domingo, 7 de outubro de 2012

ALEXANDRE HERCULANO


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Alexandre Herculano

Nasce em Lisboa em 1810 e morre em 1877 na sua quinta de Vale de Lobos.



Teve uma vida difícil. Foi quase um autodidacta. Estudou línguas na Aula do Comércio e frequentou as aulas de Paleografia e Diplomática na Torre do Tombo. Data de então a sua aproximação da Marquesa de Alorna.



Emigra em 1831 e toma contacto com Thierry, Guizot e Vítor Hugo. Regressa a Portugal, depois de ir para os Açores, e é nomeado 2º. Bibliotecário do Porto. Demite-se por questões políticas e passa para a Biblioteca da Ajuda. Data de então a publicação de Voz do Profeta, onde se reflecte a influência de Paroles d'un croyant de Lamennais, que Herculano já vertera para Português. Trabalhava e escrevia. Na direção da revista "O Panorama" publica Lendas e Narrativas e O Bobo. Como membro da Academia das Ciências, organizou a publicação de Portugaliae Monumenta Historicana esteira de Germaniae Monumneta Historica de Godofredo de Mounmouth.



Casou tardiamente e, por questões políticas, retira-se para a quinta de Vale de Lobos onde abandona a literatura (apenas escreve Opúsculos) e dedica-se à agricultura até à morte.



Moralmente pode assemelhar-se a Sá de Miranda, pela sua integridade moral e teimosia nas suas ideias sociais e políticas tão em oposição com o Portugal decadente da sua época. Por isso Herculano se integra tão bem no espírito romântico e vai ser a pedra de toque do segundo romantismo.



A sua obra poética está reunida na Harpa do Crente (1838). É uma projecção do seu carácter que revela influência da literatura alemã e francesa. Os temas são românticos: Religião, Patriotismo e Natureza. Temas solenes como pedia o seu temperamento. Oferece-nos uma poesia rica de símbolos, ao serviço de uma ideologia poética filosófica.



Alexandre Herculano foi o iniciador do romance histórico em Portugal. Seguiu o modelo de Walter Scott, romancista que fez reviver em dezenas de obras as velhas tradições do seu país e todo o pitoresco da vida medieval inglesa: ressuscitou gentis donzelas apaixonadas por cavaleiros, reconstruiu castelos imponentes, encheu de armas e sangueiras florestas misteriosas.



Herculano soube relacionar a história com a imaginação sem que uma destruísse a outra. Os seus romances retratam épocas de particular interesse para a escola romântica, como o domínio árabe, a fundação da nacionalidade e a consolidação da sua independência no tempo de D. João I; são fidelíssimos em conservar a cor histórica e local dos acontecimentos narrados: exactidão de vestuário, de armas, de costumes, de interiores e exteriores, de leis, de arquitectura, etc.



Eurico o Presbítero

1. Acção

Eurico, nobre gardingo, mas sem bens de fortuna, fora impedido de casar com Hermengarda, filha do orgulhoso Fábila. Trocou então a armadura de guerreiro valente que era, pela batina de sacerdote. Dedicou-se à vida paroquial em Carteia, terreola insignificante, situada nas proximidades de Gibraltar.



Os primeiros capítulos do romance, em bela prosa poética, são desabafos do coração do presbítero. Solitário, vagueia enregelado, altas horas da noite, pelas ribas do oceano. Lamenta a sua infelicidade amorosa e a condição decadente da sociedade goda. Prevê o avanço de nuvens negras sobre a Espanha cristã. O futuro de todos aparece-lhe desesperadamente sombrio.



Dá-se a invasão árabe. Nas hostes cristãs em debandada, sobressai o heroísmo do "cavaleiro negro", que ninguém sabe quem é.



Hermengarda, a filha do altivo Fábila, é aprisionada, quando fugia para as Astúrias com os últimos cristãos resistentes, comandados por seu irmão Pelágio, derradeira esperança dos Godos. Prestes a ser desonrada pelo comandante dos exércitos árabes, é salva espectularmente pelo "cavaleiro negro" e conduzida até Covadonga.



Os Árabes sofrem aí a primeira derrota e os cristão cantam vitória pela primeira vez. Após esse dia maravilhoso, todos descansam. O "cavaleiro negro" - espanto dos Mouros e admiração dos Cristãos - identifica-se perante Hermengarda, que cai, louca de amor, em seus braços e lhe pede para no dia seguinte casar com ela. É Eurico, seu antigo noivo… Lembrando-se a tempo de que é sacerdote, o "cavaleiro negro", ululando como um leão ferido, desaparece, para não mais ser visto, e vai oferecer-se à morte, numa luta escusada com os últimos fugitivos do exército mourisco. Hermengarda enlouquece.



