quinta-feira, 21 de junho de 2012
REGIÃO NORDESTE
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O sistema político nordestino
assume, a partir
do terceiro quartel
do século XIX, características
muito distintas daquelas que
conhecera até então. É que a
aristocracia rural nordestina
perde a hegemonia que mantinha
sobre o sistema político
nacional, por cuja implantação
tinha sido a maior responsável.
A transferência do eixo econômico
do país para o Centro-
Sul, determinada pela perda da
posição brasileira no mercado
internacional do açúcar e pelo
surto cafeeiro no Sul – o produto
continuava em valorização
ascendente e aumentava
cada vez mais sua participação
na riqueza nacional –, dá início
a um lento processo de marginalização
política da região.
Este nos parece ser o ponto de
partida para a explicação das
mudanças políticas que o Nordeste
conhecerá no correr do
século XX.
Podemos dizer, portanto,
que o quadro mais geral
dentro do qual ganham sentido
as mudanças políticas na região
é o da lenta decomposição
de um sistema social fundado
sobre o latifúndio, o trabalho
escravo e a monocultura de exportação
e tendo a família de
tipo patriarcal como instituição
central; ou, para sermos mais fiéis ao momento histórico
que tomamos como ponto de partida, sobre
uma estrutura semi-feudal,
em que a violência difusa, não
centralizada – embora monopolizada
por uma classe social
–, se constitui no instrumento,
por excelência, de distribuição
do poder.
Para efeitos analíticos,
podemos distinguir nesse processo
maior de decomposição
do sistema social global alguns
processos mais restritos. No
âmbito do sistema econômico,
o processo de substituição de
um modo de produção précapitalista,
assentado em uma
técnica de produção tradicional
e na utilização de mão-deobra
escrava ou semi servil,
por um outro de características
mais nitidamente industriais e
capitalistas, baseado na produção
em larga escala na qual
o trabalho assalariado tende a
predominar sobre as formas
anteriormente mencionadas:
referimo-nos ao processo de
substituição do engenho bangüê
pela usina de açúcar. No
que concerne ao sistema de
classes, a decadência da aristocracia
rural dos senhores
de engenho e, a partir de determinado
momento, sua superação
por uma burguesia
rural usineira; por outro lado,
a emergência de uma pequena
burguesia urbana, bem como
reforço das classes sociais ”urbanas” de um modo
geral. No âmbito do sistema político, um processo
D O S S I Ê
MOACIR PALMEIRA*
RESUMO
Focalizando o quadro mais geral dentro do
qual ganham sentido as mudanças políticas
na região Nordeste do Brasil, a partir da
segunda metade do século XIX, o autor
mostra a lenta decomposição de um sistema
social fundado sobre o latifúndio, o trabalho
escravo e a monocultura de exportação.
Trata-se de uma estrutura em que a violência
difusa, não-centralizada, se constitui no
instrumento, por excelência, de distribuição
de poder. Sob essa ótica, examinando a
dinâmica do processo de industrialização
do país, aponta modificações das forças
produtivas, formação de alianças entre o
poder público nacional e o poder político
privado. Focaliza, ainda, a organização
das “ligas camponesas” e dos sindicatos de
trabalhadores rurais no Nordeste.
ABSTRACT
By focusing on the general situation in which
political changes became comprehendible
in the Brazilian Northeast, since the second
half of the 19th century, the author shows
a slow decomposition of the social system
founded on the latifundio (large rural land
holding), slave labor and export monocrop.
It described a structure of diffused violence,
that constituted an instrument of power
distribution. Under such a view, by examining
the industrialization of the country, it pointed
to modifications of productive forces and the
forging of alliances between the national
public power and the private local power.
Furthermore, it focused, on the organization
of the “Ligas Camponsas” (Peasant leagues)
and rural workers unions in the Northeast in
a span of two decades, 1950s and 1960s.
* Doutor em Antropologia, professor titular
da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social/Museu Nacional.
NORDESTE: VIOLÊNCIA E POLÍTICA NO SÉCULO XX1
PALMEIRA, M. Nordeste: violência e política no século XX, p. 53-62
54 Revista de Ciências Sociais v. 37 n. 1 2006
de democratização, que poderíamos definir como de
diminuição progressiva do familismo na esfera política;
isto envolve não apenas a substituição do “clã
familiar” pelo “clã eleitoral”, a que se refere Oliveira
Viana, mas também a desagregação do clã eleitoral.
No plano dos valores (a permear todas as dimensões
anteriores), um processo de secularização, ou
de diminuição progressiva do grau de legitimidade
dos valores tradicionais, e de individualização de interesses.
