segunda-feira, 8 de outubro de 2012

ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO


Secções António Feliciano de Castilho









































António Feliciano de Castilho (1800-1875) nasceu e faleceu em Lisboa. Aos seis anos, por motivo do sarampo, cegou. Não obstante isso, seguiu estudos regulares, graças ao auxílio de seu irmão Augusto Frederico. Em 1817, matriculou-se na Universidade e em 1826 estava formado em Cânones. A seguir, fixou-se com o irmão em Castanheira do Vouga, perto de Águeda, e aí se conservou uns oito anos, em situação que muito favoreceu o estudo e a produção literária. Esteve na Madeira e nos Açores e visitou o Brasil. – Dedicou-se à tradução de obras em latim, francês e inglês.



Obras Principais: Cartas de Eco e Narciso (1821); A Primavera (1822); Amor e Melancolia (1828); A Chave do Enigma; A Noite do Castelo (1836); Os Ciúmes do Bardo (1836); Crónica Certa e muito Verdadeira de Maria da Fonte (1846); Felicidade pela Agricultura (1849); Escavações Poéticas (1844); Presbitério da Montanha; Quadros da História de Portugal (1838); O Outono (1863).



Traduções: A Lírica de Anacreonte; Metamorfoses e Amores, de Ovídio; Geórgicas, de Virgílio; Médico à Força, Tartufo, O Avarento, Doente de Cisma, Sabichonas e Misantropo, de Molière; O Sonho de uma Noite de S. João, de Shakespeare; Fausto, de Goethe.; D. Quixote de La Mancha, de Cervantes.







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A CHAVE DO ENIGMA





A SOLIDÃO





Tem a solidão isto de comum com o silêncio e a escuridade: espanta; e aturde quem nela cai; mas, logo que o ouvido, desadormentado dos sons fortes, aprende a conversar com a mudez; tanto que os olhos, desofuscados dos luzeiros intensos, se exercitam em caçar espectros de raios. fosforescências indecisas, que são como que os infusórios das trevas, descerrou-se o negrume em brilhantismo, a calada aviventou-se de diálogos, a solidão, que parecia o nada, é o teatro com o seu drama, é um mundo novo com um sistema completo de existências imprevistas e apropriadas.



Que admira? A solidão medita, e a meditação cria. Os sentidos pastam só no que lhes oferecem a natureza, a fortuna, o acaso: a divindade interior, a alma, tem comércios inefáveis com o íntimo e ignorado. S. João, entre os nevoeiros de Patmos, divisa uma Jerusalém celeste; nas cogitações de Sócrates, aparece o Omnipotente; nos êxtases de Platão. reflexos da Trindade; nos cálculos taciturnos de Galileu, firma-se o céu, volteiam as plantas: Colombo faz surgir do fundo dos mares a América; Leverrier, mais globos no espaço; Fulton, o hipógrafo, o pégaso do vapor, magia, poesia, potência escrava do homem, e dominadora, primeiro dos oceanos, depois dos continentes e amanhã, talvez, dos ares; a solidão cismadora dá a Eneida a Virgílio, mostra a Lineu os amores e o sono das plantas, a Dante o Inferno, a Fourier o paraíso terrestre, a Newton e a Laplace o código dos astros, a Daguerre os talentos artísticos do Sol, ao Gama o caminho do Oriente, ao soldado Camões o da imortalidade, põe na mão de Gutembergue a chave do cofre das ciências, na de Vicente de Paulo a da caridade, na de Say a da riqueza pública, na de Pestalozzi e Froebel a da escola séria e fecunda.



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Arquimedes, a sós com a natureza e com o seu génio, descobre os meios de destruir e incendiar a frota romana. Absorto em suas reflexões criadoras, no seu gabinete, como num antro, não sente o estrondo da cidade, já senhoreada dos inimigas; não acorda à voz do soldado de Marcelo, que, de espada desembainhada, lhe ordena que o siga; sem o sentir, é degolado. Cai a grande cabeça, irmã entre irmãs, no meio das esferas celestes que está arquitectando. Só de tão extraordinária concentração podiam brotar as seus tão extraordinárias inventos e descobrimentos.



