/ Em Paris /
RAMALHO ORTIGÃO
/ Título /
Em Paris
/ Autor /
Ramalho Ortigão
/ Direitos Reservados /
para Actualização Ortográfica
Esfera do Caos Editores Lda
/ Design /
Flukstudio
/ Impressão e Acabamento /
Papelmunde SMG Lda
/ Depósito Legal /
XXXX
/ ISBN /
989-8025-07-7
1ª Edição
2006
ESFERA DO CAOS EDITORES LDA
Campo Grande
Apartado 52199
1721-501 Lisboa
esfera.do.caos@netvisao.pt
/ ÍNDICE /
Prólogo em viagem 7
No asfalto parisiense 15
Uma visita a Ferdinand Denis 47
O doutor Véron ― O necrológio ― Os cabeças de turco 55
Jantares e Jantantes 65
A parisiense 105
Ponson du Terrail 139
O «petit crevé» 147
A mocidade 155
/ Prólogo em viagem /
eitor amigo: ― Tu, que a estas horas do mais ameno
Outono estendes a polaina branca pela formosa várzea
de Colares, ou passeias os teus consolados nervos à beira-mar,
pelas praias do Tejo ou pela foz do Douro, quem sabe se serás
por mim!
Hoje em dia um viajante que se não apeie dum balão com
notícias da lua, precisa de nos ser muito simpático para o não
termos por um sensaborão quando vier contar o que viu. Este
mundo está visto e revisto. A electricidade e o vapor tornaram
toda a redondeza do globo terrestre tão compreensível como a
circunferência duma tangerina que a gente atravessa com um
palito e mete na algibeira ao acabar de jantar. O Bois de Boulogne,
o Hyde Park, o Prater, o Prado, o Corso e o Pincio não há
quem os não tenha percorrido, querendo, quase tantas vezes
como as ruas do seu quintal. Os museus de Espanha, os castelos
das margens do Reno, as ruínas de Roma, os palácios de
Veneza, as fábricas de Manchester, os hotéis de Nova Iorque e
os teatros de Paris são tão conhecidos de todos nós como as
nossas chinelas de trazer no quarto e o nosso barrete de dormir.
A primeira obrigação de um viajante bem-educado, ao
regressar de algum país sublunar, é conversar em modo que se
lhe não perceba nem o intuito mais remoto de querer leccionar
alguma coisa a quem o ouve ou a quem o lê. Para aprender lá
temos as cartas de guia dos viajantes nos museus, nas bibliote-
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cas, nos arsenais, nos jardins, nos palácios, nas oficinas, nos
teatros, nos passeios e nas ruínas; temos, além disto, o periódico
que nos traz notícias de todos os dias; temos o telégrafo
para perguntar de cinco em cinco minutos o que há de novo;
temos finalmente o caminho-de-ferro para ir dentro de algumas
horas confirmar uma opinião ou desfazer uma dúvida. Os viajantes
com quem se possa aprender têm ordinariamente o
defeito de chegar tarde, e isso os torna importunos.
Ora eu devo dizer que nunca tive nem terei jamais a mais
leve ideia de ensinar a mínima coisa ao ínfimo dos viventes a
quem transmitir uma folha das minhas peregrinações por esse
mundo.
Proponho-me singelamente conversar com a despresunção
plena de quem não tem compromissos nenhuns para ser
embiocado e sorna, um sujeito que nunca foi empregado
público nem pretendeu ser deputado, um periodista de profissão,
mau literato, mas mais literato do que outra coisa, contente
do seu ofício, alegre da sua vida, orgulhoso da sua independência,
desgraçado às vezes por bem pouco, feliz quase
sempre com muito pouco também ― com um bom sol descoberto,
um céu azul, umas árvores verdes, a saúde no corpo, a
paz na alma e a liberdade no coração.
Voluntariamente separado por algum tempo do que mais
amo, viajo de quando em quando, sozinho com a minha alegria
de estar solto no mundo, isento de todos os preceitos da existência
regular, dando em cada dia à vontade o alvedrio de erguer
a asa, como o cisne que se deixa vogar osculado pela aragem
da tarde na amplidão de um lago.
Não me afronta a curiosidade dos sábios nem a ostentação
dos ricos: leva-me unicamente esse risonho e encantador fantasma
de pezinho leve, de olhar travesso e de tentador sorriso
― isso que se denomina a mocidade, e que às vezes nos ilude
meigamente durante a existência inteira com uma bagatela,
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com um dito, com um olhar que nos deita, com uma flor que nos
dá, com um beijo que nos promete.