A agroindústria açucareira, que, em meados
do século XIX, entrara em crise definitiva, vê-se
obrigada, para sobreviver, a se renovar. Se tal renovação
já se esboçava antes mesmo da crise, no início
daquele século, é na passagem de um século a outro
que vai assumir maiores proporções. Multiplica-se
o número de engenhos a vapor e aparecem as primeiras
usinas. Novas variedades de cana passam a
ser utilizadas. Isto se verifica simultaneamente a um
reforço da consciência de classe dos proprietários
rurais nordestinos (após algumas décadas de desestruturação
durante o II Reinado, que são exatamente
aquelas durante as quais têm hegemonia no controle
do poder nacional) diante de sua marginalização
econômica e política, em face dos senhores de terras
do Centro-Sul; em tais condições é que aparecem os
primeiros esforços de associativismo, no plano da
produção, consubstanciados na experiência dos engenhos
centrais – engenhos modernos, implantados
com financiamento governamental, que deveriam
moer as canas de diversos produtores, sem direito
a plantação própria, consagrando na agroindústria
o princípio da divisão do trabalho, aumentando a
produtividade da agroindústria açucareira e dando
condições ao produto nordestino de concorrer mais
vantajosamente no mercado internacional – e, ao nível
reivindicatório, multiplicando-se os congressos,
conferências, encontros, bem como o número de
órgãos encarregados de defender os interesses mais
imediatos da classe.
O algodão, que começara a ser cultivado mais
intensamente na região, no final do século XVIII, vai
constituir-se, na segunda metade do século XIX –
especialmente nos anos da Guerra de Secessão americana,
quando os compradores da matéria-prima
têm de recorrer ao Brasil para satisfazer sua demanda
–, no produto de sustentação da economia da região,
em substituição parcial ao açúcar em crise. Em
algumas províncias, tal substituição teria um caráter
mais definitivo (Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba),
enquanto que naquelas mais profundamente
vinculadas ao cultivo e beneficiamento da cana-deaçúcar
(Pernambuco e Alagoas), funcionaria mais
como uma solução provisória à crise açucareira. O
desenvolvimento posterior do cultivo do algodão vai
ter importância nesses últimos estados, não tanto
enquanto matéria-prima para exportação, mas enquanto
base da implantação de uma indústria têxtil.
O fato é que entre os anos de 1890 e 1910, o
Nordeste assiste ao seu primeiro surto industrial de
significação. Alagoas, que havia ganho sua primeira
fábrica de tecidos em 1865, em 1902 já contava com
5 unidades, empregando 2.500 pessoas. O desenvolvimento
de outras indústrias de menor porte dá ao
estado, nessa mesma época, 100 estabelecimentos
industriais (incluindo usinas de açúcar) com um total
de mais de 5.000 empregados.
A crise econômica que se acentua a partir de
1870 vai transformar as secas periódicas, que atingem
as áreas mais áridas da região, em verdadeiras
calamidades, determinando migrações em massa,
não apenas para o Sul do país e a Amazônia, mas,
também, para as grandes cidades da região. Assim,
as capitais nordestinas têm sua população aumentada
em ritmo até então desconhecido. Recife e Maceió,
por exemplo, têm sua população acrescida, no
período que vai de 1900 a 1920, em mais de 100%;
Fortaleza em 64%, no mesmo período; João Pessoa
em aproximadamente 82%. Entre 1872 e 1920, o
número de prédios existentes em Fortaleza e Recife
duplica, em Maceió triplica, em João Pessoa quadruplica.
A indústria nascente vai ter à sua disposição
mão-de-obra abundante e barata. No entanto, ela
não terá capacidade de absorver a grande maioria
da massa migrante que vai enfrentar, nas cidades,
uma situação de subemprego, engajando-se em um
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pequeno comércio parasitário ou em atividades de
quase subsistência, como a pesca e todo o conjunto
de “serviços” a ela vinculados.
Se a construção de um poder público próprio,
levada a efeito no momento em que o poder privado
dos senhores de engenho atingira o máximo, já representava
uma negação de tal privaticidade, a perda
da hegemonia política nacional pela aristocracia rural
nordestina estaria destinada a tornar mais ambíguas
ainda as relações entre o poder da aristocracia
e o Estado. À extensão e enfraquecimento dos laços
familiares (a esta altura seria mais exato dizermos
políticos-familiares), promovida pelo refluxo do
político sobre o privado no momento dialético em
que os dois se identificam, a marginalização sóciopolítica
traz a possibilidade de uma nova invasão do
público pelo privado, numa nova fusão mais restrita,
e, por isso mesmo, com maiores possibilidades
de eficácia, em âmbito regional. Desse novo tipo de
equilíbrio possível é que surge o que Victor Nunes
Leal2 chama de “compromisso coronelista”, que não
se restringe, como sugere esse autor, a “uma troca de
proveitos entre o poder público, progressivamente
fortalecido, e a decadente influência dos chefes locais”,
mas, diz respeito a um sentido mais amplo de
coexistência do mandonismo com as novas condições
sócio-econômicas.
É esse “privatismo politizado” dos senhores
de terras do Nordeste que se constituirá em agente
do movimento republicano na região, ao lado da pequena
burguesia em crescimento nas cidades principais,
aquela mesma com que já se chocara, algumas
vezes, anteriormente. O fato é que a bandeira do federalismo,
que para os senhores rurais representava
a possibilidade de realizar integralmente seu projeto
regional de dominação, e, que para a pequena
burguesia, representava a possibilidade de enfrentar
uma classe dominante dividida, terminou por criar
uma união instável entre as duas classes.