Lavoisier, outro dos martirizados pelo materialismo descrente e brutal, depois de haver testado ao mundo a mais opulenta herança científica, condenado ingrata e cegamente á guilhotina, que é o que pede aos verdugos revolucionários, seus juízes? Uma dilação de quinze dias. Só uma dilação! Só de quinze dias! Para quê? Para concluir trabalhos úteis à Humanidade, que neste momento o desconhece. Rematados eles, já não terá pena de morrer. Recusam-lha. Então, caminha, sereno, a depor no cadafalso uma cabeça, maior, talvez. que a de Arquimedes, e ainda na véspera coroada de loiros pelo Liceu.



Tanto a actividade fecundante, recolhida por instinto para os penetrais mais sagradas do ânimo, donde se conversa em êxtases com Deus e com a natureza, com o Pai Omnipotente e com a filha formosíssima, nossa irmã, fica inacessível aos maiores cataclismos externos, às catástrofes das Siracusas. ao caos, providencial, porém medonho, de uma revolução francesa!



O homem que nasce pertencente à escassa família deste naturalista, pai da química, e daquele geómetra, pai da mecânica, mesmo com os braços cruzados sobre o peito, mesmo com os olhas fechados, mesmo dormindo e sonhando, está servindo como operário; mas, abaixo dele, há ainda, não menos veneráveis, os prestigiosos cismadores do mundo da Arte, mundo não menor, nem talvez, em última análise, menos útil que o da Ciência.



André Chénier, espécie de Lavoisier da poesia, convocado também para o festim da morte, não é das prazeres efémeras da existência que leva saudades: bate apaixonadamente raivoso na fronte, porque sente que se lhe estava ali dentro formando, como em cérebro olímpico, uma nova musa gentilíssima. Quem lha revelara? A meditação solitária, que sabe tudo e tudo profetiza.



Boníssima solidão! Tu és para a sociedade o que as tuas montanhas são para os vales: nas tuas entranhas se filtram. dos teus recôncavos rebentam as génios possantes e profundos que vão derramar por longe a fertilidade. Mas tu não és só mãe às torrentes caudais: uma fontinha entre lapas, desconhecida, não se goza menos do teu favor. Sobre o pouco liberalizas dons, como sabre o muito; próvida para o imenso, próvida para o limitada. Solidão, Egéria das almas eleitas! Solidão, buscada por Cristo, abraçada por Jocelyn, adorada por Petrarca, explorada em tuas minas de oiro por Zimmermann, inspiradora de Volney, de Rousseau, do Infante de Sagres, de todos as videntes, de todos as descobridores, de todos os inventores, de todos as Baptistas! Solidão, ninho das rolas como das águias, perdoa, se eu não sabia ainda apreciar-te!



(A Chave do Enigma, Cap. XL)



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FELICIDADE PELA AGRICULTURA





TERCEIRO SERÃO DO CASAL



Índole campestre da Poesia



Sumário



A Poesia nasceu nos campos, e para eles propendeu sempre. – Quem Ovídio. – O seu poema dos Fastos. – Duas amostras deste poema. – Festa das sementeiras entre os Romanos. – Festa do deus Término.



Dizia-vos eu, meus camponeses, que todos os poetas deveras eram vossos amigos; não há nada mais certo.



A Poesia nasceu nos campos, e por muito tempo só conheceu esse viver viçoso e perfumado. Veio a fazer-se dama ambiciosa de mais refinadas delícias; assentou vivenda nas cidades; fez-se muito sábia, muito altiva, muito malédica, muito contraditória; ora devota, ora ímpia, ora frívola, ora profunda; mas lá os seus campos nunca se lhes desluziram da lembrança.



