), é amplamente reconhecida hoje em dia, por exemplo, por Xavier Dectot (L'Art Roman en France, Paris, Musée du Louvre, 2005, p. 116-25). 62 Theo Brandão, "As Cavalhadas de Alagoas", in Revista Brasileira de Folclore (Rio de Janeiro), 3, 1962, pp. 5-46; Mário Gonçalves Viana, "As Cavalhadas em Portugal e no Brasil: Ensaio de História Comparada", in Boletim Cultural (Lisboa), 75-78, 1971. 63 Michel Pastoureau, Une Histoire Symbolique du Moyen Age Occidental, Paris, Seuil, 2004, pp. 197-209. 64 Jean-Paul Sarraute, "Trois Formes d'Influence Portugaise dans la Musique Populaire d'Outre-mer. Le Samba, la Morna et le Mandó", in Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. Resumo das Comunicações, Lisboa, Comissão do V Centenário da morte do Infante D. Henrique, 1960, p. 182. 65 Ricardo J. D. Azevedo, Abençoado e Danado do Samba, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2004, tese de doutoramento mimeografada, vol. I, pp. 67-68 et passim; Paul Zumthor, A Letra e a Voz. A "Literatura" Medieval, op. cit. 66 Um dos fundadores do conjunto francês Fabulous Trobadors define o Nordeste do Brasil como "un conservatoire naturel de très anciennes traditions latines", Le Point/Paris, nº 2770, 2/8/2004, pp. 32-3. 67 O Phaseolus vulgaris americano acabou por substituir na Europa o feijão antigo e medieval (phasiolus), de origem africana. No Alentejo muçulmano já se consumiam diferentes espécies de feijão (Alfredo Saramago, Para uma História da Alimentação no Alentejo, Lisboa, Assírio e Alvim, 1997, p. 110), da mesma forma que em outras regiões ibéricas (Lucie Bolens, Agronomes Andalous du Moyen Age, Genebra, Droz, 1981, p. 130). É curioso como receitas medievais de carne de carneiro ensopada eram chamadas de haricots mas não incluíam a leguminosa, talvez porque a palavra viesse de aricoter, "cortar em pedaços pequenos". Essa palavra pode, por homofonia, ter dado àquela a acepção de "feijão" (Odile Redon, Françoise Sabban e Silvano Serventi, La Gastronomie au Moyen Age, Paris, Stock, p. 133-4), mas também pode ter havido associação entre a leguminosa e a carne picada que a acompanhava. 68 Por isso outras áreas de colonização portuguesa têm, além do Brasil, suas feijoadas locais, que apresentam variação tanto nas partes do porco utilizadas e nos vegetais complementares (repolho, abóbora, banana-verde, inhame e batata no Cabo Verde; nabo, cenoura e cebola em Moçambique, abóbora, maxixe e quiabo no Nordeste brasileiro) quanto na sua base (feijão-manteiga em Cabo Verde, feijão-branco ou vermelho em Moçambique e Macau, feijão-vermelho em Timor Leste, feijão-fradinho em Goa). 69 Claude Lévi-Strauss, Mitológicas. O Cru e o Cozido, São Paulo, Brasiliense, [1964] 1991. 70 Hilário Franco Júnior, A Idade Média, Nascimento do Ocidente, São Paulo, Brasiliense, 2006, pp. 150-4. 71 A carnavalização religiosa brasileira que os puristas criticam não é produto de um desrespeito inato, é herança cultural. Embora o carnaval tenha aparência anti-religiosa com seu comportamento erótico, alucinógeno, incontinente, não deixa de ser o "acontecimento religioso da raça" na definição de Oswald de Andrade ("Manifesto da Poesia Pau-Brasil", in Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira/MEC, [1924] 1972, p. 5). 