Mas, em termos nacionais, o elemento-chave,
tanto no Movimento Abolicionista como na implantação
da República, era a burguesia rural cafeicultora
do Oeste Paulista; é com esta classe que a pequena
burguesia de todo o Brasil e os senhores de terras do
Nordeste se juntam, contra o domínio da aristocracia
cafeicultora do vale do Paraíba; o trabalho livre e
a autonomia das províncias eram necessidades para
aquelas classes, ao passo que o escravismo e o centralismo
eram as únicas garantias de sobrevivência
do café no vale do Paraíba, com as suas terras esgotadas,
sem condições de concorrer, em termos de
produtividade, com as terras roxas paulistas, a não
ser com o protecionismo governamental e com uma
despesa mínima em mão-de-obra, que compensasse
a sua crescente descapitalização.
O preço de tal aliança é a autonomia quase total
da aristocracia nordestina, em relação ao centro
político do país. O fato é que o federalismo republicano
iria assegurar aos estados não apenas autonomia
política, mas, sobretudo, autonomia econômica,
objetivada na ligação direta dos estados com o mercado
mundial, sem que fosse necessária a mediação
dos centros tradicionalmente exportadores.
Acelera-se o processo de urbanização na região,
cuja resultante, em termos do sistema de classes,
é o crescimento da pequena burguesia urbana, a
partir do desenvolvimento das burocracias estaduais
e do setor de serviços, bem como um aumento da
importância da burguesia comercial, sob influxo do
incremento do comércio direto com o exterior, e das
vantagens fiscais que a descentralização lhe assegura.
Isto vai significar, obviamente, um reforço da capacidade
política dessas classes, como também um
aguçamento das contradições entre elas. A quebra
do isolamento em que a chamada pequena burguesia
se mantinha até então, motivando uma intensificação
de suas comunicações com outros setores da
sociedade nacional e com o mundo em geral, a possibilidade
de identificação com grupos estruturalmente
análogos, o acesso a valores universais a que
até então se mantivera mais ou menos impermeável,
criam as condições para que de seu conflito com a
burguesia comercial emergisse uma consciência de
classe. Em síntese, a quebra do atomismo latifundiário,
através da concentração urbana, dá lugar a que
se tornem manifestos os conflitos de classes e que
PALMEIRA, M. Nordeste: violência e política no século XX, p. 53-62
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surjam projetos de dominação outros, que não o da
própria classe dominante.
A aristocracia rural nordestina, que tinha participado,
como vimos, da implantação do regime republicano,
sem que de imediato dele colhesse todos
os frutos que esperava, é chamada, passado o período
de radicalização pequeno-burguesa representado
pelo florianismo, a participar mais ativamente do poder
nacional, através da “política dos governadores”;
esta, como assinala Victor Nunes Leal, não foi uma
invenção de Campos Salles, mas apenas o reconhecimento
de um fato consumado. É que o início do século
assiste à primeira crise séria do café, decorrente
da superprodução dos cafezais paulistas, sem que o
Brasil tivesse o controle do mercado do produto: era
toda a agricultura de exportação brasileira que se
via envolvida pelos efeitos da queda dos preços das
matérias-primas no mercado internacional. Diante
de tal conjuntura, só havia um recurso para a classe
agrícola: unir-se para enfrentar os perigos.3
O Primeiro Congresso Nacional de Agricultura
é o fato que assinala com maior clareza tal união.
O que não tinha sido possível em 1878, quando os
latifundiários do Norte e do Sul do país reuniramse
em congressos separados, torna-se realidade em
1901.
Da convergência de todos esses processos é
que surgem, no Nordeste, no primeiro quartel do século
XX, as chamadas oligarquias.4 Trata-se de uma
objetivação, no plano político, da reação da aristocracia
rural da região ao processo de liquidação de
que se via ameaçada; é a unificação dos “coronéis”,
algumas vezes tornada explícita, como no “pacto dos
coronéis” – promovido pelo Padre Cícero e por Floro
Bartolomeu, entre os coronéis do Cariri, no Ceará
–, para servir de base de sustentação à oligarquia Accioly.
E mais: é a hierarquização dos coronéis, numa
cadeia que vai do coronel-governador ao chefete
distrital. É nessa fase, mais do que nunca, que o coronelismo
tem realçada a sua feição “governista”. A
violência, de instrumento e valor de mediação que
era nas lutas político-familiares, sem desaparecer
de todo como instrumento e permanecendo como
valor social, passa a ser exercida basicamente numa
única direção (contra as classes dominadas; e, eventualmente,
contra elementos não conformistas da
própria classe dominante) e com um sentido predominantemente
estratégico. Há uma “pacificação
política” nos estados nordestinos, só turvada na fase
final das oligarquias, e de modo bem diverso do até
então conhecido.
A integração política da classe latifundiária
atinge um nível de profundidade muito maior do
que em outras ocasiões. A formalização de relações
dentro dessa classe e a racionalização de interesses
não se verificam apenas na esfera política (num sentido
restrito) e através do entendimento direto entre
uns poucos representantes de suas facções, mas, sim,
através da mobilização total, penetrando todas as esferas
de atividades. Tal integração é que lhe permite
enfrentar a nova situação e buscar um novo equilíbrio.
