quinta-feira, 11 de outubro de 2012

EM PARIS: RAMALHO ORTIGÃO

/ Em Paris /


RAMALHO ORTIGÃO

/ Título /

Em Paris

/ Autor /

Ramalho Ortigão

/ Direitos Reservados /

para Actualização Ortográfica

 Esfera do Caos Editores Lda

/ Design /

Flukstudio

/ Impressão e Acabamento /

Papelmunde SMG Lda

/ Depósito Legal /

XXXX

/ ISBN /

989-8025-07-7

1ª Edição

2006

ESFERA DO CAOS EDITORES LDA

Campo Grande

Apartado 52199

1721-501 Lisboa

esfera.do.caos@netvisao.pt

/ ÍNDICE /

Prólogo em viagem 7

No asfalto parisiense 15

Uma visita a Ferdinand Denis 47

O doutor Véron ― O necrológio ― Os cabeças de turco 55

Jantares e Jantantes 65

A parisiense 105

Ponson du Terrail 139

O «petit crevé» 147

A mocidade 155

/ Prólogo em viagem /

eitor amigo: ― Tu, que a estas horas do mais ameno

Outono estendes a polaina branca pela formosa várzea

de Colares, ou passeias os teus consolados nervos à beira-mar,

pelas praias do Tejo ou pela foz do Douro, quem sabe se serás

por mim!

Hoje em dia um viajante que se não apeie dum balão com

notícias da lua, precisa de nos ser muito simpático para o não

termos por um sensaborão quando vier contar o que viu. Este

mundo está visto e revisto. A electricidade e o vapor tornaram

toda a redondeza do globo terrestre tão compreensível como a

circunferência duma tangerina que a gente atravessa com um

palito e mete na algibeira ao acabar de jantar. O Bois de Boulogne,

o Hyde Park, o Prater, o Prado, o Corso e o Pincio não há

quem os não tenha percorrido, querendo, quase tantas vezes

como as ruas do seu quintal. Os museus de Espanha, os castelos

das margens do Reno, as ruínas de Roma, os palácios de

Veneza, as fábricas de Manchester, os hotéis de Nova Iorque e

os teatros de Paris são tão conhecidos de todos nós como as

nossas chinelas de trazer no quarto e o nosso barrete de dormir.

A primeira obrigação de um viajante bem-educado, ao

regressar de algum país sublunar, é conversar em modo que se

lhe não perceba nem o intuito mais remoto de querer leccionar

alguma coisa a quem o ouve ou a quem o lê. Para aprender lá

temos as cartas de guia dos viajantes nos museus, nas bibliote-

/L

EM PARIS / 5

cas, nos arsenais, nos jardins, nos palácios, nas oficinas, nos

teatros, nos passeios e nas ruínas; temos, além disto, o periódico

que nos traz notícias de todos os dias; temos o telégrafo

para perguntar de cinco em cinco minutos o que há de novo;

temos finalmente o caminho-de-ferro para ir dentro de algumas

horas confirmar uma opinião ou desfazer uma dúvida. Os viajantes

com quem se possa aprender têm ordinariamente o

defeito de chegar tarde, e isso os torna importunos.

Ora eu devo dizer que nunca tive nem terei jamais a mais

leve ideia de ensinar a mínima coisa ao ínfimo dos viventes a

quem transmitir uma folha das minhas peregrinações por esse

mundo.

Proponho-me singelamente conversar com a despresunção

plena de quem não tem compromissos nenhuns para ser

embiocado e sorna, um sujeito que nunca foi empregado

público nem pretendeu ser deputado, um periodista de profissão,

mau literato, mas mais literato do que outra coisa, contente

do seu ofício, alegre da sua vida, orgulhoso da sua independência,

desgraçado às vezes por bem pouco, feliz quase

sempre com muito pouco também ― com um bom sol descoberto,

um céu azul, umas árvores verdes, a saúde no corpo, a

paz na alma e a liberdade no coração.

Voluntariamente separado por algum tempo do que mais

amo, viajo de quando em quando, sozinho com a minha alegria

de estar solto no mundo, isento de todos os preceitos da existência

regular, dando em cada dia à vontade o alvedrio de erguer

a asa, como o cisne que se deixa vogar osculado pela aragem

da tarde na amplidão de um lago.

Não me afronta a curiosidade dos sábios nem a ostentação

dos ricos: leva-me unicamente esse risonho e encantador fantasma

de pezinho leve, de olhar travesso e de tentador sorriso

― isso que se denomina a mocidade, e que às vezes nos ilude

meigamente durante a existência inteira com uma bagatela,

6 / RAMALHO ORTIGÃO

com um dito, com um olhar que nos deita, com uma flor que nos

dá, com um beijo que nos promete.

