sexta-feira, 22 de junho de 2012

RUY BARBOSA: A REFORMA DO ENSINO PRIMÁRIO

29 Políticas públicas e o projeto de reforma do ensino primário de 1883: vinculação entre educação corporal e educação para o trabalho Daniel Vieira da Silva1 Adriana Franco2 R esumo Apoiados no referencial teórico oferecido pela ciência da história, tomamos o trabalho - atividade social humana -, como categoria central para a formação e transformação da consciência humana e, também, como mediadora dos questionamentos relativos à Educação. Neste sentido, a partir de uma pesquisa documental, este artigo analisa as propostas de intervenção explicitadas no projeto sistematizado por Rui Barbosa, datado de 1883, relativo à reforma do ensino primário no Brasil. Embora apresentando uma tendência a restituir no indivíduo um senso primário de unidade psico-orgânica, evidenciamos que as práticas institucionalizadas e desenvolvidas na e pela escola novecentista, ao pretender formar o cidadão, o homem novo, o ser integral, de fato, preparou o campo para o surgimento, no Brasil, de um novo homem, a saber: o trabalhador coletivo. Palavras-chave: corpo; trabalho; consciência; escola burguesa. Introdução O objetivo deste texto é apreender a inserção da educação do e pelo corpo como elemento da prática pedagógica; para tanto, nos propomos a situá-la enquanto elemento de formação social. Desta forma, adotando uma perspectiva de análise materialista, histórica e dialética, acolhemos como norteadores para as reflexões que ora iniciamos, os seguintes pressupostos: a) a apreensão de determinado fenômeno somente pode se dar à luz das relações que este estabelece com os processos vitais do homem, constituídos em determinadas condições históricas; 1 Universidade Tuiuti do Paraná - danielsilvacwb@terra.com.br 2 Universidade Tuiuti do Paraná - adriffranco@hotmail.com 30 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco b) a escola burguesa vem, desde seus primórdios, respondendo aos imperativos orientados pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção; c) a transmissão do saber, tem como principal objetivo colocar o homem-individual em relação com as apropriações efetivadas pelo homem-genérico, de todo o sistema de objetivações, historicamente elaborado – instrumentos, linguagem, ciência, etc; d) o corpo enquanto elemento constituído pelo e constitutivo do processo de produção, ocupa um lugar central na formação da infância; não só no que tange ao desenvolvimento de habilidades motoras, mas, também, no sentido de favorecer a incorporação de certos conceitos fundamentais e hábitos de reflexão correspondentes aos imperativos sociais. Apoiados, portanto, no referencial teórico oferecido pela ciência da história tomamos o trabalho - atividade social humana -, como categoria central para a formação e transformação da consciência humana e, também, como mediadora dos questionamentos relativos à perspectiva idealista que tem norteado as produções e reflexões relativas ao corpo na Educação. Ao conceber o homem, entendendo-o como um ser eminentemente social, Vigotski (1987) estabelece que a formação e desenvolvimento do psiquismo humano ocorrem com base em uma crescente apropriação dos modos de pensar, sentir e agir culturalmente elaborados. Nesse sentido, considera que o homem não possui uma natureza humana inata e imutável. Ao contrário, segundo essa visão, ele conta tão somente com uma “condição humana”, uma vez que constrói sua existência na e pelas interações mantidas a realidade física e social, buscando satisfazer suas necessidades. Como afirma Leontiev (1978, p. 267), o homem, ao nascer, é candidato à humanidade e é introduzido no mundo da cultura por outros indivíduos, segundo ele o homem é um ser de natureza social, que tudo o que há de humano nele provém da sua vida em sociedade, no seio da cultura criada pela humanidade: “cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a Natureza lhe dá quando nasce não basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana”. Em outro momento, o mesmo autor acrescenta: “o homem possui ao nascer uma aptidão que apenas o distingue fundamentalmente 31 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco dos seus antepassados animais – a aptidão para formar aptidões especificamente humanas” (op. cit., p. 273). Tudo isso implica que a apropriação da cultura – que humaniza o bebê humano - só é possível a partir do contato social. Neste processo, a criança vai tornando seu aquilo que é patrimônio de seu grupo cultural, atribuindo-lhe sentidos a partir daqueles já construídos em sua história de interações. Salientamos