quarta-feira, 13 de junho de 2012

vida inorgânica vs. vida orgânica

4 CADERNOS TEMÁTICOS DE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA A Química Inorgânica na Química Medicinal N° 6 – JULHO 2005 Introdução Muitos metais têm um papel importante nos sistemas vivos, uma vez que se ligam e interagem com moléculas biológicas tais como proteínas e o ADN, e apresentam afinidade por moléculas cruciais para a vida, como a de oxigênio, O2, ou a de óxido nítrico, NO. Sendo assim, a evolução natural incorporou os metais às funções essenciais à vida. Sabemos que o transporte de oxigênio e de elétrons é feito respectivamente pelo ferro da hemoglobina e dos citocromos, que o zinco exerce função estrutural importante, e que minerais contendo cálcio são constituintes dos ossos. Se a natureza usa os metais em sistemas biológicos, surge a pergunta: seria possível empregá-los como medicamentos? Ainda que a elucidação dos mecanismos de ação dos metais no organismo seja relativamente recente, seu uso em Medicina vem sendo praticado há aproximadamente 5000 anos. De fato, os egípcios usavam cobre para esterilizar a água 3000 anos antes de Cristo, e o ouro era empregado na fabricação de medicamentos na Arábia e na China há 3500 anos, mais em razão da natureza preciosa do metal do que de suas propriedades medicinais, pois se acreditava que um metal nobre deveria trazer benefícios ao organismo. Medicamentos contendo ferro eram usados no Egito 1500 anos antes de Cristo e já no século dezesseis o médico suíço Theophrastus Paracelsus (1493- 1541, Figura 1) desenvolvia e usava medicamentos à base de mercúrio. No entanto, somente nos últimos cem anos as propriedades medicinais de compostos inorgânicos começaram a ser investigadas de forma racional, com o emprego de compostos de ouro no tratamento da tuberculose, dos antimoniais para o tratamento de leishmaniose e de compostos à base de arsênio para o tratamento da sífilis. A Química Inorgânica Medicinal em sua forma atual teve suas origens nos trabalhos de Paul Ehrlich, prêmio Nobel em Medicina e Fisiologia em 1908 (Figura 2) e Alfred Werner, prêmio Nobel de Química em 1913, o primeiro a ser conferido a um químico inorgânico (Figura 3). Ehrlich foi o fundador da quimioterapia e introduziu as primeiras idéias sobre relações estrutura-atividade e o conceito Heloisa Beraldo Sabemos que a Química Orgânica tem feito inúmeras contribuições para a Medicina, através da descoberta de princípios ativos, do planejamento e da síntese de fármacos. No entanto, a Química Inorgânica tem igualmente papel importante, tanto na clínica quanto na pesquisa e no desenvolvimento de novos medicamentos, como veremos neste Caderno Temático. Mostramos aqui algumas possibilidades de intervenção da Química Inorgânica na Química Medicinal, através de exemplos de compostos inorgânicos em uso clínico ou que estão sob investigação, bem como de compostos orgânicos cujo mecanismo de ação envolve a interação com um metal. Química Medicinal, Química Inorgânica Todas as substâncias são venenos. O que diferencia um medicamento de um veneno é a dose Theophrastus Paracelsus (1493-1541) Figura 1: Theophrastus Paracelsus (1493- 1541), que usava medicamentos à base de mercúrio (cedida por Edgar Fahs Smith Collection, University of Pennsylvania Library). 5 CADERNOS TEMÁTICOS DE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA A Química Inorgânica na Química Medicinal N° 6 – JULHO 2005 de índice terapêutico. Fez ainda uso de complexos metálicos, em especial os de arsênio, na preparação de drogas para o tratamento da sífilis. É interessante notar que os primeiros estudos relacionando a estrutura à atividade foram feitos por Ehrlich para esses compostos inorgânicos de arsênio. Werner é considerado o pai da Química de Coordenação pelo desenvolvimento de sua teoria para explicar a estrutura e a ligação química nos complexos metálicos. A importância da descoberta das propriedades antitumorais do “cisplatina” No entanto, apesar da grande importância dos trabalhos de Ehrlich e Werner, a Química Medicinal dedicavase principalmente ao estudo de compostos orgânicos e produtos naturais até a descoberta, feita pelo físico Barnett Rosemberg (Figura 4) em 1965, das propriedades antitumorais do cis[(diaminodicloro)platina(II)], cis[Pt(NH3)2Cl2], o chamado “cisplatina”. O composto, que já era conhecido desde o final do século XIX, é um arquétipo de droga inorgânica, pois não contém um só átomo de carbono. As investigações sobre o cisplatina