72 Luís da Câmara Cascudo, Dante Alighieri e a Tradição Popular no Brasil, Natal, Fundação José Augusto, [1963] 1979, p. 52; Superstição no Brasil, Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1985; Giuseppe Cocchiara, "Le Tradizioni Popolari Sono Preistoria Contemporanea?", in Preistoria e Folklore, Palermo, Sellerio, [1956] 1978, pp. 117-18; Jean-Claude Schmitt, "Religion Populaire et Culture Folklorique", in Annales ESC, 31, 1976, pp. 945-6; História das Superstições, Lisboa, Publicações Europa-América, [1988] 1997. Muitas das superstições são fato antropológico, outras têm trajetória histórica clara, vindas de Portugal medieval intermediadas pelas ilhas atlânticas: Luís da Silva Ribeiro, "Superstições Comuns ao Brasil e aos Açores", in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira (Angra do Heroísmo), 6, 1948, pp. 124-40; Walter Spalding, "Superstições Comuns ao Brasil e aos Açores", in op. cit., pp. 283-90. 73 A Carta de Pero Vaz de Caminha, op. cit., pp. 94 e 98. 74 Eduardo Hoonaert, Formação do Catolicismo Brasileiro, 1550-1800, Petrópolis, Vozes, 1978, pp. 66-74. 75 Émile Amann e Auguste Dumas, L'Église au Pouvoir des Laiques (888-1057), Paris, Bloud et Gay, 1948 (Histoire de l'Église, direção Augustin Fliche e Victor Martin, vol. 7). 76 Ernst Benz, Descrição do Cristianismo, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 201; Robert Ian Moore, The Formation of a Persecuting Society. Power and Deviance in Western Europe, 950-1250, Oxford, Basil Blackwell, 1987; Graciano, Decretum, p. II, C.23, q.8, c.38, PL 187, col.1199 c. 77 Sermão de Ano Novo de 1642, citado por Charles Ralph Boxer, O Império Colonial Português, Lisboa, Edições 70, [1969] 1977, p. 410. 78 Laura de Mello e Souza, "Intolerância É Legado Colonial", in Folha de S. Paulo, 20/3/2000, Caderno Brasil, p. 9; Edward Peters, The Magician, the Witch and the Law, Hassocks, Harvester, 1978; Maurice Kriegel, Les Juifs à la Fin du Moyen Age dans l'Europe Méditerranéenne, Paris, Hachette, 1979; Jeffrey Richards, Sexo, Desvio e Danação. As Minorias na Idade Média, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, [1990] 1993. 79 Hoonaert, Formação do Catolicismo Brasileiro, op. cit., pp. 31-58. 80 Hilário Franco Júnior, Peregrinos, Monges e Guerreiros. Feudo-clericalismo e Religiosidade em Castela Medieval, São Paulo, Hucitec, 1990, pp. 50-66, 170-2; A Idade Média, Nascimento do Ocidente, op. cit., pp. 146-50; Francisco Márquez Villanueva, Santiago: Trayectoria de un Mito, Barcelona, Bellaterra, 2004, pp. 183-222. Ainda em 1725, o arcebispo de Goa, Inácio de Santa Teresa, afirmou que "Deus escolheu deliberadamente os portugueses de entre todas as outras nações para governarem e reformarem todo o mundo, com comando, domínio e império, tanto puro como mestiço, sobre todas as suas quatro partidas, e com promessas infalíveis para a subjugação de todo o globo, que será unificado e reduzido a um único império, do qual Portugal será a cabeça" (citado por Boxer, O Império Colonial Português, op. cit., p. 412). 81 Jacopo de Varazze, Legenda Áurea. Vidas de Santos, ed. Theodor Graesse, trad. Hilário Franco Júnior, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, 48, 2, p. 298; 115, p. 683; 144, p. 840; Pe. Manoel José Gonçalves Couto, Missão Abreviada para Despertar os Descuidados, Converter os Peccadores e Sustentar o Fructo das Missões, Porto, Sebastião José Pereira, 6a ed., [1859] 1868, III,1, p. 285; Additamento, 38, pp. 140-3. 82 Euclides da Cunha, Os Sertões, p. 268. 83 Adalgisa Arantes Campos, A Terceira Devoção do Setecentos Mineiro: o Culto a São Miguel e Almas, São Paulo, 1994, tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo, exemplar mimeografado, pp. 261-2; Karl Bihlmeyer e Hermann Tuechle, História da Igreja. Idade Média, São Paulo, Paulinas, [1958] 1964, p. 246; António Henrique de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa, [1964] 1971, p. 153. 