Ela, a risonha fada dos vinte anos, sorri-nos sempre entre

as flores dos seus jardins eternos, mostra-nos, entre as amendoeiras

de flor branca e as balsaminas azuis, os ombros nus, a

cintura requebrada e fina e o pé pronto para a valsa, para esta

valsa deliciosa, arrebatadora, irresistível que todos os rapazes

ouvem e sentem dentro de si a convidá-los para um baile, invisível

mas adivinhado, que, em alguma parte deste mundo ou do

outro, deve estar por força a esperar por eles.

Esse convite é como um trasbordamento do coração, uma

ejaculação interior, que nos adormenta e paralisa por instantes

para a vida correlativa. É o que quer que seja que de repente

desperta e rebole dentro de nós, cantando e bailando com as

nossas recordações e as nossas esperanças no seio da nossa

alma; uns clarões de íntima juvenilidade que enrugam e franzem

de velhice o aspecto de tudo quanto ordinariamente nos

cerca. É como um rebate de castanholas, como um frémito de

pandeiros, como a serenata que se ouve ao longe, alada pela

brisa das noites de Verão, impregnada do perfume penetrante

dos laranjais em flor. É a mística melodia da nossa lira interior,

cujas cordas soluçam como as da harpa eólia, bafejadas

pela viração de umas saudades vagas e inexprimíveis.

É nestes lapsos de acre e deliciosa introversão para o

íntimo éden dos nossos sonhos, que nós caímos numa espécie de

morbidez moral, que os outros não sabem se é a meditação, a

abstracção ou o tédio. Nós sabemos que nada disso é, ou antes

que talvez seja tudo isso junto. É a insolação do espírito,

durante a qual os olhos percorrem sucessivamente as páginas

de um livro, cuja leitura maquinal se não côa dos olhos para

dentro, ou que a gente se esquece horas e horas inúteis defronte

do fogão do quarto com os cotovelos fincados nos joelhos e a

fronte nas mãos, fitando, como quem interroga sem saber para

quê, o cintilar das faúlhas e o trepidar das chamazinhas cor-de-

EM PARIS / 7

-rosa e azuis, que saltitam esmorecendo e revigorando em

redor das brasas.

Vem um belo dia em que esta visão, esta miragem, este

sonho, esta febre, esta doença, pode mais que nós. A vida habitual

pesa no nosso espírito como o trambolho no pé de uma

galinha, dilatam-se-nos os pulmões, tresdobra-nos a vida, falta-

-nos o ar em nossas casas, falta-nos a água nas nossas fontes,

falta-nos o espaço nas nossas ruas. A cidade então é pequena e

o passeio é pouco. Quer-se a viagem, a liberdade, a largueza da

terra, a vastidão do mar e a amplidão do céu ― o mundo! Não

há outro remédio nestes casos senão fazer o que eu fiz: arranjar

a mala e partir.

Para onde? para qualquer parte. Para quê? para voltar

depois, porque se volta melhor do que se foi; mais instruído,

nem sempre; mais ensinado, sim. Pode-se não aprender nada

novo, mas fica-se sabendo melhor o que já se sabia dantes.

E depois, no regresso, o prazer de chegar… Que há aí no

mundo que se lhe compare? O nosso quartozinho, visto de

longe, ou de longe imaginado, entre os montes e as árvores da

pátria, no aconchego da família, da paz e do trabalho, parece-

-nos um ninho de amor e de poesia, o palácio dum rei independente

e pequenino. As cabecinhas loiras dos nossos filhos solicitam

todos os nossos beijos. A mão da nossa mulher ou da

nossa mãe parece-nos a mais nobre e leal mão que se pode

apertar na terra. Ao meio-dia, à sombra das árvores do nosso

jardim, à noite, ao pé do nosso fogão, figura-se-nos estar à

nossa espera o melhor remanso da vida. E todas estas recordações

têm um ar de santidade, aureoladas, como elas nos aparecem

cá fora, pelo melancólico e puro esplendor da saudade.

Saudade! amorável e querida vingança dos que ficam!

santo penhor da volta! Quando um homem deixa a família e a

pátria, a mãe, se o abraça, ao dar-lhe a última bênção, põe-lhe

ao peito o crucifixozinho das suas orações, que ela trouxe sem-

8 / RAMALHO ORTIGÃO

pre no seio; Deus, se o vê, põe-lhe no coração a saudade, que eu

creio que vem também do seio dele.