Em nenhuma parte a ouvireis cantar combates, viagens, descobrimentos, artes, luxo, amores, ou desejos de melhor vida para além-mundo, que lhe não fugisse um olhar de saudade para o seu paraíso de flores.



A idade de oiro, que é a sua cisma contínua, posta umas vezes no passado, outras no futuro, a idade de oiro, (que Deus sabe se é tão fabulosa como cuidam, a não ser em relação ao seu título), que era ela se não a Arcádia, o viver campestre, manso e regalado?



Livros dos mais antigos do mundo, os de Moisés e os de Homero, uns e outros mananciais de Poesia, não têm página, que nos não espelhe uns reflexos das bem-aventuranças patriarcal e heróica, que são também Arcádia, com leves modificações.



Passaram os povos antigos, com as suas religiões e usos particulares. Nos escritos que de então sobreviveram, que ê o que mais nos encanta? Não são por certo as descrições dos seus usos exclusivos, ainda para aí se atrai fortemente a curiosidade; são, sim, os toques alusivos ao viver rural, porque enfim, aí é que é o ponto de contacto de todas as idades, e de todas as civilizações. O campo é que é o centro de unidade da espécie humana.



*



Se tivéssemos vagar, muito nos havíamos de entreter relendo em comum, aqui no vosso casal, alguns dos mais guapos trechos dos poemas de eras mui diversas, e países mui remotos, por onde acabaríeis de conhecer quanto o vosso trato namorou sempre aos bons engenhos. Fora leitura para cem anos bem aproveitados.



Falemos de um só autor, mas, que, pela grandeza do seu talento, vale centos.



Nasceu este na Itália, em tempo do poderio Romano, vai em dezanove séculos, e quando o latim era ainda língua viva e bizarra. Chamava-se Públio Ovídio Nasão, e era cavaleiro, ou fidalgo daquelas eras. Vivia na Corte, bem relacionado com a principal Nobreza, e mui cabido no paço dos Imperadores.



Tinha um engenho prodigioso para a Poesia; cultivou-o com os seus estudos da eloquência, com o trato dos outros poetas contemporâneos com as ciências, com as viagens à Grécia, que era a França daqueles tempos, e Atenas a sua Paris. Compôs uma quantidade de obras, que ainda existem quase todas; a maior parte amorosas e voluptuárias.



As mulheres eram para ele o maior bem do mundo; o segundo, as amenidades da Natureza (ninguém dirá que tivesse mau gosto o nosso Ovídio).



Este homem, depois de ter gozado quanto era possível da vida de Roma, de repente, e já ao descair para velho, é desterrado. E que desterro! De Itália, para a Rússia! do seio das delicias, para uma povoação bárbara, glacial, sempre em contingências de guerras! Ali se vê, longe de sua mulher, de sua filha, de seus amigos, dos campos do seu nascimento, das damas, e dos aplausos.



A causa do seu desterro é um enigma, que tem desatinado os historiadores, e a que ainda ninguém rastreou solução provável. Coisa de amores (ou seus ou alheios) deveu por certo de andar por aí. O que sabemos é que, lá no desterro, lembrando-lhe com muitas saudades tudo quanto havia perdido, nada lhe doía mais no coração, que o ver-se privado do seu quintalinho nos arrabaldes de Roma, onde outrora a mão que tão gentis coisas escrevia se deliciava, muita vez. em podar e enxertar as suas árvores.



– "Coitado de mim! – dizia ele – ainda que eu aqui me quisesse meter a lavrador, os bois desta terra não entendem latim:"



Em tal e tamanho desamparo, que até à morte lhe durou, só as Musas o não desampararam. A isso devemos duas deliciosas colecções de magoadíssimas Canas em verso, à mulher, aos amigos, a César mesmo, solicitando vir morrer onde nascera, e metade de um poema intitulado Os Fastos.



*



Eram os Fastos de Ovídio uma obra em doze Livros, de que só ficaram os primeiros seis. Tinham por objecto descrever e explicar as principais festas religiosas pagãs de cada um dos doze meses; a origem arqueológica de cada uma delas; e a sua coincidência com as revoluções astronómicas.