84 Adalgisa Arantes Campos, op. cit., p. 255. 85 Oronzo Giordano, Religiosidad Popular en la Alta Edad Media, Madri, Gredos, [1979] 1983, p. 57; André Vauchez, La Spiritualité du Moyen Age Occidental, VIII-XIII Siécle, Paris, Seuil, [1975] 1994, pp. 18 e 171; Oliveira Marques, A Sociedade Medieval, p. 171; Adalgisa Arantes Campos, op. cit., p. 257; Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 220-6; "Magia e Religiosidade Popular em Minas no Século XVIII", in Norma e Conflito. Aspectos da História de Minas no Século XVIII, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999, pp. 200-4. 86 Michael Goodich, Vita Perfecta: the Ideal of Sainthood in the Thirteenth Century, Stuttgart, Anton Hiersemann, 1982; Jean-Claude Schmitt, Le Saint Lévrier, Paris, Flammarion, 1979. 87 Raízes do Brasil, pp. 149-51. Também Freyre (Casa-grande e Senzala, p. 39) atribuíra ao patriarcalismo brasileiro "perfeita intimidade com os santos". 88 Vauchez, La Spiritualité du Moyen Age, op. cit., pp. 60-7, 169-75; Patrick J. Geary, "L'Humiliation des Saints", in Annales. ESC, 34, 1979, pp 27-42. Estudando uma região européia que ainda guarda fortes tonalidades medievais, Giuseppe Cocchiara ("Soppravvivenze Folkloriche nel Paganesimo Siciliano", in Preistoria e Folklore, Palermo, Sellerio, [1964-1965] 1978, p. 116), considera a punição aos santos ato de fidúcia, afeto e intimidade. Sobre Portugal, Eugénio de Andréa da Cunha e Freitas, "Costumes e Tradições do Século VI e da Actualidade", in Bracara Augusta (Braga), 8, 1957, pp. 300-2. 89 Patrick J. Geary, Furta Sacra. Thefts of Relics in the Central Middle Ages, Princeton, PUP, 1978. Em certas zonas de Portugal na passagem do século XIX ao XX os amuletos protetores deviam ser achados ou roubados (cf. Augusto Goltz de Carvalho, "Amuletos de Buarcos", in Portugália, Porto, 1, 1903, pp. 347-9). 90 Devemos esta informação ao nosso amigo e colega Flavio de Campos, a quem agradecemos. 91 Raul Manselli, "Il Sogno come Premonizione, Consiglio e Predizione nella Tradizione Medioevale", in Túlio Gregory (ed.), I Sogni nel Medioevo, Roma, Ateneo, 1985, pp. 219-44; Paulo Alexandre E. Borges, A Plenificação da História em Padre António Vieira. Estudo sobre a Idéia de Quinto Império na Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995; Luís Filipe Silvério Lima, Padre Vieira: Sonhos Proféticos, Profecias Oníricas, São Paulo, Hucitec, 2004; Ralph Della Cava, Milagre em Joaseiro, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976, p. 26. 92 Angélica Höffler, A Floresta e a Salvação: Encantamento, Aventura e Profecia na Literatura Oral Nordestina, São Paulo, PUC-SP, 1999, dissertação de mestrado mimeografada, pp. 150-1, 159-62: o Horto no "centro do mundo" é verso do folheto de Miguel Paulo de Almeida, O Padre e a Virgem Desejam Salvar o Mundo, p. 7 (citado à p. 159). Foi do texto bíblico ("Deus realizou a salvação no centro da Terra": "Deus autem rex noster ante saecula, operatus est salutes in medio terrae", Salmos LXXIII,12) que se desenvolveu a tradição de que o local em que Cristo morreu e ressuscitou seria o umbigo do mundo redimido (Cirilo de Jerusalém, Catachesis, XIII,28, PG 33, col.805 B). Para a Missão Abreviada "este mundo brevemente há de acabar" (I,11, p. 72). 