Em Eurico o Presbítero há uma intriga amorosa ao lado do enredo político-militar.



2. A estética do livro

O livro é poema, é crónica e é lenda romântica.



a) É poema romântico em prosa

Nos capítulos IV, V e VI, há páginas repletas de sentidas expressões líricas. É aqui que Eurico é o perfeito "alter-ego" do autor. Sob a batina goda do presbítero temos de descortinar o filosófico engenho poético de Herculano, com a sua conhecida propensão para a meditação, para a reflexão profunda sobre os problemas do homem.



b) É crónica

Além de poema este livro é crónica. Isso mesmo se depreende da cor local em que se desenrola a acção, e de certa fidelidade histórica que aflora à superfície de toda a obra, sobretudo no que respeita à vida pública dos Godos, que Herculano confessa conhecer muito bem.



Neste afã de pintar, o historiador não foi manietado pelo romancista, ao descrever os locais, as armas, as vestes, as traições, o evolucionar geral da história da Península num dos seus períodos mais nebulosos.



c) É lenda romântica

É também lenda romântica, como o documentam a paisagem, a hora dos acontecimentos e as personagens.



A paisagem é o belo-horrível dos românticos.



A hora dos acontecimentos é romântica.



As personagens são românticas também.



O "Cavaleiro Negro" é o típico herói do romantismo.



Note-se, porém, que a acção arrasta-se numa efabulação lenta e as personagens verdadeiramente diferenciadas são poucas. O enredo sentimental é diminuto e contrasta com majestosas descrições de paisagens e com os contínuos movimentos políticos e militares. Assim, teremos de considerar esta obra um romance mais de acção política e militar do que propriamente passional.



d) Visão subjectiva da realidade

Nesta novela Herculano deu largas à sua imaginação romântica. Descrevendo uma época de dissolução moral e política (as virtudes dos Godos atrofiadas por vícios provenientes dos decadentes Romanos), por ali semeia pessimismo social, estoicismo guerreiro, tensão espiritual, um certo saudosismo pelas glórias do passado, ascetismo profético, a crença num Deus justiceiro típico do Velho Testamento. Pretende, através do enredo sentimental, documentar a impossibilidade de se encontrar a paz do espírito no refúgio do misticismo; e que o sacrilégio, atentatório dos direitos do absoluto, tem de ser expiado pelo sacrifício cruento.



O celibato de Eurico conduz a acção, como é próprio da estética romântica, a uma situação de tragédia: se o presbítero se une a Hermengarda, será um precito (condenado); se a abandona, leva-a à loucura e mais não lhe resta senão procurar voluntariamente a paz entre os morto.



3. Estilo e linguagem

Algumas características do romance:



1.Na obra vislumbramos um misto de tragédia e de epopeia.

2.Uma história de amor contrariado.

3.A sede de vingança encarnada em algumas personagens, que se movem como autênticos monstros.

4.Gosto pelas aventuras cavaleirescas e insistência na gravidade do sacrilégio, expiado no remorso e na dor. Choque violento do espiritual com o temporal.

5.Digressões em apartes, ora sarcásticas, ora líricas, ora doutrinais.

6.Separação de géneros literários na sequência da acção.

Herculano, na estrutura do romance utiliza:

o diálogo, vertiginoso umas vezes e cheio de dramatismo, outras vezes enfático;

a descrição minuciosa de exteriores e interiores;

a narração de cenas ao ar livre (ou em interiores);

a dissertação sobre assuntos morais e políticos, religiosos, históricos e sociais, num jeito professoral muito próprio.

Estes géneros não se interpenetram: frequentemente encontram-se em capítulos sucessivos.

7.Narração de cenas movimentadas (o rapto de Hermengarda e a fuga e perseguição que se lhe seguiram). Nas frases acumulam-se então verbos como bater, correr, atacar, romper, avançar, retroceder, acometer, arremessar, galgar, derribar, ferver, ferir, encontrar e ainda o dinâmico infinito substantivado.

8.Exagero da solidão, do nocturno, do crepuscular, do fúnebre.