Eis aqui o como ele propõe a totalidade do seu plano:





Festas do Lácio ano, origens suas

quais astros vão, quais vêm, dirão meus versos.





Esta obra, além de outras suas, traduzi eu; e por sinal que ofereci a tradução a um muito particular amigo dele, meu, e vosso, que é o Secretário da nossa Sociedade de Agricultura.



Há nos Fastos muitas e mui belas provas do que eu há pouco vos dizia: do amor que o bom do Ovídio tinha à vida campestre.



Amostrar-vos-ei algumas; e vá, por estreia, o final do seu mês de Janeiro.



Canta assim:



FESTA DAS SEMENTEIRAS:



Nos Anais, onde as festas vêm marcadas,

festas em vão busquei das sementeiras.

Vendo-me a folhear, cuidoso, assíduo,

e entendendo-me o empenho, – "Em balde as buscas

rindo a Musa me diz; – "festas mudáveis

"das fixas no registro achar querias?

"Têm marcada estação, e o dia incerto;

"celebram-se no prazo em que estão prenhes

"de sementes os chãos. Gozai do ócio

"à farta manjedoira, ó bois coroados;

"lá virá logo a activa Primavera,

"à cerviz repoisada impondo jugo,

"com a renascente lida afadigar-vos.

"No abrigo do casal durma por ora

"a cansada charrua; a terra fria

"não deseja, não sofre, o ser rasgada."



Agora, que jaz finda a sementeira,

lavradores, dai folga ao solo, aos braços;

lustrem colonos sua aldeia em festa,

dêem a seus fogos a anual fogaça.

Télus e Ceres, madres das searas

já com seus mesmos grãos se propiciem,

já com as entranhas da suína fêmea.

De entre ambas nasce o grão que nos sustenta:

Ceres no-lo produz; mantém-no a Terra.



Ó consócias em dádiva tão rica,

deusas, por quem a rude antiguidade

se abrandou, se poliu, deixada a glande

por mais nobre manjar, dai aos colonos,

em prémio a seu trabalho e a seus desvelos,

colheita sem medida, e que os sacie.



Dai aumento contínuo aos germes tenros,

e que a neve à nascença os não destrua.

Em quanto disparzirmos as sementes,

alimpai-nos o céu com ventos brandos;

mal que enterrada for, mandai-lhe as chuvas;

e, pois são glória vossa as pingues messes,

que em vagas de oiro, ao longo dessas veigas,

rumorejam fartura, eia, salve-as

do ávido bico das aladas hostes!

Por ora, que inda a terra o grão recata,

vós, formigas povoai-o; usura grande

havereis dele, se aguardais a ceifa.

Livre de torpe alforra a messe vingue

e cor de palma saúde o Céu lhe influa;

que nem definhe pálida, nem perca

por excesso de viço e nímia pompa.

Joio, à vista nocivo, os chãos não brotem,

nem torpe aveia as sementeiras mescle.

Só se vejam medrar profusamente

as cevadas, o trigo, e a rija escándia,

a escándia, a fogos dois predestinada.



Lavradores, por vós tais são meus rogos.

Com os rogos meus os vossos se misturem,

por que uma e outra deusa os ratifiquem.



Ferina longo tempo a humanidade

só nutriu belicosos pensamentos.

Mais apreço que a relha a espada tinha,

e em foros de nobreza era anteposto

o corcel que peleja, ao boi que lavra.

Não trabalhava a enxada; ia-se em lanças

dos alviões o ferro; o ancinho em elmos.

Graças deusas, a vós, a vós, ó Césares

o Génio marcial agrilhoado

já sob os pés de Roma em vão se extorce.

O toiro aceite o jugo; o solo, os germes;

Ceres, filha da paz, com a paz triunfe.