93 Ronaldo R. F. Mourão, "Anúncio do Fim do Mundo Causou Mortes no Brasil", in Folha de S.Paulo, 23/3/1997, Caderno Mais!, p. 5; Hilário Franco Júnior, O Ano Mil, Tempo de Medo ou de Esperança?, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, pp. 80-2. 94 The Book of Enoch, 10,17-19, trad. E. Isaac, in James Hamilton Charlesworth, The Old Testament Pseupigrapha, Londres, Darton, Longman & Todd, 1983, vol. I, p. 18. 95 Cf. Antonio Candido de Mello e Souza, Os Parceiros do Rio Bonito, São Paulo, Duas Cidades, 1971, p. 196. A imagem do garfo fincado no animal está inspirada, evidentemente, em: Hans Sachs, "Das Schlaweraffenlandt", vv. 37-41, ed. Edmund Goetze, in Sämtliche Fabeln und Schwänke, Halle, Max Niemeyer, 1893, p. 183 (traduzido em Hilário Franco Júnior, Cocanha. Várias Faces de uma Utopia, São Paulo, Ateliê, 1998, p. 81). 96 Severino Borges, A Vinda do Anti-Cristo e os Sinaes do Fim dos Tempos, p. 14 (citado por Höffler, op. cit., p. 158). 97 "Le Concept de Nostalgie", in Diogène (Paris), 54, 1966, pp. 92-3. 98 Ela era ali falada pelos muitos transpirenaicos que chegavam como guerreiros da Reconquista, eclesiásticos da Reforma Gregoriana, monges de Cluny e depois de Cister, peregrinos de Compostela, cortesãos da primeira dinastia portuguesa que era de origem francesa. O período áureo do trovadorismo lusitano (1245-80) corresponde ao reinado de Afonso III, que, acompanhado por muitos nobres portugueses, anteriormente vivera dez anos na corte do rei da França e do conde de Borgonha. 99 Dissertatio Medica de Nostalgia oder Heimwehe, Bâle, 1678, analisada por Fritz Ernst, Vom Heimweh, Zurique, Fretz & Wasmuth, 1949, pp. 63-72. Sobre a posterior história do conceito, André Bolzinger, "Jalons pour une Histoire de la Nostalgie", in Bulletin de Psychologie (Paris), 389, 1989, pp. 310-21. Considerações psicanalíticas sobre ele são feitas por Marie-Claude Lambotte, "Nostalgie", Enciclopedia Universalis, Paris, 1995, vol. 16, pp. 472-4. 100 Cancioneiro da Ajuda, nº 389, vv. 13 e 20, ed. Carolina Michäelis de Vasconcelos, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, [1904] 1990, vol. I, p. 765, linhas 8717 e 8724. 101 Em 10.391 versos eles usaram somente 1.200 palavras diferentes, conforme levantamento de Carolina Michäelis de Vasconcelos ("Glossário", in Cancioneiro da Ajuda, vol. I, p. VIII). Essa estereotipia e despersonalização da lírica amorosa galego-portuguesa são reconhecidas por todos os estudiosos e sintetizadas por Giulio Lanciani ("Cantigas de Amor", in Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani (coords.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa, Caminho, 1993, pp. 136-7). 102 Cancioneiro da Biblioteca Nacional, nº 481, ed. Elza Paxeco Machado e José Pedro Machado, Lisboa, Revista de Portugal, 1952, vol. 3, pp. 94-5; Conto de Amaro, ed. Elsa Maria Branco da Silva, in Aires Augusto Nascimento, Navegação de S. Brandão nas Fontes Portuguesas Medievais, Lisboa, Colibri, 1998, pp. 243-81. A datação de toda a obra trovadoresca do rei D. Dinis entre 1288 e 1301 é de Michäelis de Vasconcelos, Cancioneiro da Ajuda, vol. II, p. 603. A datação de o Conto de Amaro é de Eugen Heinen, Die Altportugiesische Amaro Legende, Kritish Ausgabe der ältesten Fassung, Bamberg, Schadel und Wehle, 1973, pp. 44-7. 103 Cancioneiro da Biblioteca Nacional, nº 481, vv. 6, 9, 12, 18, 20; Conto de Amaro, 1, op. cit., p. 265. 104 Cantigas de Santa Maria, ed. Walter Mettmann, Madri, Castalia, 1986, 48, 38; vol. I, p. 176; 67, 79; vol. I, p. 228; 379,11; vol. III, p. 271. 