segunda-feira, 24 de setembro de 2012

linguagem ordinária e científica

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Domingo, Novembro 19, 2006

2. Linguagem ordinária e científica

Nota prévia: Estimulado pelo forte interesse que o post anterior, verificável pela quantidade de comentários renovo que isto é um documento de reflexão pessoal. Se quiserem comentar todo o cuidado é pouco, coloquem ou não, a camisinha, ou o diafragma, tá?



Murray Davis, no livro Smut5, evidenciou que, para nomear os ór­gãos e as actividades sexuais, existem duas linguagens completamen­te diferentes. Por um lado, a linguagem popular, ordinária, obscena; por outro lado, a linguagem oficial, culta, séria. Entre as duas, há um abismo. Ou falas uma ou falas outra, não podes misturá-las. De vez em quando, algumas palavras da linguagem ordinária penetram na lin­guagem séria e há palavras que cumprem o percurso inverso. Porém, uma vez realizada a passagem, pode usar-se só uma linguagem ou ou­tra, sem misturá-las. Com efeito, se ao usar o primeiro registo inserir­mos uma frase do segundo, ou vice-versa, obtemos um efeito grotes­co ou cómico.

Davis observa que, na Idade Média, a Igreja condenava de maneira extremamente forte o sexo, mas chamava os órgãos e os actos sexuais com o nome corrente. Só depois, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, as expressões populares são consideradas obscenas, tornam-se impro­nunciáveis, desaparecendo dos dicionários. Dois processos opostos produzem este resultado.

O primeiro é levado a cabo por aqueles que querem abrir um espa­ço ao erotismo, fazer literatura erótica, como os libertinos, que o con­seguem eliminando as palavras ordinárias para eludir a censura. Em seu lugar introduzem imagens, metáforas que evocam a experiência erótica de uma maneira nova. Mais tarde, na época vitoriana procura­-se eliminar qualquer possível referência ao sexo seja qual for a forma sob a qual este se apresente. Tudo o que diz respeito ao sexo é omiti­do ou substituído por alusões e metáforas cada vez mais afastadas do objecto. Até a gravidez se torna «estado interessante».

O segundo processo produz-se no século XIX com a medicalização do sexo. A anatomia dá um nome exacto aos órgãos sexuais e às suas partes, enquanto o nome ordinário os indica de maneira global. Dis­tingue-se o monte de Vénus, a vulva com os grandes e pequenos lá­bios, o clítoris, a secreção das glândulas de Bartolini, a vagina, o colo do útero, etc. Por outro lado, o escroto, as gónadas, a próstata, as vesí­culas seminais, o pénis, a glande, o prepúcio, o esperma. Surge, entre­tanto, a sexologia como disciplina científica separada e são descritas e omeadas com cuidado as várias actividades sexuais e as «perversões». Datam dessa época expressões como coito, cunilingua, felação, escop­tofilia, coprofilia, onanismo, sadismo, masoquismo, feticmsmo, urofi­lia, mpoxifilia, etc. Outros contributos são oferecidos pela antropolo­gia, que põe em evidência as diferenças entre costumes e a moralidade sexual nas populações a nível etnológico.

Surgiu assim uma linguagem científica internacional as séptica, que tem permitido nomear, descrever e analisar os comportamentos se­xuais sem estimular a emoção provocada pela linguagem ordinária, emoção esta que pode ser de excitação, desgosto ou recusa, mas que é sempre intensa.

Porque é que esta dicotomia radical existe? Porque será que a lin­guagem popular, ordinária, soa obscena, mas, ao mesmo tempo, pro­duz excitação sexual aproximando-se da pornografia, enquanto a lin­guagem médica é exacta, permite indicar qualquer coisa sem provocar nenhuma emoção erótica?

No seu conhecido livro Sex in Human Loving, Eric Berne explica a linguagem ordinária conforme o modelo psicanalítico clássico: esta de­riva da infância, das experiências desgostosas experimentadas pessoal­mente ou inculcadas pelos pais durante a infância. «Uma palavra torna­-se obscena quando a imagem que a acompanha é primária [da primeira infância] e repugnante.»6 Dado que cada geração vive na infância es­pecíficas experiências repugnantes, «mesmo se os adultos cancelassem toda a linguagem obscena do seu vocabulário, esta voltaria a aparecer com a geração seguinte».