*





Ouvi-lhe agora a narração da festa, que em seu tempo se fazia no mês de Fevereiro, em honra do deus Término, ou Termo.



Este deus não era mais nem menos que um marco, de pedra ou pau, que extremava os prédios. Com razão lhe davam aquele culto; nada mais respeitável, que a propriedade; nada mais judicioso, que santificá-la.





FESTA DO DEUS TÉRMINO



Finda a noite, alvoreça a costumada

festa do deus que nos comparte os campos.



Quer tosca pedra, ó Término, te embleme,

quer tronco informe pela mão de antigos

enterrado no chão, sempre és deidade.



Para ti donos dois, de opostas partes,

coroa e coroa te cingem; bolo e bolo

te vem de cá, de lá; como à porfia,

aí se te engenhou ara campestre.



Lá nos traz a açodada fazendeira

no seu testo quebrado as áscuas vivas

que apurou do borralho. O bom do velho

racha a lenha miúda, ergue-a em pirâmide;

sua a cravar no chão ramos festivos.

Agora em cascas secas ceva o fogo,

tendo em pé ao seu lado, em quanto assopra,

o filhinho abraçado a largo cesto.

Três vezes dali tira a lança ao fogo

punhados de áurea Ceres. Toma os favos,

que a filha pequenina lhe apresenta

pelo meio cortados. Trazem outros

o vinho; tudo aqui se liba às chamas.



Alvitrajada a turba espectadora

religioso silêncio atenta observa.

Com o sangue quente de imolada ovelha

que ufano purpureja o vulto informe

do comum velador, o honrado Término!

e quando, em vez de ovelha, haja leitoa,

não temais que se anoje. O bródio é franco

aos bons vizinhos, corações lavados,

que o celebram com fé, que jubilosos

vão tecendo um louvor a cada prato.

Ouvi, ouvi seu rústico descante;

é do deus do festejo o panegírico:



Salve, ó Término sacro, ó tu, que extremas

bairros, cidades, reinos! cada campo

fora sem ti um campo de batalha.

Manténs, desambicioso, insubornável,

as herdades em paz das Leis à sombra.

Se a terra Thireátide te houvera,

não ceifaria a morte heróis seiscentos

de Argos e Esparta no fatal duelo;

não se lera de Othriades o nome

num vão troféu de mentirosas armas,

que inda à Pátria infeliz custou mais sangue.

Capitolino Júpiter que diga

que invencível te achou, quando ao fundar-se-lhe

a área do templo, ao passo que os mais numes

para dar-lhe lugar retrocediam,

tu só, qual no-lo conta anosa fama,

ousas te resistir, ficar, ter parte

no templo augusto, e adorações com Jove;

e inda lá, por que nada alfim te ensombre,

sobre ti ao céu livre é rota a abóbada.

Nume de tão gentil perseverança,

em qualquer a leveza achará vénia;

contradição em ti suicídio fora.

Mantêm pois sempre, ó sacra sentinela,

mantém pois sempre, ó Término, teu posto.

Despreza os rogos do vizinho avaro;

não lhe concedas do terreno um ponto.

Ceder a humanos quem resiste a Jove?!

Vem bater-te enxadão, pulsar-te arado?

proclama a vozes: "Meus confins são estes;

"de além, tu; de aquém, ele; ambos coíbo.

"e em coibir aos dois aos dois protejo."

Uma estrada une Roma aos Laurentinos,

reino que o Teucro prófugo buscara;

lá, dos marcos o sexto em honra tua

vê que lanosa vítima se imola.

Término, já que aceitas cultos nossos,

ampara-nos; sustenta o nosso Império.

De cada povo o espaço é circunscrito;

são de Roma os confins confins do globo.



*





Quão grande, meus amigos, não era o Povo em que um Poeta podia dizer isto, sem medo de que o mundo, nem a posteridade, o desmentisse!



E nós também, nós, os Portugueses, já houve um tempo, em que pouco menos fomos.