que este trabalho analisa as propostas de intervenção corporal, explicitadas no projeto sistematizado por Rui Barbosa, datado de 1883, relativo à reforma do ensino primário no Brasil. O s princípios da educação burguesa no Brasil Nas últimas décadas do século XIX, o adensamento do processo republicano brasileiro deixou evidente a necessidade de implementação, no Brasil, de uma nova cultura. Contrapondo-se ao regime escravocrata, à monarquia, ao clero, entre outras instituições herdeiras do feudalismo, os republicanos aspiravam elevar o país ao nível das nações ocidentais mais desenvolvidas, respondendo aos imperativos de expansão do liberalismo, do capitalismo industrial e agrícola, em nossas fronteiras. Neste sentido, colocou-se como objetivo das elites brasileiras, sedimentar no país uma ideologia que ratificasse o imperativo da defesa da propriedade privada, da igualdade de direitos entre os homens, da liberdade individual, da livre iniciativa, da democracia. Neste contexto, a teoria da seleção natural de Darwin ocupou lugar central no processo de matrizamento da nova ordem e progresso em nosso país, na medida em que a burguesia nacional elegeu, ao lado do positivismo comteano, o spencerismo3 ou darwinismo social, como pilares do modelo para a consolidação da nova sociedade brasileira. 3 Segundo Gomes e Lhullier, “[o] spencerismo procedia das teorias de Herbert Spencer (1820-1903) e se caracterizava por uma visão evolucionista baseada em um princípio comum e incognoscível, abrangendo da matéria à vida, da vida à consciência. Era uma teoria que defendia à hereditariedade das qualidades adquiridas. A psicologia, para Spencer, estaria ao lado da biologia. As capacidades psicológicas seriam funções adaptativas que levariam o humano a um melhor convívio com o ambiente e consigo mesmo. Neste sentido, o evolucionismo de Spencer culminaria com o individualismo que seria orientado para uma perfeição possível, assentada na liberdade, na ética e na moral”. (GOMES,W.B.; Lhull ier, C. Formação Intelectual de Porto Alegre. s/d. Disponível em: www.ufrgs.br/museupsi/PSI-RS/Chap1.htm. Acesso em: outubro de 2006. 32 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco Dentre os intelectuais brasileiros que desempenharam papel fundamental na instauração da nova ordem social no país, destacamos a atuação de Rui Barbosa que, dentre tantas contribuições, sistematizou o projeto Reforma do Ensino Primário e várias instituições complementares da instrução pública, de 1883. Segundo esta proposta, à nova escola4, como eram chamados os aparelhos de ensino do movimento brasileiro de escolarização de massa no século XIX, se colocaram alguns desafios. Destes, destacamos quatro: a) confrontar e desarticular a estrutura do ensino tradicional; b) distribuir o conhecimento a partir de uma proposta de ensino-aprendizagem ativa e econômica; c) confrontar e derrotar, como disse Rui Barbosa, a “chama sinistra das paixões niveladoras”, explicitando uma clara perspectiva anti-socialista e antianarquista; d) implementar a inserção e adequação do trabalhador ao processo industrial capitalista.( BARBOSA, 1886; SOUZA, 2000; MONTEIRO, 2000; VALDEMARIM, 2000) Ao delinear as perspectivas metodológicas para a escola da modernização, Barbosa atacou veementemente o verbalismo e o anacronismo do ensino tradicional, propondo um processo escolar pautado no positivismo, perpspectiva que defendia, e defende, um modo natural, empírico e enciclopedista de acesso ao conhecimento, tendo em vista as necessidades de rápida expansão do ensino entre as camadas populares e da exiguidade de investimentos para tal. Além dos aspectos econômicos, o projeto reformista de 1883, no capítulo intitulado Economia Política, Barbosa explicita com bastante clareza os objetivos político-pedagógicos de sua proposta. Iniciando pela pergunta – Tereis educado as classes populares, as camadas operárias e as partes menos afortunadas e mais duramente laboriosas da nação, se lhes não incutirdes, pela evidência das leis naturais, a convicção do caráter providencial das desigualdades, em que a riqueza divide os homens ainda no seio dos Estados mais felizes? -; é o próprio autor quem encaminha a seguinte argumentação: Se quereis, pois, cimentar a ordem necessária das sociedades em bases estáveis, é na escola que as deveis lançar. É antes de experimentar as primeiras agruras, as primeiras feridas do combate pela existência, que o 4 Importante ressaltar a distinção desta denominação em relação àquela representativa do movimento educacional brasileiro intitulada, nos anos de 1920, Escola Nova. 33 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco futuro trabalhador há de sentir, pela direção da cultura que receberem as suas faculdades nascentes, o valor supremo, a inviolabilidade absoluta dos interesses que presidem à distribuição das categorias socais pela herança, pelo merecimento e pelo trabalho.