105 Agostinho, Enarrationes in Psalmos, 70, s. 2, 1, trad. Vincenzo Tarulli, Roma, Città Nuova, 1990, p. 762. 106 Salmos, CXIX,19; 1 Pedro, II,11; Hebreus, XI,13. 107 Dialogues, IV,1, ed. Adalbert de Vogue, trad. Paul Antin, Paris, Cerf, 1980 (Sources Chrétiennes, 265), p. 18, linhas 1-5. 108 Jonas de Orleans, De Institutione Laicalis, I, PL 106, col.165 A. 109 Chronique ou Livre de Fondation du Monastère de Mouzon, I,3, ed.trad. Michel Bur, Paris, CNRS, 1989, pp. 148-149, linhas 7-10. A origem da imagem pode estar na tristeza pelo desterro de Jerusalém e a escravidão em Babilônia, cantada em Salmos, CXXXVII. 110 Honório Augustodunensis, De Vita Claustrali, PL 172, col.1247; Le Pontifical de la Curie Romaine au XIII Siècle, XIX,20,1, ed. Michel Andrieu, trad. Monique Goullet, Guy Lobrichon e Eric Palazzo, Paris, Cerf, 2004, pp. 196-7. 111 A Carta de Pero Vaz de Caminha, op. cit., pp. 76, 78, 79, 81, 82, 86, 97. 112 Dentre os cordéis, por exemplo: João Martins de Athayde, A Órfã Abandonada, s/c, Filhos de José Bernardo da Silva, s/d, p. 10; José Cordeiro, História do Reino da Pedra Azul, s/c, Manoel Caboclo e Silva, 1978, pp. 8 e 10. A recusa à alimentação carnívora, sugerida também pela Missão Abreviada (Additamento, Pratica 35, pp. 131-2), tinha sido idealizada pela Alta Idade Média (Pierre Bonnassie, "Consommation d'Aliments Immonds et Cannibalisme de Surviue dans l'Occident du Haut Moyen Age", in Annales.ESC, 44, 1989, pp. 1.036-8) e praticada por grupos hereges por volta do ano 1000 (Hilário Franco Júnior, "Les Abeilles Hérétiques et le Puritanisme Millénariste Medieval", in Le Moyen Age, 111, 2005, pp. 67-89). 113 Assim aparece, por exemplo, nas bases da Idade Média, em: Agostinho, Confissões, XI, 2, 4, trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, São Paulo, Abril, 1973, p. 236. Mas, sobretudo, em textos provenientes das duas ordens religiosas mais importantes na formação de Portugal. No século XI, Cluny, com: Raul Glaber, Cronache dell'Anno Mille, I, V, 26, ed.trad. Gugliemi Cavallo e Giovanni Orlandi, Milão, Fondazione Lorenzo Valla/Mondadori, 1998, pp. 52-3. No século seguinte Cister, com: Guilherme de Saint-Thierry, Le Miroir de la Foi, I, 2, ed.trad. Jean-Marie Déchanet, Paris, Cerf, 1982 (Sources Chrétiennes, 301), p. 60. 114 Michäelis de Vasconcelos, "Glossário", pp. 86. Em castelhano, soledad tem acepção de saudade desde a segunda metade do século XVI (cf. Corominas, Diccionario Etimológico, op. cit., vol. V, p. 295). 115 Braço direito da Reforma Gregoriana e da imposição de um cristianismo mais rigorista, a ordem monástica de Cluny, originária da Borgonha, penetrou em território luso por Compostela (cuja peregrinação ajudou a organizar e estimular) e acompanhou em 1096 o novo conde portucalense, Henrique da Borgonha, sobrinho do abade Hugo de Cluny. 116 Cancioneiro da Ajuda, vol. II, pp. 550 e 622. Atualmente, contudo, prefere-se ver a designação do trovador como derivada do topônimo Cercio, comum na Galiza (cf. António Resende de Oliveira, "Nun'Eanes Cerzeo", Dicionário da Literatura Galego-portuguesa, op. cit., pp. 477-8). 117 Cancioneiro da Biblioteca Nacional, nº 542, vol. 3, p. 211. 