Ouvi como o nosso Camões o cantava:



Mas em tanto que cegos, e sedentos

andais do vosso sangue, ó gente insana,

não faltarão cristãos atrevimentos

nesta pequena casa Lusitana.

De África tem marítimos assentos;

é na Ásia mais que todas soberana;

na quarta parte nova os campos ara,

e, se mais mundo houvera, lá chegara.





Hoje... que são aquela Roma, e este Portugal?

Roma pereceu. Portugal, se não agoniza, enferma gravemente.

Mas para Roma não há já esperança; para nós há ainda uma. Sabeis qual?

Sois vós, vós mesmos, vós unicamente, ó Lavradores.



Março de 1849.



(Felicidade pela Agricultura, 2ª ed., Lisboa, Empresa da História de Portugal, 1903)





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O AVARENTO DE MOULIÈRE





O AVARENTO ROUBADO



Harpagão





(Vindo a gritar desde o quintal até entrar em cena, com as feições desconcertadas, e no auge do terror)



Aqui de el-rei, ladrões! Ladrões, aqui de el-rei!

Querem-me assassinar. Mataram-me. Acabei.

Justiça, Deus do céu! Ó da ronda! Ó da guarda!

Estou perdido e morto! um chuço! uma espingarda!

Roubaram-me o meu sangue, os meus dez mil cruzados!

Quem seria? Quem foi? Persigam-me os malvados!

Quem mos trouxer co roubo of'reço-lhe um quartinho...

meia moeda... mais, que eu nunca fui mesquinho.

Para onde fugiu? Onde está ele? Aonde?

Corram, vasculhem tudo, a ver onde se esconde.

Ali não!... Aqui não!.. Agarra o bandoleiro!

Vê-lo cá vai... Agarra, agarra o meu dinheiro!



(Agita-se bracejando à doida, e agarra com a mão direita o braço esquerdo)



Filei-te, mariolão! Larga o que não é teu!...

Estou perdido e doido: o que apanhei fui eu.

E eu quem sou? Onde estou? Que hei-de fazer? Que posso?

Ah, meus ricos dobrões, se eu era todo vosso,

como pudestes vós deixar-me só no mundo?

Que situação! Que horror! Que inferno tão profundo!

Ninguém tem dó de mim; sou Lázaro; sou Job.



(Chora e soluça despropositadamente)



Perdi tudo, e ninguém de mim tem dó.



(Numa explosão de delírio)



Enforcar tudo a esmo, até que surda alguém

co meu cofre; aliás enforco-me eu também.

...............................

De que me hei-de valer? Demónio, eu te requeiro:

leva-me um olho... e as dois, mas dá-me o meu dinheiro!







(Tradução de O Avarento de Molière, final do acto IV)





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METAMORFOSES DE OVÍDIO





DEUCALIÃO E PIRRA



Enfim, renasce o mundo. Vendo o triste,

o bom Deucalião vazia a Terra

e alto silêncio derramado em tudo,

a Pirra diz, chorando:

– Ó doce esposa,

doce irmã e hoje única de tantas

habitantes do Mundo, e que ligada

pelo amor, pelo sangue estás comigo.

e ao presente inda mais pelo infortúnio,

– do Nascente ao Poente, em toda a Terra.

só habitamos nós; só nós vivemos:

tudo o mais pelas ondas foi tragado,

e cuido que não tens inda segura

tua existência tu, nem eu a minha.

Estas nuvens que observo inda me aterram:

Ah, triste! Que farias, se arrancada

ao fado universal, sem mim te visses?



Onde, fria de susto, onde levaras

a planta vacilante, e quem seria

tua consolação na dor, no pranto?

Crê. minha amada, que, se o mar sanhudo

te escondesse nas sôfregas entranhas,

te houvera de seguir o aflito esposo:

sócio te fora em vida e sócio em morte.

Oh! Não ter eu de um pai herdado a indústria?

Renovaria agora a Humanidade.

alma infundindo na formada Terra.

Todo o género humano em nós se inclui.