9.Uma linguagem poética, talhada em membros simétricos, com ritmo quase versicular, cheia de nobreza, a exprimir-se num tom ora sonhador ora lamuriento, às vezes a assemelhar o Barroco, outras vezes o Ultra-romantismo.

Panorâmica Geral da Obra de Herculano

Há que distinguir na multifacetada obra de Herculano diversos géneros literários - poesia, romance, história e polémica.



Tendo vivido intimamente ligado ao movimento romântico, de que foi um dos mentores, a sua obra reflecte intensamente as tendências gerais do romantismo.



A sua poesia tem geralmente por tema a meditação sobre a morte, o infinito, o finito, Deus e liberdade, em que participa a natureza, que dá um contributo para o estado de espírito do autor. Legou-nos também o testemunho poético da situação de crise social desencadeada pela instauração do Liberalismo.



Como romancista, Herculano foi o introdutor do romance histórico em Portugal, género consagrado por Walter Scott. Podemos dizer que foi do romance histórico que nasceu o moderno romance português. Pertencem a este género literário O Bobo, Eurico o Presbítero, O Monge de Cister e Lendas e Narrativas, obras em que perpassam as principais características do Romantismo, das quais ressalta como mais evidente a preferência por temas medievais e de reconstituição histórica.



Talvez a razão do pendor do autor para este género literário se devesse ao interesse pela história científica.



Como historiador tentou dar uma história de sociedades e não de indivíduos, apresentando o factor histórico e político como resultado da dinâmica social sempre existente numa comunidade.



A obra polémica de Herculano distingue a querela com o clero pelas afirmações feitas na História de Portugal, a defesa de uma posição política conservadora e a luta por um ensino popular de carácter agrícola e técnico. Nesta actividade, a sua influência foi profunda entre os seus contemporâneos, sobretudo pelo tom solene que conferia aos assuntos de que tratava, dando mesmo ao caso pessoal o tom de "grande causa".



Situação de Eurico o Presbítero na produção literária de Herculano.



A obra foi editada em volume em 1844, um ano depois de ter saído em excertos no Panorama e na Revista Universal Lisbonense.



Faz o Eurico parte do Monásticon, conjunto formado por esta obra e por O Monge de Cister, em que fundamentalmente Herculano trata o problema do celibato monástico, integrando-o na problemática das duas formas de sagrado - a santidade e a maldição.



O herói deste poema épico em prosa tem sido apresentado como o alter ego de Herculano e nele de facto o autor consubstancia grande parte das suas convicções, anseios, frustações e mitos.



Eurico (Herculano) é o homem permanentemente dividido entre o barro terreno e o absoluto divino, é o ser aspirante ao sagrado, mas dilacerado interiormente pela renúncia, embora voluntária. Perfeitamente integrado no ideário romântico, o autor situa a obra no ambiente medieval, transpondo para a sua época os conflitos sociais e políticos descritos, que encontram eco na luta interior das personagens.



A solidão moral do celibato de Eurico poderá ser lida como o sacerdócio leigo de Herculano, que renunciou ao amor de juventude em prol duma dedicação total à causa social, política e literária.



Em Hermengarda reconhecemos o dramatismo duma Ofélia de Shakespeare, figura paradigmática ressuscitada e largamente utilizada pelos românticos como a "penitente do amor".



A construção da obra e a linguagem utilizada deixam-nos bem clara a intenção, aliás confessado pelo autor, de lhe conferir um sopro épico que a aproxime, pelo conteúdo e pela forma, da canção de gesta.



Pela oposição sistemática entre o sublime e o grotesco, sagrado e profano, pelo tom melodramático, pela redescoberta da sociedade medieval, Eurico é exemplo flagrante da inserção inequívoca de Herculano no movimento romântico, ao qual deu valioso subsídio como poeta, historiador e romancista.



Herculano Romancista

Nos seus romances e narrativas históricas, Herculano deu expressão a múltiplas tendências e interesses que as poesias, as obras polémicas e as obras históricas apenas parcialmente revelam. O romance histórico era aliás um género de limites indefinidos, em que se misturavam prosa poética, a erudição, o comentário filosófico, social e político, a descrição pitoresca, a pretexto de narração.



Nas suas narrativas históricas encontramos o sentimento da eternidade em contraste com o efémero das vidas humanas. As ruínas assinalam a passagem do homem rolando no despenhadeiro dos tempos. Onde outrora ferveu o bulício da vida, há hoje desertos. São de origem religiosa certos temas característicos dos romances de Herculano. Em quase todos eles ocupa posição central o tema do sacrilégio, isto é, a violação de mandados divinos, que precipita os protagonistas na expiação cruciante. Eurico não consegue resignar-se espiritualmente ao celibato sacerdotal.