Mas é essa mesma integração que também
permite, enquanto correspondendo a um enfraquecimento
da solidariedade pessoal semifeudal entre
dominadores e dominados, que as classes dominadas
desenvolvam formas de solidariedade interna,
até então inéditas em sua história e formulem protestos
e projetos próprios, mais ou menos próximos
de uma autêntica consciência de classe. No caso da
pequena-burguesia (a plebe, de um modo geral, permanece
se manifestando sob a forma de protesto e
o operariado tem ainda significação reduzida), tais
projetos estão contidos naquela proposição de “republicanizar
a república”, erigida, aliás, em bandeira
de luta de toda a pequena-burguesia brasileira. A
verdade é que os anos que se seguem a 1910 assistem
a verdadeiras rebeliões populares nos estados nordestinos.
Multiplicam-se as organizações políticas de
caráter popular; aparecem as primeiras organizações
operárias; jornais clandestinos, como O Combatente,
órgão da Liga dos Combatentes de Maceió, organização
de massas que promove a luta armada na cidade,
aparecem, o povo pega em armas para derrubar
a oligarquia e assegurar a permanência dos representantes
que elege.5 As oligarquias que, a princípio,
promovem certas transformações no sistema econômico,
passada a fase mais aguda da crise, firmam-se
numa posição antiprogresso que, reforçando a fren57
te dos senhores rurais, implica um afastamento da
burguesia comercial do seu esquema de poder. Este
afastamento, constatado pelos historiadores, não
tem, no entanto, sua dinâmica devidamente equacionada,
a não ser, como Djacir Menezes o faz no
caso do Ceará, em termos de suas vinculações mais
imediatas: monopólio dos bons negócios pelos homens
do governo, aumentos de impostos sobre o
comércio etc. Mas, o fato é que, sem romper ostensivamente
com os governos oligárquicos, a burguesia
comercial irá contribuir financeiramente para os
movimentos insurrecionais. Derrubada a oligarquia
Rosa e Silva, em Pernambuco, caem todas as demais.
A luta popular derruba os Accioly em Fortaleza. Em
Alagoas, deposto o governo, o Exército o reempossa;
nova rebelião, entretanto, apesar daquela proteção,
derruba definitivamente a oligarquia.
Esse avanço do povo – a luta era colocada em
termos de povo e antipovo6 – sobre o poder, monopolizado
por uma classe cujo domínio perdera,
em determinado momento, suas características paternalistas,
em proveito de seus próprios interesses
ameaçados pela dinâmica mesma da situação semicolonial
em que permanecia o país, era inédito
na história da região – exceção feita para o Recife
que, pela sua condição de “abertura” da região ao
mundo, já de algum tempo conhecia um processo
de polarização política em termos de classe, de caráter
irreversível e se constituía numa ameaça séria
à integridade do sistema. Essa ameaça, no entanto,
teria que enfrentar uma capacidade de resistência
da parte do sistema, que era muito superior à capacidade
de resistência imediata dos governos oligárquicos.
Assim, a situação internacional que culmina
com a Guerra de 1914-18, melhorando a aceitação
dos produtos de exportação brasileiros no mercado
mundial permite a despolarização, um “reenfeudamento”
das classes dominadas e uma volta ao tipo
de equilíbrio político pré-oligárquico. Esse processo
pode ser apreciado com nitidez no recrudescimento
das lutas político-familiares em todo o Nordeste. No
Ceará, por exemplo, assiste-se a uma intensificação
das violências entre chefes políticos locais: no governo
do Senhor Franco Rabelo, resultante da rebelião
popular, segundo Djacir Menezes7 – que, em outra
parte, o acusa de “embevecido pelas manifestações
de rua, engrossada pela matula dos vadios” – “há falta
de unidade na direção política e administrativa do
Estado. O egoísmo dos chefetes domina. As pequenas
vinganças facciosas. Os sertões desgarantidos.
Uma política retaliada por interesses locais”.
Tal despolarização não teria uma duração
muito longa. Ainda na primeira metade da década
dos 20, o Nordeste volta a assistir a uma polarização
política de novo tipo: a luta aberta entre duas classes,
a aristocracia rural dos engenhos e a burguesia rural
das usinas, pelo poder político regional. A decadência
econômica da primeira era um fato, pois não havia
como o engenho bangüê (ou mesmo o engenho a
vapor) concorrer com as modernas usinas de açúcar;
no entanto, também era um fato a força política dos
senhores de engenho; isto, ao lado do modo lento
com que era introduzida a usina, permitia que os
senhores de engenho (já, em larga medida, transformados
em fornecedores de cana) continuassem monopolizando
o poder político na região. O novo surto
industrial, tornado viável pela Guerra de 1914-18,
provocando um reforço da burguesia comercial e da
incipiente burguesia industrial das cidades, significa
também um fortalecimento das pretensões daquilo
que era, em parte, o seu desdobramento no campo:
a burguesia rural usineira. Nos primeiros dos anos
20, a produção das usinas já suplanta a dos engenhos
e, o que é mais importante, a quota das usinas na
exportação do açúcar já ultrapassa a dos engenhos.
Nesse momento, se abre a luta entre as suas classes.
O prosseguimento da industrialização permite
que, apesar daquele processo de reenquadramento
a que nos referimos, o operariado continue a se
estruturar; uma medida justa da sua força, aumentada
com o sucesso da Revolução Russa de 1917, nos
é dada pela extensão da greve de 1919, no Recife. A
sua crescente unificação em torno de umas poucas
organizações, o que não se verificava no início do
século, ao lado de uma definição de programas cada
vez mais precisos, dá-lhe condições de funcionar
como uma força política de peso.