Aqui então, no mar, onde agora me encontro, todos os

sentimentos bons se fazem melhores, e tudo quanto é ruim ou

mesquinho se nos esvai a pouco e pouco de dentro quando a

alma se emprega nesta refrigerante contemplação da omnipotência

e do infinito. Que viaje por terra quem leva pressa compreende-

se, mas que deixe de viajar por mar quem só procura

nas viagens o que elas têm de comovente para o coração e de

mordente e corrosivo para a ferrugem da vida ― não se

entende nem se admite. Um navio que se faz ao largo é um

pedaço de mundo que se despega do continente e do seu burburinho

de paixões e de misérias para vogar no seio puro da

natureza, consigo só, e com Deus. A intuspecção a que algumas

vezes nos leva a tristeza, a saudade, ou a mágoa, essa concentração,

esse íntimo exame de nós mesmos, em que nos sentimos

recair com uma espécie de dor voluptuosa, com um prazer pungente,

depois dos maiores e mais decisivos abalos do espírito,

esses solilóquios da nossa alma, quando furtada a toda a

comunicação de fora, a solidão finalmente, a verdadeira solidão,

que é no ermo às vezes onde se encontra menos, a suave

solidão da qual dizia Garrett:

De vez em quando, lá quando a alma o pede,

Oh! não m’a tirem que é tirar-me a vida;

a solidão que a gente para si mesma edifica, œdificare solitudines;

o santo prazer da solidão, bálsamo celestial de tantas

dores, que ninguém sonda, e que nenhuma palavra, nenhum

afago, nenhum mimo adoça ― procurai-o no mar. Ele vo-lo

dará como o coração vo-lo pede. Ele, que conhece o segredo de

transformar em pérola uma gota de água, sabe do mesmo

modo cristalizar a dor, convertendo-a na melancolia.

O interior das florestas e as largas planuras medidas com

a vista do píncaro dos montes são também espectáculo igual-

EM PARIS / 9

mente solene, mas não produzem tão perfeitamente o recolhimento

de que eu falo, e que eu tanto estimo, como o singelo

aspecto do céu e das águas do mar largo. No fim duma tarde

serena, à hora do crepúsculo, quando nos montes se ouve o

chilrear das aves na espessura dos arvoredos, o sino das Ave-

-Marias, o gemer dum carro ao longe, o latir do cão dos pegureiros

ou os chocalhos do gado que desce a pino a encosta ou

atravessa a vau a represa orlada de castanheiros, nesse

momento não ouvir no mar senão o arquear profundo e

monótono das vagas e não ver outra coisa, além da imensidade

do firmamento e da imensidade da onda, senão a cortina de

nuvens doiradas no horizonte pelo sol poente, movediço panorama

de fantásticos mundos que sucessivamente se fazem, se

desfazem, se refazem e se aniquilam com um sopro que os

governa! É então que nos navios da marinha francesa se procede

a uma comovente cerimónia: iça-se um galhardete ao som

dum tiro de peça, o capelão sobe ao tombadilho, acompanhado

do oficial da guarda, o oficial dá a voz de sentido à guarnição

enfileirada ao longo do convés; o padre, vestido de batina, com

uma cruz pendente do pescoço, mete debaixo do braço o seu

chapéu, persigna-se, ergue as mãos, e, no meio do silêncio

entrecortado apenas pelo embate da água na amurada e pelo

sibilar do vento nas enxárcias, reza em voz alta um Padre-

-Nosso e umas Salve-Rainha, persigna-se outra vez, desce do

lugar a que subiu, dispersa-se a tripulação, arreia-se o galhardete,

e prossegue a viagem.

A tal hora, estando-se a bordo, sentar-se a gente na tolda e

principiar a conversar com o seu coração, com o seu passado e

com o seu futuro diante desse espectáculo único, é cair um

homem verdadeiramente em si, e sentir-se mais homem que

nunca. Nem conhece o que é de bom estar só quem nunca esteve

só dessa maneira!

Não sei se o aspecto do mar produz em todos o efeito que

me faz a mim: eu remoço-me na contemplação das ondas.

10 / RAMALHO ORTIGÃO

Adelgaça-se com a rispidez destes ares o véu dos meus cuidados;

desencrava-se-me do coração o espinho das lembranças

tristes e dos tristes pressentimentos; esqueço-me dos que me

não querem bem, e não me lembro do mal que me pode vir. De

uns pequenos desgostos de ter vivido desforro-me com o simples

prazer de me achar vivo. Assim me consolo e me vingo.

Precisava de dizer isto para não enganar ninguém, que

esperasse mais ou melhor de mim. Eis aí está em que disposição

de ânimo e em que intuito de espírito eu vou desembarcar no

Havre e seguir de lá para Paris.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Contador de visitas