Isto aos fados apraz, apraz aos deuses.

Ficámos para exemplo de que o Mundo

morada de homens foi.

Disse, e choravam.

Depois, tornando em si, resolvem ambos

recorrer aos oráculos sagrados,

da deusa Témis invocar o auxílio.



Não tardam: vão-se à margem do Cefiso,

inda revolto, sim, mas já com margens;

e, apenas pelas frontes, pelas vestes

os libados licores desparziram.

para o templo da deusa os passos torcem.

Manchava torpe musgo a frente, os tectos

da estância venerável, e jaziam

sem ministro, sem luz, sem culto as aras.

Como as sacros degraus tocado houvessem,

sobre a mádida terra os dois se prostram

e dão nas pedras ósculo medroso.

Oram depois assim:

– Se justas preces

tornam benignos os irados numes;

se a cólera dos Céus com ais se adoça,

dize-nos, deusa, dize-nos de que arte

podemos restaurar a espécie humana

e socorre, piedosa, o triste mundo.

Movendo-se a deidade, assim lhes fala:

– Do meu templo saí cobrindo as frontes:

soltai as vestiduras que vos cingem

e para trás depois lançai os ossos

da vossa grande mãe.



Tendo ficado

atónitos as dois espaço grande,

Pirra primeiro enfim rompe o silêncio.

Da divindade as leis cumprir não ousa

e, com trémula voz, perdão lhe roga,

porque teme, espalhando os ossos frios,

aos Manes maternais fazer injúria.

Depois disto, repetem, pesam, notam

as palavras do oráculo sombrio,

'té que Deucalião, o venerando

filho de Prometeu, com brandas vozes

serena a cara esposa e diz:

Se acaso

não revolvo ilusões no pensamento,

o oráculo da deusa é justo, é pio:

não nos ordena o mal, não quer um crime.

A grande mãe que ouviste, a mãe de todos,

é a Terra; a meu ver, são dela os ossos

as pedras; e essas diz que atrás lancemos.



Bem que esta inteligência agrade a Pirra,

esperanças com dúvidas se envolvem,

e ambos das ordens santas desconfiam.

Mas que mal faz tentar? Descem do templo:

cobrem a fronte; as túnicas descingem,

e logo para trás as pedras lançam.

Eis, – quem te dera crédito, ó portento,

se anosa tradição não te abonasse? –

eis que as pedras de súbito começam

a despir-se do frio e da rijeza

e, despindo a rijeza, a transformar-se.

Crescendo vão: mais branda natureza

lhes entra; e, se perfeito o vulto humano

logo ali se não vê, se vê contudo

em grosseiros sinais a semelhança,

quais; mármores apenas desbastados,

estátuas em começo, informes, rudes.

Partes que eram terrenas e sucosas

nas carnes e no sangue se convertem;

o que tem solidez e o que não dobra

muda-se em ossos, e o que dantes nelas

veia se nomeou conserva o nome.

Num breve espaço, enfim – mercê dos deuses! –,

as que arroja o varão varões se tornam

e as que solta a mulher mulheres ficam.



Por isto. somos fortes, somos duros,

aptos a empresas, próprios a trabalhos;

e em nosso esforço, na constância nossa,

claramente se vê que origem temos.



As Metamorfoses de Ovídio, Liv. I





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ESCAVAÇÕES POÉTICAS







OS TREZE ANOS





(Cantilena)





Já tenho treze anos,

que os fiz por Janeiro:

Madrinha, casai-me

com Pedro Gaiteiro.



Já sou mulherzinha,

já trago sombreiro,

já bailo ao domingo

com as mais no terreiro.



Já não sou Anita,

como era primeiro;

sou a Senhora Ana,

que mora no outeiro.



Nos serões já canto,

nas feiras já feiro,

já não me dá beijos

qualquer passageiro.



Quando levo as patas,

e as deito ao ribeiro,

olho tudo à roda,

de cima do outeiro.