PALMEIRA, M. Nordeste: violência e política no século XX, p. 53-62
58 Revista de Ciências Sociais v. 37 n. 1 2006
Dos conflitos aristocracia rural-burguesia e
burguesia-operariado urbano, vai nascer uma aliança
sui generis na política nordestina, entre a aristocracia
rural em declínio e o operariado e pequena-burguesia
contra a burguesia comercial e usineira. Tal aliança
identifica o latifúndio apenas à concentração territorial,
ou seja, à usina, e postula uma visão idílica do
engenho como exemplo de pequena propriedade; tal
concepção, mais do que pelos partidos de esquerda
propriamente ditos, é veiculada pelos partidos socialistas
que aparecem nos Estados, agrupando antigos
senhores de engenho e intelectuais a eles ligados
muitas vezes por laços de parentesco, transbordando
de radicalismo de início, mas tendendo a firmar não
uma posição socialista de fato, mas apenas cooperativista.
Essa polarização se desfaz, nas áreas menos
desenvolvidas da região, algum tempo após o desaparecimento
do Estado Novo, ou seja, já na década
dos 40, por efeito da acomodação entre fornecedores
de cana e usineiros, cujo marco mais significativo é
o Estatuto da Lavoura Canavieira, assegurando aos
primeiros garantias através da fixação de quotas de
fornecimento de cana, em contraste com a lei de
1933, que criou o Instituto do Açúcar e do Álcool,
que beneficiava nitidamente os usineiros. Nas áreas
mais desenvolvidas – Pernambuco – ela se mantém
até a segunda metade dos anos 1950, objetivada na
aliança entre o Partido Comunista Brasileiro (PCB)
e a União Democrática Nacional (UDN).
As modificações que se processam no âmbito
das forças produtivas no Nordeste, durante a primeira
metade do século XX, não se fazem acompanhar
por mudanças significativas nas relações de produção.
O caráter de agricultura de exportação que
permanece, apesar das mudanças tecnológicas, permite
que as novas forças produtivas encontrem um
equilíbrio suficientemente estável, com relações de
produção inerentes ao modo de produção anterior.
A tendência que se verifica, então, é no sentido da
“feudalização” das usinas, como das indústrias em
geral, e não, como seria de se esperar, de acordo com
o modelo clássico de desenvolvimento, de capitalização
dos setores menos avançados da economia. Isto
se prende, sem dúvida, ao caráter histórico concreto
do que chamamos de burguesia rural usineira. Esta
não tem uma origem única e não se distingue nítida
e completamente da velha aristocracia rural dos
engenhos; poderíamos mesmo dizer que só existe
como burguesia (ou seja, retém um caráter inovador)
enquanto dura a sua luta pelo controle da produção
açucareira, “aristocratizando-se”, num segundo
momento, e tentando mesmo repetir, em ponto
maior, o estilo de vida dos senhores de engenho. Tal
tendência está, sem dúvida, à base da resolução, ou,
ao menos, da atenuação, do conflito entre usineiros
e fornecedores de cana.
A Revolução de 1930, que, no que diz respeito
ao país como um todo, seria, antes de mais nada, um
movimento da pequena-burguesia que criaria condições
para a industrialização e para a emergência
de uma burguesia industrial com interesses próprios,
no Nordeste será, basicamente, um movimento antiburguesia,
um movimento resultante daquela associação
de interesses de classes dos antigos senhores
de engenho, da pequena-burguesia e do operariado
urbanos, contra a nova burguesia agrária-comercialindustrial.
No entanto, na medida em que a Revolução
explicita o seu projeto industrialista, dela se
aproxima a última e se afasta a primeira, após um
momento em que ambas estão próximas, no combate
à hegemonia paulista. As oscilações com respeito
à política açucareira resultam dessas contradições
e a acomodação representada pelo Estatuto de 41 é
uma resposta do governo central ao perigo que poderia
representar ter contra si aquela ampla frente
antiusina.
As lutas político-familiares, que nem de longe
tinham desaparecido, mas, antes, se mesclavam
àquelas outras de caráter político-ideológico, manifestação
que eram da própria estrutura de poder
de base coronelista, sofrem, sem dúvida, a partir de
1930, concorrência séria de outros instrumentos de
manutenção do equilíbrio político. São progressivamente
“ilegalizadas” com o crescimento das cidades,
enquanto não condizentes com os novos valores aí
forjados, ao mesmo tempo em que são atingidas em
59
sua dinâmica interna pelo processo de secularização,
desencadeado com a urbanização e industrialização.
No entanto, nos anos 1940, com o desaparecimento
da polarização mencionada antes, ganhariam novas
condições de existência.