[...] Só então o seu espírito disporá da lucidez precisa, para se revestir em tempo do tríplice bronze do bom-senso contra as loucuras socialistas, contra os ódios inspiradores de subversão revolucionária, e compreender que o nível da demolição, preconizado pelos inventores de organizações sociais em nome da igualdade universal, representa em si, pelo contrário, a mais tenebrosa de todas as opressões, a mais bárbara de todas as desigualdades, a mais delirante de todas as utopias.[...] Ora, se, para atuar nesse indivíduo, não lhe encontrardes no espírito certos conhecimentos fundamentais e certos hábitos de reflexão, que probabilidade haverá de persuadirdes a um faminto de que o capitalista não é um ladrão privilegiado? [...] é de todas as matérias de estudo que deve resultar a ação moralizadora: eis a fórmula de toda educação eficaz.(BRASIL, v.X.; t.II, 1947:361-70) Partindo destas argumentações, evidenciamos os princípios da educação de massa inaugurada no final dos anos de 1800, quais sejam: formação de pré-requisitos para a expansão do processo capitalista na nação, através do ato de inculcarem-se precocemente, certos conhecimentos fundamentais e certos hábitos de reflexão que confirmassem, justificassem e auxiliassem no processo de universalização da ideologia burguesa e utilitarista entre a população menos valida. Considerando a infância enquanto um período que também prepara para a vida adulta, como esse preparo era pensado neste momento histórico e com quais intencionalidades? Segundo Leontiev (1978), para compreensão do desenvolvimento da psique infantil, faz-se necessário analisar o conteúdo da atividade da criança nas condições concretas de vida. Desta forma, o desenvolvimento infantil só pode ser adequadamente compreendido, para o autor, se analisado à luz da categoria atividade: Só com este modo de estudo pode-se elucidar o papel tanto das condições externas de sua vida, como das 34 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco potencialidades que ela possui. Só com esse modo de estudo, baseado na análise do conteúdo da própria atividade infantil em desenvolvimento, é que podemos compreender de forma adequada o papel condutor da educação e da criação, operando precisamente em sua atividade e em sua atitude diante da realidade, e determinando, portanto, sua psique e sua consciência. (LEONTIEV, 2001, p.63). Dessa forma, podemos pensar que a educação que se inicia no final dos anos de 1800 não apresenta princípios que busquem a construção da consciência e a emancipação do ser, o papel educativo orienta-se por uma visão naturalizante de desenvolvimento, não fornecendo subsídios necessários para o desenvolvimento pleno. O corpo no processo formativo do “novo homem” brasileiro Ao explicitar os elementos básicos da prática pedagógica, o projeto de Rui Barbosa ressalta a importância de uma metodologia pautada na experimentação direta da realidade, mais precisamente, na centralidade da experiência sensorial. Seguindo este propósito, essa abordagem colocou o corpo na centralidade do processo formativo. Se, no ensino tradicional, o corpo era secundarizado e concebido como fonte de impurezas perturbadoras da sublimação, devendo ser higienizado pelo suplício, na nova escola esta dimensão humana foi, também, objeto de higienização/cuidado, porém, através de exercícios físicos e atividades lúdicas, orientadas pelo pressuposto de uma íntima ligação entre cerebração e musculação. Deste modo, a prática pedagógica evidenciada, pelo referido projeto, partiu do princípio de que aquilo que penetra a mente humana, sobretudo na primeira infância, pela via dos sentidos, pela experiência corporal, fixa-se na memória de maneira indelével. Neste sentido, o mentor da reforma de 1883, evidenciando um nítido engajamento ao espírito spenceriano, sintetiza que [não] é outro o segredo do método intuitivo, senão tratar o menino como criatura, que possui em si mesma o instinto do saber e todas as faculdades precisas para o adquirir: o seu empenho [dos professores] está em deixar entregue a si própria a natureza, tanto quanto se possa. (BRASIL, v.X.; t.II, 1947:361-70) 35 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco Temos nesta afirmação, explicações com base em uma concepção de homem abstrata, absoluta