E só se não vejo

ninguém pelo arneiro,

me banho co'as patas

Ao pé do salgueiro.



Miro-me nas águas,

rostinho trigueiro,

que mata de amores

a muito vaqueiro.



Miro-me, olhos pretos

e um riso fagueiro,

que diz a cantiga

que são cativeiro.



Em tudo, madrinha,

já por derradeiro

me vejo mui outra

da que era primeiro.



O meu gibão largo,

de arminho e cordeiro,

já o dei à neta

do Brás cabaneiro,



dizendo-lhe: «Toma

gibão, domingueiro,

de ilhoses de prata,

de arminho e cordeiro.



A mim já me aperta,

e a ti te é laceiro;

tu brincas co'as outras

e eu danço em terreiro».



Já sou mulherzinha,

já trago sombreiro,

já tenho treze anos,

que os fiz por Janeiro.



Já não sou Anita,

sou a Ana do outeiro;

Madrinha, casai-me

com Pedro Gaiteiro.



Não quero o sargento,

que é muito guerreiro,

de barbas mui feras

e olhar sobranceiro.



O mineiro é velho,

não quero o mineiro:

Mais valem treze anos

que todo o dinheiro.



Tão-pouco me agrado

do pobre moleiro,

que vive na azenha

como um prisioneiro.



Marido pretendo

de humor galhofeiro,

que viva por festas,

que brilhe em terreiro.



Que em ele assomando

co'o tamborileiro,

logo se alvorote

o lugar inteiro.



Que todos acorram

por vê-lo primeiro,

e todas perguntem

se ainda é solteiro.



E eu sempre com ele,

romeira e romeiro,

vivendo de bodas,

bailando ao pandeiro.



Ai, vida de gostos!

Ai, céu verdadeiro!

Ai, páscoa florida,

que dura ano inteiro!



Da parte, madrinha,

de Deus vos requeiro:

Casai-me hoje mesmo

com Pedro Gaiteiro.





Escavações Poéticas; 1844









A TOMADA DE COIMBRA



(Xácara)





I



Caminhavam frades bentos

do mosteiro de Lorvão,

quando acharam Dom Fernando

no meio de Carrião:

era Dom Fernando o Rei,

e seu reino era Leão.



– D. Fernando, D. Fernando,

novas de consolação!

cavaleiros não nos oiçam;

manda sair quantos são.

Deus te nos manda dizer

que tens Coimbra na mão.



«Descuidados estão Moiros

do poderio cristão;

deles o havemos sabido

por sua conversação,

quando nos vêm de Coimbra

a montear em Lorvão.



«Fingimos uma romagem

por livrar de suspeição,

e viemos dar-te aviso,

grão Rei, senhor de Leão.

Manda logo fazer prestes

todo o ginete e peão.



Como três meses passaram,

era por Janeiro então,

el-Rei é sobre Coimbra,

e os de dentro em confusão;

mas vale o muro à cidade,

que é mui boa defensão.



Em que traz muitos vassalos

de caldeira e de pendão,

em que traz o Cid Rui Dias,

mais forte que quantos são,

não acaba de a tomar,

sete meses já lá vão.



..........................



Cristãos, ganhastes Coimbra,

mais que jóia oriental;

mais tu, Coimbra, ganhaste,

que tens fonte baptismal,

e a tua mesquita grande

verás logo em catedral.



Dar meia cidade aos monges

queria o Rei liberal,

mas os monges só quiseram

uma casa monacal,

contentes com Lorvão santo,

seu paraíso terreal.



Foi-se el-Rei a Compostela

com sua gente leal.

De atabales e trombetas

soa estrondo festival;

abrem-se as portas do templo

bem armado e triunfal.



Todos co'o joelho em terra

como cumpre em caso tal,

diziam de agradecidos

ao valedor imortal:

– «Santiago, Santiago,

salvaste o nosso arraial;

salva sempre os Leoneses,

e a gente de Portugal.»





Escavações Poéticas; 1844





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