Isto é verdade particularmente para aquelas
áreas menos desenvolvidas, onde qualquer polarização
político-ideológica tem um caráter de eventualidade,
não progressivo e acumulativo, dado o sentido
mesmo de descontinuidade de que se revestem aí os
processos anteriormente referidos. Nessas áreas, a
grande propriedade permanece praticamente intocada,
se bem que a sociedade como um todo seja atingida,
no plano dos valores, pelo processo de secularização
que se irradia dos centros dinâmicos do Sul
do país. Assim, a crescente democratização do sistema
político nacional não exclui o coronel ou o chefe
político local do processo político, mas, antes, se faz
com eles e sobre tais manifestações de mandonismo
se reflete: a condição de chefe político perde cada vez
mais o seu caráter inicial de adscriptividade e ganha,
mais e mais, de aquisitividade; o processo eleitoral
também sofre modificações bastante significativas:
acompanhando a crescente penetração das formas
capitalistas de produção, o voto de cabresto, predominante
na Primeira República, e mesmo depois da
Revolução de 30, cede lugar ao voto-mercadoria8. É
o desdobramento daquele processo de passagem do
clã familiar ao clã eleitoral, em que, muitas vezes, se
mantêm as formas tradicionais, sem que, entretanto,
os seus atores estejam necessariamente ligados à
dominação tradicional. Essa “democratização” tem
como conseqüência um estreitamento relativo da esfera
do poder, o que determina um acirramento das
disputas político-familiares.
Com a decretação da ilegalidade do PCB, que
praticamente representou a decretação da “ilegalização”
de toda a esquerda, e com as perseguições que
se desencadearam a partir de 1948 contra as organizações
operárias, o operariado e a pequena-burguesia
são simplesmente banidos do sistema político,
ao mesmo tempo em que as “camadas pobres” não
diretamente vinculadas ao processo de produção são
“reenfeudadas”. Em tais condições, o sistema político
consegue um tipo de equilíbrio paratradicional,
onde o chamado “banditismo político” torna-se a
mediação por excelência das relações políticas “interfeudais”,
dado que a prática democrática poderia
criar condições de ameaça ao sistema, e um sub-populismo,
resultante não da constelação de interesses
de uma classe em ascensão, como parece ser o caso
do populismo no Sul do país, mas, antes, do vazio
criado com o enfraquecimento das classes dominantes
tradicionais (que era o enfraquecimento da
agricultura de exportação como um todo), sem que
alguma nova classe viesse compartilhar do poder,
que converte as tendências de definição política, em
termos de classes, à configuração anterior. Só com
a arrancada desenvolvimentista da segunda metade
dos anos 1950, é que tal quadro sofrerá algumas alterações.
Já em Pernambuco, prevalecem padrões político-
estruturais de outro tipo. Ao contrário da situação
anterior, em que desaparecem as polarizações
em termos de classes e se aguçam as lutas interfeudais,
ali, o que se dá é a coexistência do coronelismo,
mantendo uma integridade muito maior – como observa
Diegues Júnior, não se encontram nos demais
estados nordestinos casos de dominação coronelista
nos anos 50 tão “puros” quanto em Pernambuco –,
com a polarização em termos de classes. Há quase
que uma divisão geográfica do poder, com a primeira
configuração permanecendo no Agreste e Sertão
e a segunda na Mata e Litoral. De fato, quase sempre,
as duas se entrelaçam, afastando-se, apenas em um
segundo momento, quando, por efeito do processo
de indiferenciação partidária – resultante daquela
acomodação entre os remanescentes da aristocracia
rural e a burguesia rural usineira aristocratizada –, a
disputa UDN-PCB x PSD (partido que concentrava
os interesses usineiros) apresenta-se menos como
um choque imediato entre os interesses de classes
que lhes servem de base, do que como uma defrontação
entre dois tipos de estrutura política que tendem
a excluir-se mutuamente: um, paratradicional,
que marginalizava os setores populares enquanto
PALMEIRA, M. Nordeste: violência e política no século XX, p. 53-62
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força política autônoma para reincorporá-los através
de um subpopulismo como aquele que tinha curso
nos estados periféricos, e um outro que considerava
mais racional, para a classe dominante, enfrentar
e institucionalizar uma polarização em termos de
classes, como maneira mais segura de mantê-la sob
controle.
Como vimos, com a República se apresenta
entre o poder público e o poder privado, no Nordeste,
a mediação do poder público estadual. Este
garante à aristocracia territorial o domínio absoluto
de uma área restrita, como uma espécie de compensação
à progressiva diminuição de sua participação
no poder nacional. Enquanto permanece na região,
sem alterações, uma mesma composição de poder
e enquanto o país conhece, na composição de poder
nacional, a absoluta hegemonia da burguesia
cafeicultora paulista, mantêm-se relações quase inequívocas
entre poder público nacional, poder público
estadual e poder político-privado local. Com
a diferenciação de interesses que se opera dentro da
classe dominante nordestina, quando da emergência
de uma burguesia rural usineira, tais relações
tornam-se profundamente ambíguas. Quando, com
a Revolução de 30, também a composição de poder
em termos nacionais se altera, ainda mais aumenta o
caráter de ambigüidade daquelas relações.
A diretriz industrialista que prevalecerá nos
anos posteriores à Revolução, sobretudo a partir de
1937, tende a colocar o Estado (do qual o poder público
estadual passa a ser um desdobramento) em
oposição ao poder privado; não que tal Estado fosse
em si contrário ao exercício do poder político-privado
local, mas, porque, além de alcançar uma racionalidade
muito maior do processo social, do que a conseguida
em qualquer fase anterior – o que determina
certas contradições aparentes entre sua atuação e os
interesses mais imediatos das classes dominantes –
ele se vincula a outros interesses locais, bem como, o
que é mais importante e está à base mesmo daquela
racionalidade, na sua composição tendem a predominar
interesses de uma burguesia industrial que se
lança numa tentativa de promover, a todo custo, o
rompimento da situação de dependência econômica
a que sempre estivera sujeito o país, condição que
era para sua sobrevivência e para o que a Segunda
Guerra Mundial vai fornecer as condições esperadas;
para tal empreendimento deveria ser sacrificada
qualquer afirmação regionalista ou localista.