e universal, que partem do princípio de que existe uma ‘natureza humana’, comum a todos os homens. Desta forma, orientado por um princípio educacional pautado no utilitarismo, ao discutir o papel da Educação Infantil, Barbosa, tomando a proposta norte-americana de ensino infantil como referência, revela o engajamento deste nível da educação com os princípios liberais capitalistas, da seguinte forma: É sob o aspecto industrial que a nossa experiência dos jardins de crianças promete os mais satisfatórios resultados. Numa idade tenra, quando o menino, como matéria plástica, se pode amoldar à vontade, começa uma educação apropriada a infundir-lhe a perícia da mão e a segurança do olhar. Várias espécies de mimosos trabalhos manuais formam-lhe a percepção, desenvolvem-lhe o gosto e exercitam-lhe a habilidade. (Brasil, v. X –1883, t. III., 1947:69). Pela citação acima, fica evidente que os pré-requisitos a serem desenvolvidos nos anos de Jardins referem-se ao desenvolvimento de habilidades preparatórias para o trabalho fabril nos seus aspectos mais primários: amoldar [a] vontade - desenvolver a obediência, objetivar a atenção e a disposição -, isto quer dizer criar pertinência para as determinações do processo produtivo; infundir-lhe a perícia da mão e a segurança do olhar - clara menção ao desenvolvimento da coordenação óculo-manual e viso-motora, aspectos da motricidade humana importantíssimos para a precisão do movimento. Além disto, o preparo precoce para a subsunção da força de trabalho pelo capital se dava sob a aparência de mimosos trabalhos manuais, fato que se contrapunha, veementemente, ao tratamento recebido pelos indivíduos, uma vez inseridos no processo produtivo. Embora o texto da proposta de reforma de ensino brasileira não se valha do termo psicomotricidade, podemos dizer que as intervenções corporais nos kindergartens tinham como fulcro a intervenção precoce sobre os aspectos do desenvolvimento psicomotor. Nossas considerações se evidenciam com maior clareza na citação reproduzida abaixo, de autoria de Willian Harris, superintendente da instrução pública de S. Louis/Missouri. Diz ele: 36 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco …se a escola há de conter alguma preparação especial para as artes e ofícios, só o kindergarten se poderá desempenhar desse propósito. A educação dos músculos – a ser certa a sua necessidade para a destreza nos trabalhos de manipulação – há de principiar na primeira infância. À maneira que se adiantam os anos, mais difícil se vai tornando o adquirir novos gêneros de agilidade manual. A prática habitual de empunhar os objetos com a mão direita, logo no primeiro ano da vida, torna dextro para sempre o menino. Os músculos, de uma consistência ainda branda são muito fáceis de adaptar em todas as direções. Semelhantemente, a criança educada por um ano no uso das dádivas e exercícios de Froebel adquirirá uma agilidade de mãos e uma certeza de medição visual, que lhe dure para a vida inteira. (HARRIS, in BRASIL, v. X –1883, t. III., 1947:70). Uma vez que era clara a utilização dos processos (pré) escolares para remediar a necessidade de aliciar o elemento humano para a atividade manual, fomentando, precocemente, o gosto pelos ofícios mecânicos, desenvolvendo habilidades motoras, organizando comportamentos e formas de pensar, podemos inferir que a ênfase dada pelos educadores para que os jardins fossem lugares agradáveis, tinha como um de seus princípios norteadores relacionar, no imaginário infantil, a ideia de prazer à atividade de trabalho manual, de obediência e disciplina. A forma de pensar o educando, de pensar a educação escolar, torna-se constitutiva de sua subjetividade. As condições materiais serão, portanto, definidoras neste processo. Neste sentido, a atribuição das instituições de Educação infantil enquanto lugar de cuidado a infância, voltado a liberar/incentivar a mão de obra adulta para o trabalho fabril, fica qualitativamente ampliada. A extensão disto ficará ainda mais clara, quando analisamos os objetivos das práticas corporais propostas no documento de Babosa, para os jovens e adolescentes, instrução complementar àquela destinada à primeira infância. Enquanto a prática educativa dos jardins, no projeto reformista de 1883, orientou uma prática de abordagem corporal suave, envolta numa égide de ludicidade e criatividade, para além da primeira infância, as práticas corporais tomaram um sentido adicional: 37 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco partindo de um tipo de ginástica vigorosa, procurou-se estimular a virilidade e a atitude