As principais personagens dos romances de Herculano são como que encarnações, dotadas de forças sobre-humanas, anjos ou diabos, consagrados a uma obra de maldição ou de santificação: é o caso de Eurico anjo negro no meio dos combates e de outras personagens dos seus romances. Esta polarização bem romântica entre os dois extremos do sagrado (o divino e o demoníaco) transparece também na adjectivação (solene, santo, maldito, precito) e em imagens tiradas do culto (lâmpada do santuário, anjo do Senhor, etc.).



Outra característica geral do seu romance é o gosto da reconstituição minuciosa de trajos, interiores, arquitecturas, cerimónias e festividades. Revela-se aqui um intenso sentimento do concreto exterior. Mas este gosto do concreto alterna com o dos cenários vagos e puramente imaginários, dominantes no romance Eurico, situado numa época sobre a qual Herculano dispunha de poucas informações.



Outra característica geral do romance histórico de Herculano é o culto do cavaleiresco.



Herculano deixou assinalado na novelística o seu interesse pelos estudos históricos e toda uma concepção da história. Os seus diversos romances abarcam o conjunto da Idade Média portuguesa, a cuja investigação se consagrou especialmente. A evocação medieval dos romances de Herculano, como os de Garrett, insere-se na campanha literária romântica do regresso às "raízes nacionais", fazendo tábua rasa da época clássica que era também, para os Românticos, a do absolutismo monárquico e da decadência nacional.



Note-se a intenção poética da prosa de Herculano, sobretudo no Eurico, deliberadamente concebido como um poema em prosa, quer pelo vocabulário afinado segundo o tom visionário, quer pelo fôlego versicular do ritmo, quer pelo sentido epopeico da própria imaginação plástica. Seria fácil reduzir a verso muitos parágrafos dos romances de Herculano.



Eurico, o Presbítero

I. Romance

1.Intermédio entre a epopeia e o romance moderno. O romance tem o carácter grandioso de uma "canção de gesta" e situa-se na passagem da epopeia para o romance histórico. A psicologia não podia ser analisada porque as personagens, sobretudo Eurico, desenham-se num módulo acima do humano, quase semideuses, como os heróis de Homero, e praticam feitos inverosímeis: o Cavaleiro Negro, na batalha de Criso, a passagem da Sália, o episódio da abadessa do Mosteiro. Vultos agigantados e matéria épica e que é preciso manter na bruma e no prestígio de grandes acontecimentos do passado longínquo. Época visigótica, derrocada de impérios, luta com os Árabes.

2.Progressão de episódios salientes e de linhas simples: a batalha, o episódio do mosteiro, o rapto de Hermengarda, a passagem da Sália, o defecho. O pormenor e a demora ficam só nos primeiros capítulos, em que se apresenta o herói e a sua tumultuosa vida sentimental. Este drama oculto e represo, como um vulcão subterrâneo, rebenta, depois, quando o herói lê, no céu e no combate das nuvens, o presságio dos grandes acontecimentos. Assim, toda a violência e grandiosidade do que se segue foram preparadas pelo drama interior de desesperos e rancores, desencadeados por fim em grandes gestos de epopeia. É o esquema pessoal de Herculano.

3.Estilo oratório. O estilo ergue-se ao tom solene do dizer profético, não só porque a acção era de calamidades, de castigos e de desfechos providenciais, como porque o nível dos acontecimentos se situa a uma altura que excede o módulo vulgar do viver. Encontramos aqui um periodar construído e eloquente, o modo de dizer solene, que supõe cenários de grandeza onde possa ecoar condignamente; ou então é o período agitado e torrencial. Estilo, portanto, sintético e embalado em onda rítmica, sem o corte incisivo e minucioso da análise, que mais corresponde ao romance psicológico, onde se analisam situações e personagens.

II. Romance Romântico

1.Assunto: histórico e semilendário, rente às origens dos reinos da Península. Refrega de Visigodos e Árabes, com o prestígio que estes assuntos exercem sobre os românticos. Cristianismo mais de sentimento que de disciplina e magistério. O "Presbítero" é uma espécie de "espiritual", isto é, homem simplesmente animado de "espírito" cristão, mas com poucas das características que podem conformar o autêntico sacerdócio católico.