No entanto, a reação se faz sentir – tal era a
força do latifúndio – e os últimos anos da ditadura
Vargas, como os que se seguem, imediatamente à redemocratização,
presenciam um novo compromisso
entre o poder público nacional e o poder políticoprivado.
Tal compromisso tinha como base a canalização
de recursos do Nordeste para o Sul, através das
taxas de exportação e de outros mecanismos que,
aparentemente disfuncionais para as classes dominantes
nordestinas, eram da mais absoluta funcionalidade,
pois só a marginalização econômica da região
(permitindo o aceleramento da industrialização
no Sul) poderia permitir a despolarização política a
que nos referimos. A intervenção do poder público,
então, é no sentido de confirmar o poder políticoprivado
local e estadual, através do protecionismo
à indústria açucareira sem condições de concorrer
com a paulista, ou do assistencialismo das “obras
contra as secas”, garantindo a permanência de mãode-
obra barata para o latifúndio e enquadrando contingentes
que se poderiam constituir em ameaça ao
sistema.
O surto desenvolvimentista no Sul do país,
nos meados da década de 50, implicando um aumento
do poder aquisitivo de ponderáveis setores
da população, e a elevação dos preços do açúcar no
mercado internacional, abrem novas condições de
prosperidade à indústria açucareira nordestina. Ao
mesmo tempo em que retoma as vendas ao exterior
(quase nulas desde 30, porquanto a produção era
quase toda consumida pelo mercado interno do Sul),
a agro-indústria açucareira aumenta violentamente
sua produção no decênio 53/54 a 62/639. Tal expansão
dos canaviais, como assinala Celso Furtado, vai
implicar uma pressão sobre os camponeses agregados
às fazendas e usinas, no sentido de liberarem as
terras em que praticavam uma lavoura de subsistên61
cia, cujos excedentes abasteciam de alimentos as cidades
do litoral, para a cana, transformando-os em
assalariados, sem que isso lhes trouxesse, de imediato,
qualquer vantagem, pois se verificava, ao mesmo
tempo, uma pressão “baixista” sobre os salários. Isto
conduzirá também a uma crise séria de alimentos
nos centros urbanos: diminuem em quantidade e
aumentam em preço. Este é o ponto de partida do
processo de radicalização no plano político que então
se inicia. Mais do que nunca, tornam-se claras
para camponeses e trabalhadores rurais as contradições
do sistema de base latifundiária: organizamse
em “ligas” e sindicatos e, logo, passam do plano
simplesmente reivindicatório para a exigência de
mudanças políticas e econômicas radicais.
A emergência do movimento camponês permite
que o processo de radicalização política seja
retomado nas cidades, onde cada vez se torna mais
nítida a emergência de uma consciência de classe
do proletariado, ao passo que a pequena-burguesia
encontra no nacionalismo uma bandeira que a capacita
a liderar o processo de transformação em curso.
Cada vez mais, é a linha das classes sociais que define
as disputas políticas.
O primeiro fruto de tal processo é o declínio
do esquema de poder predominante até então e sua
substituição por aquele que define o sistema político
em termos de classes. O coronelismo parece definitivamente
derrotado e logo se desfaz a velha aliança
UDN-PCB, que se apresentam agora exatamente
como os pólos antagônicos dentro do sistema político.
E, mais do que isso, o que se tem, em pouco tempo,
é um governo eleito por uma coligação popular,
de cunho nacionalista e reformista, antiimperialista
e antilatifundiário.
A acumulação de tensões resultantes dos conflitos
de classe leva o Estado a intervir no sentido de
atenuação da luta para evitar a ruptura do subsistema
que poderia ser fatal para o sistema como um
todo: a criação da SUDENE e, depois, o estabelecimento
do Estatuto do Trabalhador Rural significam
uma alteração na linha de atuação do Estado que, até
então, era de completa identificação com as classes
dominantes na região. O fato é que, além da maior
racionalidade possível que lhe permitia intervir para
salvar o próprio sistema, aumentara a força política
das classes dominadas; também a luta da indústria
nacional para ampliar o mercado interno tinha levado
certos setores da burguesia industrial a uma
eventual aliança com as forças populares.
Surgindo em 1955, as ligas camponesas e, só
depois, os sindicatos rurais, já em junho de 1963,
contavam as primeiras com 40.000 filiados e os últimos
com cerca de 200.000, apenas em Pernambuco.10
Informa-nos Mary Wilkie, que estudou o movimento
sindical na região, que, nessa mesma época, dos
102 municípios de Pernambuco, 77 já contavam com
os sindicatos rurais; sendo que, na área açucareira,
34 dos 35 municípios existentes já os possuíam. A
rapidez do processo de emergência do movimento
camponês, em particular, e do movimento popular,
em geral, foi tão grande que, na periferia do sistema,
atingida mais tardiamente, não se chegou a ter uma
medida precisa da sua penetração, como foi possível
em Pernambuco, quando da eleição de Miguel Arraes
para o governo do Estado, em 1962. Em Alagoas,
estado em que o movimento camponês mais custou
a penetrar, o que houve foi uma unificação da classe
dominante, antes mesmo dessa penetração, apenas
diante da “ameaça de Pernambuco”. Enquanto se
transformava o Estado numa espécie de trampolim
contra-revolucionário na região, repetia-se um pacto
entre as facções político-familiares, que lembra
aquele do começo do século, a que nos referimos.