combativa na juventude nacional. Tais práticas centravam-se, sobretudo, nos exercícios higienistas/militaristas, na atualidade, implacavelmente combatidos pelos profissionais da Educação Física. Para se ter uma ideia a respeito da unidade higienismo/militarismo/nacionalismo, trazemos a seguinte citação, a qual ressalta a ratificação de Barbosa à opinião de Braun, inspetor das escolas normais da Bélgica: Seria, portanto, uma lacuna imperdoável omissão dos exercícios militares num plano de reorganização do ensino popular. Quer como meio de lançar nos hábitos da mocidade a base da defesa nacional, quer como escola das virtudes varonis do patriotismo, quer como princípio influidor de elevadas qualidades morais, este ramo de instrução encerra um valor considerável, e representa um papel essencial. “Além do benefício que deles provem à saúde”, diz o inspetor das escolas normais belgas, “ao desenvolvimento do vigor e da destreza, são um precioso elemento de ordem, regularidade e disciplina”. (BRAUN, in BRASIL, v. X –1883, t. II., 1947:94.) Vigor e destreza física, ordem, regularidade e disciplina - entendendo-se disciplina como atenção forte e viva, obediência pronta, império do indivíduo sobre si mesmo, silêncio, paciência, respeito à autoridade -; não são estes, os elementos básicos necessários a uma boa força de trabalho? O documento nos permite constatar que a expropriação do conhecimento a que são submetidas às crianças das classes trabalhadoras na sociedade capitalista vem sendo produzida historicamente. Adotando o discurso do Dr. T. Gallard, Barbosa vai além, em suas argumentações sobre os benefícios do militarismo-higienismo: Referindo-se ao uso das armas nos exercícios militares da escola, pondera um higienista: “Este exercício encerra, entre todos, a enorme vantagem de permitir a quem o executa a ação simultânea e perfeitamente coordenada de todas as partes do corpo. A arma tem certo peso; passa de um ao outro braço; durante esses movimentos 38 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco as pernas são alternativamente levadas já para frente, já para a retaguarda, a fim de estabelecer o equilíbrio. Essa necessidade de equilibrar-se, maneando um objeto de tal peso, determina nos músculos do tronco e do colo contrações, que os fazem participar, em proporções justas, dos movimentos executados pelos membros. Não há, enfim, nada mais capaz de desenvolver a agilidade, e infundir precisão aos movimentos, do que esse hábito de manobrarem os alunos ombro por ombro uns com os outros, sem se embaraçarem mutuamente. (GALLARD, in BARBOSA, v. X –1883, t. II., 1947:94-95) Como podemos observar, a prática corporal na Educação Infantil, seguindo os pressupostos norte-americanos de industriosidade, funcionou como atividade preparatória para a atividade produtiva manual e a esses objetivos, nas idades mais avançadas, também se adicionaram os de segurança nacional. Por fim, ressaltamos que a preocupação em religar teoria à prática, mente ao corpo, desenvolver o cérebro através de exercícios corporais, argumento central da formação do novo homem, tinham seus limites muito bem colocados. Na verdade, podemos afirmar que tinham objetivos bem estabelecidos, em uma visão dicotômica: a maioria da população teria nascido para fazer e executar tarefas e uma pequena parcela para pensar e definir o futuro da nação. Isto se revela, claramente, pela citação abaixo, adotada de Spencer, por Barbosa. Disse ele: A primeira condição de felicidade neste mundo, bem reflete um pensador, é ‘ser um bom animal’, e a primeira condição de prosperidade nacional é que a nação seja composta de bons animais. Não só é frequente depender o desfecho das guerras da força e ardimento dos soldados, mas ainda é certo que, nas lutas industriais também, a vitória é inerente ao vigor físico dos produtores. (Brasil, v. X –1883, t. II., 1947:75.) Pelo exposto acima, fica explícito que as práticas pedagógicas enaltecidas pelo projeto de Reforma do Ensino Primário de 1883, pressupondo uma íntima ligação entre processos cerebrais e 39 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco processos motores, foram convocadas, desde a Educação Infantil, a respaldar o ideário liberal constituindo, parafraseando Barbosa, certos conhecimentos fundamentais, certos hábitos de reflexão e de viver, que pudessem acolher como natural: as desigualdades materiais; a hierarquia social; a divisão do trabalho; a exploração do trabalhador como fundamento do progresso e constituição da nação; a defesa, com a própria vida, da propriedade alienada; a instrução formal como pressuposto e