2.Conflito amoroso. Amor desigual, contrariado pelos pais, em que o pretendente mais nobre e mais rico não possui a verdadeira nobreza do outro, Eurico, que é poeta e mais puramente apaixonado. A sociedade, mais uma vez, desconheceu o mérito autêntico e criou uma vítima que, daí em diante, saboreará na solidão o orgulho da sua própria tristeza. É este, no fundo, o sentido dos primeiros capítulos do livro. E o sentimento religioso que parece viver não é mais que a transposição sublimada deste amor em sofrimento.

3.Vocação sacerdotal equívoca. A verdadeira vocação é optimista, porque é chamamento ao bem maior de um amor mais alto; o qual, por isso mesmo, que é de ordem sobrenatural, se alimenta fundamentalmente da esperança. Era o que não havia em Eurico: "E a esperança? Oh, a esperança, essa é que não renascera!", coração ermo de afectos. Não sendo para um bem maior, então o sacerdócio é para nada, isto é reduz-se a despeito suicida, fruto e expressão do fracasso amoroso. Procura-se, assim, uma espécie de morte mais elegante e sensacional, com o prestígio dos martírios ocultos que, por outro lado, se fazem discretamente adivinhar aos olhos dos homens.

III. Romance de Herculano

1.Transferência do caso pessoal de Herculano: também ele sacrificara uma paixão da juventude à sua vocação de escritor: "A paixão literária venceu a outra. Tive a coragem de lhe sacrificar esta". Assim, o caso do celibato católico de Eurico apresenta-se-nos como uma espécie de sublimação do homem de letras sacrificado num sacrifício que teria sido em vão, porque, o vulgo não compreendeu a obra…

2.Psicologia do ressentimento. O "Presbítero" é fundamentalmente, uma psicologia de ressentido que se liberta no gesticular grandioso de formidável batalha. A solidão de Eurico é paralela à do romancista, e ambas provocadas pela persuasão do homem superior e incompreendido. Um e outro confundem solidão com vida interior e riqueza moral; assim, um e outro se suicidam, um na batalha, outro em Vale de Lobos. A mesma linha de individualismo estóico, falho da dulcificação do amor incansável. Nos conflitos, ausência de perdão; nas crises, ausência de remédio.

Eurico, o Presbítero (notas complementares)

I. Estrutura Externa

1.Hibridismo de géneros literários ("orquestração verbal", "grave e dramático poema sinfónico"): lirismo elegíaco (poema), epopeia (crónica) e narrativa (romance ou lenda).

2.Montagem em grandes planos:

grandes painéis rememorativos da história goda e da vida de Eurico, nela inserida (epopeia e narrativa);

meditações poéticas (lirismo elegíaco);

visão profética (profetismo religioso-político);

as duas facetas do herói dramático: o presbítero, o poeta.

Classificação Tipológica do Romance:



romance de personagem;

romance de espaço;

romance de acção;

romance do eu - confissão romântica de A.: pessimismo social, estoicismo guerreiro e político, profetismo religiosidade bíblica de sabor Velho Testamento (Deus vingador…), religiosidade romântica (difusa, quase panteística), providencialismo histórico…

romance histórico (medievalismo);

romance de tese (contra a lei do celibato, à luz do sentimento);

romance de intervenção;

romance negro ou de terror ou tétrico: o cavaleiro negro, o sacrifício cruento das monjas, a caverna, cenas nocturnas, "locus horrendus"…

II. Estrutura Interna: Conteúdo Temático Fundamental

1.Drama moral (ou da consciência) do amor impossível entre Eurico e Hermengarda. O futuro comprometido pelo passado. Proclamação dos direitos do coração e da liberdade romântica face aos preconceitos sociais de classe, aos limites impostos pela lei religiosa-eclesiástica do celibato. "Obstáculo" contra "transparência". Romantismo ético-social. Romance de tese.

2.Crítica indirecta (através da crítica à sociedade goda em degradação moral e política) à sociedade portuguesa decadente, em tom de profetismo. Conflito de Herculano com a sociedade através do seu alter-ego Eurico. Romantismo social.

Romance de intervenção social e política, em forma de romance histórico (a evasão medievalista na história é para, através dela, fazer intervenção no presente).



III. A Personagem Eurico: Herói Romântico, Protagonista da Acção

Herói: homem superior, sensível, poeta, de coração apaixonado, possuído pelo dinamismo do absoluto.

Em conflito com a sociedade e a lei religiosa do celibato.