constituem talvez o maior sucesso da Química Inorgânica Medicinal, uma vez que a partir do uso clínico do composto, em 1978, o número de mortes de homens por tumor de testículo diminuiu cerca de 80%. Desde então, houve um grande interesse por complexos metálicos como possíveis agentes terapêuticos, e iniciou-se uma nova era de busca por compostos metálicos com propriedades farmacológicas, investigação de mecanismos de ação e tentativas de melhorar a atividade. O interesse nas aplicações da Química Inorgânica em Medicina continua a crescer, com a procura por novos alvos e novas oportunidades de intervenção da Química de Coordenação na Química Medicinal. Aplicações da Química Inorgânica em Medicina Nesse sentido, podemos subdividir as aplicações da Química Inorgânica em Medicina em duas categorias: a dos compostos orgânicos que agem através da coordenação a metais livres ou ligados a proteínas dentro do organismo, e a das drogas ou compostos usados em diagnósticos, que já contêm metais, como os antitumorais de platina, os antimoniais usados contra leishmania, antiartríticos contendo ouro ou compostos metálicos usados em diagnóstico para detecção e imagem. Compostos orgânicos podem ser usados como agentes quelantes para o tratamento de excesso de íons metálicos, seja devido à intoxicação por metais exógenos (como por exemplo na intoxicação por chumbo), seja por defeitos metabólicos que levam ao excesso de metais endógenos, como na doença de Wilson (excesso de cobre) ou na talassemia (excesso de ferro). O tratamento consiste na administração de agentes quelantes orgânicos, os quais devem cumprir requisitos adequados de especificidade, farmacocinética e metabolismo. Metaloproteínas constituem alvos interessantes para drogas orgânicas, que podem coordenar-se aos metais no sítio ativo, inibindo a ação enzimática. Uma estratégia no desenho de novos fármacos é o desenvolvimento de análogos do substrato, que se ligam competitivamente ao metal no sítio ativo. Essa estratégia tem sido usada no desenho de drogas para o tratamento da AIDS e do câncer, em que se procura inibir sítios de metaloproteínas contendo zinco. Um outro exemplo seria o de drogas usadas como agentes anti-hipertensivos, e que agem coordenando-se ao zinco presente na estrutura da enzima conversora da angiotensina (ECA), envolvida na regulação da pressão arterial. A coordenação aos cátions metálicos pode alterar significativamente o perfil fisiológico das drogas. De fato, a lipofilia modifica-se pela combinação metal-droga, o complexo pode Figura 2: Paul Ehrlich (1854-1915), prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, 1908 (cedida por The Nobel Foundation). Figura 3: Alfred Werner (1866-1919), prêmio Nobel de Química, 1913 (cedida por The Nobel Foundation). Figura 4: Barnett Rosenberg (1926-) (cedida por Technion - Israel Institute of Technology). 6 CADERNOS TEMÁTICOS DE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA A Química Inorgânica na Química Medicinal N° 6 – JULHO 2005 ser mais ativo do que o ligante livre, alguns efeitos colaterais podem diminuir pela complexação, o mecanismo de ação pode envolver ligação a um metal in vivo, como no caso da ligação aos sítios metálicos de enzimas, e o complexo metálico pode ser um veículo para a ativação do ligante como agente citotóxico. Finalmente, a coordenação pode levar a uma significativa redução da resistência celular, já que os mecanismos de resistência que reconhecem um composto orgânico podem não reconhecê- lo quando complexado a um cátion metálico. Exemplos interessantes de interações metal-droga podem ser citados, como a captação celular de complexos de cobre de tiossemicarbazonas, que é facilitada com relação à dos ligantes livres, em razão de um aumento da lipofilia, ou o fato de que complexos de cobre e zinco de vários ligantes podem exibir atividade similar à das enzimas superóxido dismutases, importantes na remoção de radicais livres superóxido, que são agentes tóxicos mediadores de inflamação, câncer e AIDS. O desenvolvimento da Química Inorgânica Medicinal: uma nova área da Química Como reflexo do desenvolvimento dessa nova área da Química Inorgânica, em 1994 apareceu o primeiro número da revista Metal-Based Drugs, que lista, nas suas áreas de interesse, estudos de drogas antitumorais à base de metais, como os análogos do cisplatina e outros complexos, agentes antimicrobianos, antiartríticos (como complexos de ouro), anti-hipertensivos, (como complexos de ferro e