Ela, a risonha fada dos vinte anos, sorri-nos sempre entre
as flores dos seus jardins eternos, mostra-nos, entre as amendoeiras
de flor branca e as balsaminas azuis, os ombros nus, a
cintura requebrada e fina e o pé pronto para a valsa, para esta
valsa deliciosa, arrebatadora, irresistível que todos os rapazes
ouvem e sentem dentro de si a convidá-los para um baile, invisível
mas adivinhado, que, em alguma parte deste mundo ou do
outro, deve estar por força a esperar por eles.
Esse convite é como um trasbordamento do coração, uma
ejaculação interior, que nos adormenta e paralisa por instantes
para a vida correlativa. É o que quer que seja que de repente
desperta e rebole dentro de nós, cantando e bailando com as
nossas recordações e as nossas esperanças no seio da nossa
alma; uns clarões de íntima juvenilidade que enrugam e franzem
de velhice o aspecto de tudo quanto ordinariamente nos
cerca. É como um rebate de castanholas, como um frémito de
pandeiros, como a serenata que se ouve ao longe, alada pela
brisa das noites de Verão, impregnada do perfume penetrante
dos laranjais em flor. É a mística melodia da nossa lira interior,
cujas cordas soluçam como as da harpa eólia, bafejadas
pela viração de umas saudades vagas e inexprimíveis.
É nestes lapsos de acre e deliciosa introversão para o
íntimo éden dos nossos sonhos, que nós caímos numa espécie de
morbidez moral, que os outros não sabem se é a meditação, a
abstracção ou o tédio. Nós sabemos que nada disso é, ou antes
que talvez seja tudo isso junto. É a insolação do espírito,
durante a qual os olhos percorrem sucessivamente as páginas
de um livro, cuja leitura maquinal se não côa dos olhos para
dentro, ou que a gente se esquece horas e horas inúteis defronte
do fogão do quarto com os cotovelos fincados nos joelhos e a
fronte nas mãos, fitando, como quem interroga sem saber para
quê, o cintilar das faúlhas e o trepidar das chamazinhas cor-de-
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-rosa e azuis, que saltitam esmorecendo e revigorando em
redor das brasas.
Vem um belo dia em que esta visão, esta miragem, este
sonho, esta febre, esta doença, pode mais que nós. A vida habitual
pesa no nosso espírito como o trambolho no pé de uma
galinha, dilatam-se-nos os pulmões, tresdobra-nos a vida, falta-
-nos o ar em nossas casas, falta-nos a água nas nossas fontes,
falta-nos o espaço nas nossas ruas. A cidade então é pequena e
o passeio é pouco. Quer-se a viagem, a liberdade, a largueza da
terra, a vastidão do mar e a amplidão do céu ― o mundo! Não
há outro remédio nestes casos senão fazer o que eu fiz: arranjar
a mala e partir.
Para onde? para qualquer parte. Para quê? para voltar
depois, porque se volta melhor do que se foi; mais instruído,
nem sempre; mais ensinado, sim. Pode-se não aprender nada
novo, mas fica-se sabendo melhor o que já se sabia dantes.
E depois, no regresso, o prazer de chegar… Que há aí no
mundo que se lhe compare? O nosso quartozinho, visto de
longe, ou de longe imaginado, entre os montes e as árvores da
pátria, no aconchego da família, da paz e do trabalho, parece-
-nos um ninho de amor e de poesia, o palácio dum rei independente
e pequenino. As cabecinhas loiras dos nossos filhos solicitam
todos os nossos beijos. A mão da nossa mulher ou da
nossa mãe parece-nos a mais nobre e leal mão que se pode
apertar na terra. Ao meio-dia, à sombra das árvores do nosso
jardim, à noite, ao pé do nosso fogão, figura-se-nos estar à
nossa espera o melhor remanso da vida. E todas estas recordações
têm um ar de santidade, aureoladas, como elas nos aparecem
cá fora, pelo melancólico e puro esplendor da saudade.
Saudade! amorável e querida vingança dos que ficam!
santo penhor da volta! Quando um homem deixa a família e a
pátria, a mãe, se o abraça, ao dar-lhe a última bênção, põe-lhe
ao peito o crucifixozinho das suas orações, que ela trouxe sem-
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pre no seio; Deus, se o vê, põe-lhe no coração a saudade, que eu
creio que vem também do seio dele.