Respondemos a esta observação psicanalítica de Berne lembran­do que as crianças aprendem a linguagem obscena graças aos miúdos mais velhos e aos próprios adultos. Aprendem-na porque designa as partes do corpo e os actos sexuais dos quais, porém, os adultos logo proíbem falar. Portanto eles percebem que se trata de palavras e coi­sas proibidas e é para violar o tabu dos adultos, para transgredirem a ordem deles, que utilizam essas palavras, primeiro às escondidas, de­pois de maneira manifesta. A revolução sexual dos anos 60-70 adop­tou explicitamente esta linguagem com o intuito de uma revolta ofen­siva. E utilizou da mesma forma e com a mesma função a blasfémia, a imprecação ou a obscenidade dirigida à divindade. Lembro-me de qué durante os dois anos em que fui reitor da Universidade de Trento, um centro do movimento estudantil italiano, muitos estudantes (não os li­deres, que usavam uma linguagem marxista) não conseguiam dizer três palavras sem interpor uma obscenidade ou uma blasfémia. Neste caso, a linguagem sexual obscena não tinha nenhuma função de evocação erótica, mas de mera transgressão, de ofensa à ordem constituída, à re­ligião, ao Estado.

Diversamente de Berne, Bataille afirma que a obscenidade é parte integrante do erotismo porque este é, na sua essência, transgressão, ex­cesso, fragmentação da ordem social e do trabalho. Despedaça o indiví­duo socializado, dissolvendo a sua consciência, e liberta a carne e a sua convulsão cega. Quem é tomado pelo frenesi erótico já não é humano, tornando-se, à maneira das bestas, desenfreadamente cego. Por isso, mesmo os amantes pudicos - observa - respeitosos dos tabus, para excitar-se, para viver até ao fundo uma experiência erótica desenfrea­da, utilizam palavras ordinárias, obscenas, violando o próprio moralis­mo. O erotismo é portanto sempre laceração, despedaçamento, profa­nação do tabu, dos costumes, da linguagem. A sua palavra, a palavra da excitação erótica, por consequência, é sempre obscena, ordinária.

Com base no relatório Kinsey7, ele observa que o mínimo da activi­dade sexual é levado a cabo por quem exerce uma profissão regular, en­quanto o máximo é atingido pelas pessoas do mundo do crime, que con­trolam os night clubs, os jogos de azar, a prostituição. Isto é, por quem estámais longe do trabalho quotidiano, monótono, disciplinado e mais perto da violência, do arbítrio. É do mundo do crime e da prostituição que pro­vém a linguagem obscena, porque é a linguagem do ódio e da profanação.



Não há a mínima dúvida de que a linguagem obscena possa incor­porar em si a violência da transgressão juvenil da ordem dos adultos, a do mundo do crime, a revolucionária dos movimentos e das revolu­ções. Após a batalha de Carberry Hill, Maria Stuart ficou prisioneira dos lordes escoceses e o povo que se levantou contra ela seguiu-a até Edimburgo com um coro de insultos obscenos, dos quais o mais leve foi «puta católica»8. Durante a Revolução Francesa, o processo, a con­denação e a viagem final para a guilhotina eram sempre acompanhados de coros terríveis de obscenidades. Porém, há também a violência do mndo do crime, o qual, além de rapinar, torturar, matar, ao mesmo tempo controla o sexo clandestino, a prostituição, a pornografia e por­tanto cria e dirige os espaços de desenfreamento sexual de que bene­ficiam os seus membros e que são vendidos às pessoas sérias que de­sejam «baldar-se ao trabalho e à família». E, ao fazê-lo, o mundo do crime tem uma relação mais violenta com a própria sexualidade, por exemplo, maltrata brutalmente as mulheres que usa como instrumen­tos e despreza o cliente de que se aproveita.

Publicada por Erecteu em Domingo, Novembro 19, 2006 4 comentários:

Maria disse...

Linguagem ordinária... Depende do sentido da palavra ordinária:



ordinária = porca



ou



ordinária = vulgar, comum



Não sou cientista por isso uso a linguagem do comum dos mortais.



--Apesar de corar muito ^-^ --



*Gostei do texto. O Vilhena sabe "coisas"...



11/20/2006 10:09 a.m.

Erecteu disse...

Tens direito ao prémio de primeira comentadora do S&A -

"Oito Dias na Ilha dos Amores"

É só passar, acompanhada de X, pela Residencial Olimpo onde Erecteu os receberá, para responderem a um formulário.



11/20/2006 12:48 p.m.

Maria disse...

Olha m'esta! A tua bolachinha precisa de preencher papelada? Não é só chegar lá com o X e "prontos"?



:P



beijitos



11/20/2006 2:45 p.m.

Erecteu disse...

Maria,

Muita sorte terás se o Erecteu não te impingir um To em compropriedade num empreendimento lá prá Quarteira.

Cuidado com esse maltez.



11/20/2006 3:26 p.m.

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