rutênio), antivirais, suplementos minerais, compostos de bismuto ativos contra a bactéria Helycobacter pylori, causadora da úlcera, e antiácidos (por exemplo, Al, Na, Mg, Ca). A conferência intitulada “Metal ions in Medicine: targets, diagnostic and therapeutics” (Íons metálicos em Medicina: alvos, diagnóstico a terapêutica), teve lugar no campus do Instituto Nacional de Saúde (National Institute of Health, NIH), nos Estados Unidos, em junho de 2002. Dela participaram pesquisadores e representantes das indústrias farmacêuticas. O foco da conferência foi a pesquisa básica, mas com uma visão clara das potenciais aplicações dos metais em Medicina. Entre as várias questões apontadas como essenciais durante a conferência, pode-se citar o desafio de controlar a reatividade do metal para melhorar a especificidade com redução de toxidez. Contudo, esse desafio não é exclusivo aos compostos contendo metais, uma vez que compostos orgânicos devem fundamentalmente cumprir com os mesmos requisitos. A maior preocupação por parte das indústrias farmacêuticas com relação a drogas contendo metais pareceria ser a da toxidez, principalmente a de metais não-essenciais. No entanto, a dicotomia essencial versus tóxico vem sendo substituída pelo princípio dose-resposta, já que metais essenciais podem também causar efeitos deletérios, quando em altas doses. De fato, Paracelsus já havia percebido, no século dezesseis, que “todas as substâncias são venenos; o que diferencia um medicamento de um veneno é a dose”. A Química Inorgânica Medicinal é uma área multidisciplinar, que combina Química Orgânica e Inorgânica, Farmacologia e Bioquímica. Como área recente, já apresenta muitas aplicações mas poucos princípios teóricos que, felizmente, têm aumentado nos últimos tempos, tais como o de que a dose diferencia os efeitos benéficos dos indesejáveis, o de que os efeitos se devem não apenas ao metal, mas à entidade metal-ligante e o de que a biodisponibilidade de um composto contendo um metal é o que determina seu impacto bioquímico. Contribuições da Química Inorgânica à Química Medicinal são muitas, uma vez que a Química Inorgânica pode aproveitar-se, para o desenvolvi- Abstract: It is well known that Organic Chemistry has made many contributions to Medicine through the discovery of active principles and by means of the design and syntheses of drugs. However, the interest in uses and applications of Inorganic Chemistry in Medicine continues to expand, both in clinically used compounds and in Inorganic Chemistry helping the development of new pharmaceuticals, as discussed in this thematic issue. Keywords: Medicinal Chemistry, Inorganic Chemistry Referências bibliográficas FARRELL, N. Biomedical uses of Inorganic Chemistry. An overview. Coordination Chemistry Reviews, v. 232, p. 1-4, 2002. ORVIG, C. e ABRAMS, M.J. Medicinal Inorganic Chemistry: Introduction. Chemical Reviews, v. 9, n. 9, p. 2201- 2203, 1999. THOMPSON, K.H. e ORVIG, C. Boon and bane of metal íons in Medicine. Science, v. 300, p. 936-939, 2003. Para saber mais Chemical Reviews, Medicinal Inorganic Chemistry, v. 9, n. 9, 1999, um caderno temático dedicado à Química Inorgânica Medicinal. mento de novas drogas e ampliação do arsenal terapêutico, de propriedades que são exclusivas dos íons metálicos, tais como suas características eletrônicas e nucleares, seus múltiplos estados de oxidação e seu comportamento em campos magnéticos. Procuramos mostrar neste artigo a grande importância da Química Inorgânica tanto em Medicina quanto em pesquisas relacionadas à Química Medicinal. Muitos compostos ditos inorgânicos estão atualmente em uso clínico: antitumorais de platina, antimoniais para tratamento de leishmania, compostos de bismuto para o tratamento de distúrbios gástricos, a “auranofina”, um composto de ouro usado contra a artrite, o “nitroprussiato”, um complexo de ferro em uso nas emergências hipertensivas, e uma variedade de compostos inorgânicos usados diariamente em todo o mundo em diagnóstico e como agentes de contraste. Um grande número de trabalhos vêm sendo realizados sobre assuntos relacionados à Química Inorgânica Medicinal. Este Caderno Temático aborda alguns aspectos dessa área de crescente importância. Heloísa Beraldo (hberaldo@ufmg.br), doutora pela Université Paris VI, França, é professora titular do Departamento de Química da Universidade Federal de Minas Gerais e trabalha na área de Química Inorgânica Medicinal. copyright autor do texto

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