Aqui então, no mar, onde agora me encontro, todos os
sentimentos bons se fazem melhores, e tudo quanto é ruim ou
mesquinho se nos esvai a pouco e pouco de dentro quando a
alma se emprega nesta refrigerante contemplação da omnipotência
e do infinito. Que viaje por terra quem leva pressa compreende-
se, mas que deixe de viajar por mar quem só procura
nas viagens o que elas têm de comovente para o coração e de
mordente e corrosivo para a ferrugem da vida ― não se
entende nem se admite. Um navio que se faz ao largo é um
pedaço de mundo que se despega do continente e do seu burburinho
de paixões e de misérias para vogar no seio puro da
natureza, consigo só, e com Deus. A intuspecção a que algumas
vezes nos leva a tristeza, a saudade, ou a mágoa, essa concentração,
esse íntimo exame de nós mesmos, em que nos sentimos
recair com uma espécie de dor voluptuosa, com um prazer pungente,
depois dos maiores e mais decisivos abalos do espírito,
esses solilóquios da nossa alma, quando furtada a toda a
comunicação de fora, a solidão finalmente, a verdadeira solidão,
que é no ermo às vezes onde se encontra menos, a suave
solidão da qual dizia Garrett:
De vez em quando, lá quando a alma o pede,
Oh! não m’a tirem que é tirar-me a vida;
a solidão que a gente para si mesma edifica, œdificare solitudines;
o santo prazer da solidão, bálsamo celestial de tantas
dores, que ninguém sonda, e que nenhuma palavra, nenhum
afago, nenhum mimo adoça ― procurai-o no mar. Ele vo-lo
dará como o coração vo-lo pede. Ele, que conhece o segredo de
transformar em pérola uma gota de água, sabe do mesmo
modo cristalizar a dor, convertendo-a na melancolia.
O interior das florestas e as largas planuras medidas com
a vista do píncaro dos montes são também espectáculo igual-
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mente solene, mas não produzem tão perfeitamente o recolhimento
de que eu falo, e que eu tanto estimo, como o singelo
aspecto do céu e das águas do mar largo. No fim duma tarde
serena, à hora do crepúsculo, quando nos montes se ouve o
chilrear das aves na espessura dos arvoredos, o sino das Ave-
-Marias, o gemer dum carro ao longe, o latir do cão dos pegureiros
ou os chocalhos do gado que desce a pino a encosta ou
atravessa a vau a represa orlada de castanheiros, nesse
momento não ouvir no mar senão o arquear profundo e
monótono das vagas e não ver outra coisa, além da imensidade
do firmamento e da imensidade da onda, senão a cortina de
nuvens doiradas no horizonte pelo sol poente, movediço panorama
de fantásticos mundos que sucessivamente se fazem, se
desfazem, se refazem e se aniquilam com um sopro que os
governa! É então que nos navios da marinha francesa se procede
a uma comovente cerimónia: iça-se um galhardete ao som
dum tiro de peça, o capelão sobe ao tombadilho, acompanhado
do oficial da guarda, o oficial dá a voz de sentido à guarnição
enfileirada ao longo do convés; o padre, vestido de batina, com
uma cruz pendente do pescoço, mete debaixo do braço o seu
chapéu, persigna-se, ergue as mãos, e, no meio do silêncio
entrecortado apenas pelo embate da água na amurada e pelo
sibilar do vento nas enxárcias, reza em voz alta um Padre-
-Nosso e umas Salve-Rainha, persigna-se outra vez, desce do
lugar a que subiu, dispersa-se a tripulação, arreia-se o galhardete,
e prossegue a viagem.
A tal hora, estando-se a bordo, sentar-se a gente na tolda e
principiar a conversar com o seu coração, com o seu passado e
com o seu futuro diante desse espectáculo único, é cair um
homem verdadeiramente em si, e sentir-se mais homem que
nunca. Nem conhece o que é de bom estar só quem nunca esteve
só dessa maneira!
Não sei se o aspecto do mar produz em todos o efeito que
me faz a mim: eu remoço-me na contemplação das ondas.
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Adelgaça-se com a rispidez destes ares o véu dos meus cuidados;
desencrava-se-me do coração o espinho das lembranças
tristes e dos tristes pressentimentos; esqueço-me dos que me
não querem bem, e não me lembro do mal que me pode vir. De
uns pequenos desgostos de ter vivido desforro-me com o simples
prazer de me achar vivo. Assim me consolo e me vingo.
Precisava de dizer isto para não enganar ninguém, que
esperasse mais ou melhor de mim. Eis aí está em que disposição
de ânimo e em que intuito de espírito eu vou desembarcar no
Havre e seguir de lá para Paris.
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