Evade-se no sacerdócio, na solidão, na poesia, na guerra, na morte.

Aparece como "cavaleiro negro", miterioso, espécie de semi-deus, com forças sobre-humanas, encarnação do transcendente, juízo vingador de Deus face ao orgulhoso Islão e aos traidores da pátria; destacando-se dos demais (está, pelo sacerdócio, condenado à amputação social), sempre solitário; com traços de prometeísmo ou satanismo (agrilhoado no sacerdócio, revoltado contra a sua sorte, nostálgico do paraíso perdido).

Possuído por uma grande paixão - o amor de Hermengarda (a que se acrescenta acidental e secundariamente o amor da pátria) - que determina totalitariamente todo o seu comportamento: o refúgio no sacerdócio, a solidão, a poesia, o furor bélico, em suma, o heroísmo romântico.

É protagonista de um drama-tragédia, em que à morte do coração (pelo sacerdócio) vai acrescer mais tarde a morte física. A seu lado, Hermengarda encaminha-se igualmente para a morte (psíquica) pela loucura.

Antinomias do Drama de Eurico:



Humanidade Profana/Idealismo Sagrado

Amor de Hermengarda/Sacerdócio

Sacrilégio/Sacrifício

Pecado/Redenção

Encontro na Caverna/Entrega Voluntária à Guerra Santa

O Problema do Celibato em Eurico o Presbítero

1.Um tema da actualidade na época de Herculano. Discutido em Portugal e na Europa desde os Enciclopedistas e o Racionalismo Iluminista.

2.Um tema romântico, desde que encarado na linha do conflito entre o sentimento e a instituição, entre a liberdade do indivíduo e a lei que a limita.

3.A tese de Herculano contra o celibato não tem consistência.

A sua visão do celibato é uma visão naturalista e sentimentalista, "à luz do sentimento" (Prefácio). É uma visão romântica do celibato. Herculano nem o vê à luz da razão, que por si só poderia justificar casos particulares de vida celibatária, nem muito menos à luz da fé, que é a única que dá sentido ao celibato eclesiástico.

A tese é prejudicada pela hipótese. Como escreveu Fidelino de Figueiredo, se alguma coisa se prova na história de Eurico o Presbítero é que a tirania dos pais em relação ao casamento dos filhos conduz à infelicidade. De facto, Herculano vicia toda a construção da sua tese pela hipótese que lhe está subjacente: Eurico não abraça o sacerdócio e o celibato por vocação, mas, à boa maneira romântica, como refúgio ou evasão para a sua frustação no casamento que projectara com Hermengarda. Daí que ele constitua para ele uma "amputação espiritual" e uma "solidão irremediável".

A visão que a Igreja tem do sacerdócio e do celibato é inteiramente distinta. É uma visão sobrenaturalista, à luz da fé. Trata-se de uma daquelas realidades que, como diz Jesus, "nem todos compreendem, mas só aqueles a quem foi dado compreender", isto é, só aqueles a quem o dom da fé leva a ver com uma outra luz.

O sacerdócio e o celibato, a esta luz, só têm sentido como verdadeira vocação de Deus, o qual, àqueles que chama também lhes dá os meios para viverem a vocação e realizarem a missão para que são chamados. O padre, que o é nesta linha, não é um ser frustado afectivamente, mas um ser sublimado; não fica espiritualmente amputado, mas torna-se espiritualmente dilatado; não é um homem da solidão irremediável, mas o homem da grande comunhão com Deus e com os homens seus irmãos; não cava para si um vazio insuportável, mas encontra de forma directa a plenitude que vem de Deus; não vive num mundo "desconsolado e triste", mas antes se constitui em anunciador das alegrias que o mundo não conhece e em consolador dos pobres e aflitos deste mundo triste e desconsolado. Configurado com Cristo, com Ele se torna em "pedra de escândalo" e "sinal de contradição". Como escreveu J. Sellmair, olhado fora da perspectiva da fé, o padre "é como uma sentinela num posto errado". O valor teológico mais fundamental do celibato é o testemunho, frente a um mundo que dá valor ao que é passageiro, da fé na condição futura e definitiva da humanidade em que "nem os homens se casarão nem as mulheres serão dadas em casamento", pois que aí "Deus será tudo em todos". (Visão da Igreja) Não foi certamente a esta luz que Herculano equacionou o problema do celibato, quer no Prefácio quer na história de Eurico o Presbítero.



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