possibilidade de participação política e mobilidade social (MONTEIRO, 2000). A forma como a educação é concebida no Projeto, acabou por cercear o desenvolvimento da consciência, uma vez que restringe, deliberadamente, o contato do educando com muitas das conquistas realizadas pela humanidade. C onsiderações finais A ideia de Marx e Engels (1979, p. 37) de que “os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos do seu pensar” e que “[não] é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina consciência”, nos remete ao pensamento de que a formação disponibilizada pela classe dominante aos menos favorecidos, ao mesmo tempo, que mitigou a ignorância e as condições de vida da população trabalhadora, o fez na medida de seus interesses. Criando, desde a mais tenra idade, um senso de estranhamento, para não dizer de oposição, entre o modo de vida proletário e a promissão liberal, a criança da classe trabalhadora foi conduzida à escola, mais para subtrair-se de sua própria classe social e adquirir a mentalidade imposta por seu próprio inimigo, que para apropriar-se das condições de vida e do conhecimento produzido coletivamente. Além disto, as técnicas de intervenção sobre o corpo, implementadas na origem da escola burguesa, seguindo a simplificação resultante da divisão do trabalho sobre a atividade humana, ao abordarem o corpo humano, desde a primeira infância, numa perspectiva enciclopedista e utilitarista, reduziram as condições de apropriação e utilização do corpo e, consequentemente, de desenvolvimento da consciência, na perspectiva de Leontiev, ao nível operacional. Deste modo, embora restituindo no indivíduo, um 40 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco senso primário de unidade psico-orgânica, podemos dizer que as práticas corporais institucionalizadas e desenvolvidas na e pela escola burguesa novecentista, ao pretender formar o cidadão, o homem novo, o ser integral, de fato, preparou o campo para o surgimento, no Brasil, de um novo homem, a saber: o trabalhador coletivo. Se por um lado as contribuições da escola burguesa prepararam os corpos e os espíritos para alavancar o projeto capitalista nacional, para a maioria dos brasileiros isto representou a condição da própria alienação. A bstract Supported by the theoretical frame of reference provided by the science of history, we regard the human, social activity of work as a central category for the development and transformation of human consciousness, as well as an intermediary for issues and questions concerning Education. In that sense, based on a documental research this article analyzes the intervention proposals systematized by Rui Barbosa in the 1883 project concerning the overhaul of primary education in Brazil. We have concluded that, in spite of presenting a tendency to restore the individual to an elementary notion of psycho-organic whole and of their inclination to form the citizen, the brand new man, the integral being, the institutionalized practices developed within and by the 18th-century school laid the groundwork for the emergence of a different kind of man in Brazil, namely the mass worker. Key words: body, work, consciousness, bourgeois school R eferências BRASIL – Ministério da Educação e Saúde. Obras completas de Rui Barbosa. v. X – 1883, t. II – Reforma do Ensino Primário e várias instituições complementares da instrução pública. Rio de Janeiro, RJ.: Imprensa Nacional,1947:59-60. (Sic.) Brasil – Ministério da Educação e Saúde. Obras completas de Rui Barbosa. v. X –1883, t. III. – Reforma do Ensino Primário e várias instituições complementares da instrução pública. Rio de Janeiro, RJ.: Imprensa Nacional, 1947:69. LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Livros Horizonte: Lisboa: 1978. 41 Políticas públicas ... - Daniel V. Silva e Adriana Franco MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Ciências Humanas. 1979. MONTEIRO, Regina Maria. Civilização e cultura: paradigmas da nacionalidade. Campinas - SP: Cadernos Cedes, ano XX, n.51, 2000. SILVA, Daniel Vieira da. A Psicomotricidade como prática social: uma análise de sua inserção como elemento pedagógico nas creches oficiais de Curitiba (1986-1994). Curitiba, PR: Universidade Tuiuti do Paraná, Coleção Dissertações, 2007. SOUZA, Rosa Fátima de. Inovação educacional no século XIX: a construção do currículo da escola primária no Brasil. Campinas- SP: Cadernos Cedes, ano XX, n.51, 2000. 09-28 VALDEMARIN, Vera Teresa. Lições de coisas: concepção científica e projeto modernizador para a sociedade. 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