O movimento contra-revolucionário de abril
de 1964 representa, em termos de Nordeste, o recuo
forçado à hegemonia de um tipo de estrutura política
superada pelo próprio desenvolvimento do sistema.
Não apenas no âmbito do sistema econômico,
onde são amputadas certas conquistas dos trabalhadores
rurais e camponeses que tinham assegurado
um aumento da faixa de economia monetária da
região e uma ativação da vida econômica, é que se
manifesta tal recuo; no sistema político, ele é ainda
mais evidente: desaparecem, em grande parte, as
associações voluntárias e grupos de pressão repre-
PALMEIRA, M. Nordeste: violência e política no século XX, p. 53-62
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sentativos de diferentes classes e camadas sociais,
e, com eles, a institucionalização do conflito entre
grupos antagônicos, característica de um sistema
político modernizado; o coronelismo reestrutura-se,
fazendo com que as relações formalizadas, impessoais
e democráticas, sejam substituídas, como padrão
básico de relacionamento político, por outras de caráter
personalista e autocrático. A repercussão que
tal reviravolta possa ter é difícil de ser avaliada. O
fato é que, malgrado as possíveis vicissitudes, o movimento
camponês não desapareceu de todo, como
o demonstram as ameaças de greve e as constantes
denúncias de usineiros pelo não-cumprimento das
leis trabalhistas, nos anos 1965/66, promovidas pelos
sindicatos que conseguiram escapar, de um modo
ou de outro, à repressão contra-revolucionária. Do
mesmo modo, parece haver uma recusa popular a
aceitar o re-enquadramento de abril, como o indica
a vitória das abstenções e dos votos em branco, nas
eleições promovidas para o preenchimento da vaga
de deputado federal deixada pelo Senhor Francisco
Julião, cujo mandato fora cassado pela contra-revolução.
Na periferia do sistema, onde a liquidação do
movimento popular pôde ser levada mais adiante, o
desaparecimento da “ameaça camponesa” dá lugar a
um restabelecimento daquele equilíbrio paratradicional,
à base de lutas interfeudais. Ao menos é o que
parece indicar o ressurgimento, no melhor estilo, do
banditismo político em Alagoas, como, em escala
menor, em outros estados periféricos.11
Notas
1 Este trabalho foi publicado, anteriormente, nos Cadernos
Brasileiros, nº 37, ano VIII, set.-out. 1966.
2 Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo
no Brasil. Rio de Janeiro, 1949.
3 IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool). Congressos Açucareiros
no Brasil. Rio de Janeiro, 1949, p. 49.
4 Referimo-nos ao termo, aqui, não em algum dos muitos sentidos
que lhe têm sido atribuídos pelos teóricos da Ciência Política,
mas tal como foi historicamente atribuído aos governos
estaduais da época, cujas características descreveremos adiante.
5 Ver Pedro Mota Lima, Fábrica da Pedra, Rio de Janeiro, 1962.
6 A literatura popular da época deixa transparecer essa polarização.
O folheto, “O Tiroteio de Maceió: Zé Povo e os Maltino”, cujo
título por si só já é sugestivo, do poeta popular Pacífico Pacato
Cordeiro Manso, 1912, que descreve a luta contra a oligarquia
Malta, em Alagoas, nos diz em certo momento:
“Na porta dos Mascarenhas / Vinte soldados à frente / Disseram lá
vem Zé Povo / O que se faz seu Intendente? / Este respondeu
ligeiro / Quero ver sangue de gente / (...) Balas passavam nos
ares / perdendo-se nas campinas / De toda parte se ouvia / os
ecos das carabinas / Zé Povo dizia: morram / Todas pessoas
Maltinas”
7 O Outro Nordeste, Rio de Janeiro, 1939, capítulo V.
8 Marcos Vinícios Vilaça e Roberto Cavalcanti de Albuquerque.
Coronel, Coronéis. Rio de Janeiro, 1965, “Introdução”.
9 Celso Furtado. Dialética do Desenvolvimento. Rio de Janeiro,
1964, 2ª parte, cap. III.
10 Mary E. Wilkie, A Report on Rural Syndicates in Pernambuco.
Rio de Janeiro, 1964 (mimeo).
11 Além das obras citadas, foram de maior valia na elaboração deste
trabalho: Nestor Duarte, com A ordem Privada e a Organização
Política Nacional. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939;
Maria Isaura Pereira de Queiroz, O Mandonismo local na vida
política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Ômega, s/d;
Manuel Diegues Júnior. O Bongüê nas Alagoas, Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Saúde, 1948; Fernando de Azevedo,
Canaviais e Engenhos na Vida Política Brasileira (1948); Rui
Facó, Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, s/d; e Alberto Passos Guimarães, Quatro
Séculos de Latifúndio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, s/d.
COIPYRIGHT A\UTOR DO TEXTO
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