118 Domingos Maurício, "A Carta do Preste João das Índias e seu Reflexo nos Descobrimentos do Infante D. Henrique", in Brotéria, 71, 1960, pp. 218-44; Geo Pistarino, "I Portoghesi verso l'Asia del Prete Gianni", in Studi Medievali, 2, 1961, pp. 75-137; José Pereira da Costa, "Socotorá e o Domínio Português no Oriente", in Revista da Universidade de Coimbra, 23, 1973, pp. 323-71; Lima de Freitas, "Considerações Portuguesas em Torno do Preste João", in Cavalaria Espiritual e Conquista do Mundo, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986, pp. 117-39; Jean Delumeau, Mil Anos de Felicidade. Uma História do Paraíso, São Paulo, Companhia das Letras, [1995] 1997, pp. 176-90. 119 A clássica edição de Friedrich Zarncke (1879) está traduzida em português: Carta do Preste João das Índias, trad. Leonor Buescu, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998. A melhor edição é Die Epistola presbiteri Johannis lateinisch und deutsch: Überlieferung, Textgeschichte, Rezeption und übertragungen im Mittelalter, ed. Bettina Wagner, Tübingen, Niemeyer, 2000. Há uma cópia portuguesa, de princípios do século XIII, dessa carta: Biblioteca Nacional de Lisboa, códice Alcobacense CCLVI/380, editada por Domingos Maurício, "Ainda a Carta do Preste João das Índias", in Brotéria, 71, 1961, pp. 285-303. 120 Mitologia da saudade, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, pp. 11-12. Um italiano anônimo que visitou Lisboa algum tempo entre 1578 e 1580 definiu os portugueses como "sempre tristes e melancólicos, não usando rir nem comer nem beber com medo de que os vejam" (Ritratto et Riuerso del Regno di Portogallo, ed.trad. António Henrique de Oliveira Marques, in Portugal Quinhentista, Lisboa, Quetzal, 1987, pp. 240-1, cf. também 138-9, 242-3). 121 Marânus, ed. Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Bertrand, s/d. (Obras Completas, 3), p. 303. 122 A expressão ainda aparece com freqüência na boca de políticos, empresários e cidadãos comuns, porém mais por parte de estrangeiros do que de brasileiros. Lembre-se do livro do austríaco radicado no Brasil (e que aqui se matou), Stefen Zweig (Brasil, Terra do Futuro, trad., Rio de Janeiro, Guanabara, 1941). 123 "O Brasil Está Sempre com o Horizonte Muito Estreito", in O Estado de S.Paulo, 12/12/2004, p. A8. 124 Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso, São Paulo, Brasiliense/Publifolha, [1959] 2000. 125 Raízes do Brasil, p. 31. 126 Nelson Rodrigues, "Complexo de Vira-latas", op. cit., p. 52. 127 Bloch, La Société Féodale, op. cit., pp. 116-7. Cf. também Pierre Rousset, "Recherches sur l'Emotivité à l'Epoque Romane", in Cahiers de Civilisation Médiévale (Poitiers), 2, 1959, pp. 53-67. 128 Fernão Lopes, Crónica do Rei D. Pedro I, ed. Giuliano Macchi, trad. Jacqueline Steunou, Paris, CNRS, 1985: "e el meesmo poinha em elles [malfeitores] maão quando viia que confessar nom queriam, firindo-os cruellmente ataa que confessavam" (cap.VI, p. 44, linhas 21-22, p. 46, linha 1); ameaçou de "cruees açoutes" (p.46, linha 42) até o bispo do Porto (VII, p. 52, linhas 32-33); mandou castrar um servidor que dormira com a esposa do patrão (VIII, pp. 54-7), degolar dois ladrões e assassinos (VI, pp. 44-9), queimar uma adúltera, enforcar um violador da própria esposa (IX, p. 58), decapitar quem prejudicara um lavrador, enforcar um corrupto (IX, p. 60). Sobre seu lado festivo, cap. XIV, p. 82. 129 Respectivamente, Retrato do Brasil. Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, São Paulo, Brasiliense, [1928] 1944, p. 11; Casa-grande e Senzala, p. L. 130 Franco Júnior, Peregrinos, Monges e Guerreiros, op. cit., pp. 189-263; Jérôme Baschet, La Civilisation Féodale. De l'an Mil à la Colonisation de l'Amérique, Paris, Aubier, 2004, pp. 274-7. © 2012 Revista USP Av. 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