terça-feira, 16 de outubro de 2012

FRANCISCO MANUEL DE MELO


Secções D. Francisco Manuel de Melo









































D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) nasceu em Lisboa de família nobre. Começou muito novo a frequentar a corte, cursou Humanidades no Colégio de Santo Antão e dedicou-se ao estudo da Matemática, pois pensava seguir a carreira das armas. Militou na marinha e, depois de um naufrágio que sofrera, estabeleceu-se na corte de Madrid. Em 1639 comandou um regimento na Flandres e lutou contra os Holandeses. Em 1641, encontrando-se em Londres, aderiu à causa da independência em Portugal, regressando ao reino onde, depois de receber a comenda da Ordem de Cristo, é acusado e preso por conivência no assassinato de Francisco Cardoso. É na prisão que escreverá as suas melhores obras. Destacamos: Carta de Guia de Casados (Lisboa, 1651), Epanáforas de Vária História Portuguesa (Lisboa, 1660), Obras Morales (Roma, 1664), Cartas Familiares (Roma, 1664), Obras Métricas (França, 1665), Auto do Fidalgo Aprendiz (Lisboa, 1676), Apólogos Dialogais (Lisboa, 1721), D. Teodósio Duque de Bragança e As Segundas Três Musas (1945 e 1966), onde se coligem sonetos, éclogas e as redondilhas de influência camoniana O Canto da Babilónia. É considerado um dos mais importantes autores do Barroco em Portugal.



Outras páginas sobre o autor:



D. Francisco Manuel de Melo: Apólogos Dialogais





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O CANTO DE BABILÓNIA







Sôbolas águas correntes

de aqueles Rios cantados

que a Babilónia levados

com lágrimas dos ausentes

chegam ricos e cansados,



Úa tarde me assentei

cheio de dor e fadiga

e hoje do que lá passei

me manda o tempo que diga

quanto em lágrimas direi.



Espalhei meu triste canto

pelas desertas areas:

os olhos foram as veas,

a música foi o pranto,

o instrumento as cadeas.



Ali com grandes tormentos

vi não passar minhas mágoas,

vi voar meus pensamentos.

vi que levavam as águas

quanto trouxeram os ventos.



Tudo quanto em outra idade

se fez amar e querer,

antes de bem se entender,

ali mandava a verdade

que se fosse a conhecer.



Mas eu, vendo-me cativo,

bradei na força da queixa:

dize, pensamento esquivo,

já que a memória me deixa,

porque lhe dizes que vivo?



Ela, inda bem não se ouviu

nomear, quando já chega,

tão vingativa e tão cega

que de um golpe destruiu

quanta paz alma lhe entrega.



Eis aquela paz antiga

que sem memória gozava,

já me mata e me castiga:

e a dor, que antes se humilhava,

ei-la soberba enemiga.



Fados maus, dura violência,

vil afronta, triste história,

grave dor, mudada glória.

com tudo pode a paciência

só não pode co'a memória.



Memória tão diligente,

Faze estar quedos os anos!

Passou-se a vida contente;

deixa vir os desenganos,

que eles vêm por si somente.



Eu me queixo, tu te queixas,

eu grito, tu arrezoas,

levas-me as lembranças boas

e dizes que, nas que deixas,

grandes culpas me perdoas.



Eu estava, que o não nego,

sem ver, sem me lembrar nada:

foste-me fazer tão cego

que de úa glória passada

me mandas fazer emprego.



E, para ver que passou,

me vendes um vidro raro,

por onde veja bem claro

o bem. Mas, se me deixou,

por que mo vendes tão caro?



Oh, que bem! Quem nunca o vira!

Oh, que ser! Quem nunca fora!

Falso Deus, que a quem o adora

mais depressa se retira

para as sombras donde mora!



Não é este o desejado

(que passou) Bem tão contino,

que até tinha de divino

deixar que fosse esperado,

como do justo, do indino.



Onde aquele dia é já

em que o sol alegre vi?

Se escuro ou claro estará?

E, porque fugiu de mi,

quanto mundo alegrará?



Essas horas que passaram

tão ledas, adonde vão?

Ai, e em que parte serão?

Que, pois tal vento levaram,

quem sabe se tornarão"



Que é de aqueles medos leves

e as honestas cobardias,

risos e lágrimas breves?

Que é do bem daqueles dias,

contra calmas, contra neves?



Onde é lançada a manhã?

A noite adonde parou?

E o ar, que brando assoprou

por dentro da nuvem vã,

que tempestade o levou?



Aquela serenidade

da vida antiga e ditosa,

quem a roubou desta idade?

E quem de cousa saudosa

tolher-nos quer a saudade?



Logo, se eu saudoso for

de tal vida eternamente,

acha-me disculpa a gente,

porque às vezes mata a dor,

e de justa não se sente.



Oh Terra Sião chamada,

de cujo pó tive vida,

se da sorte me és vedada,

nunca outra terra nacida

a meus ossos dê morada!



Da alta esfera em que se encerra,

me arrebate o fogo ou vento!

Morra no estranho elemento,

mas não caia em outra terra

nem cinza, nem pensamento!



Tu, por mais que lide a morte,

serás sempre doce e quista,

mas que o ferro ou pese, ou corte;

vingue-se a sorte da vista,

que o Amor me vinga da sorte.



Serás o perpétuo ofício

dos olhos d'alma queixosa,

que, em vítima saborosa,

se ofereça em sacrifício

nas aras da fé piedosa.



Mas neste campo de errónia,

de injúria e de maldição,

que merece a ceremónia

de se lembrar de Sião

quem padece em Babilónia?



Quem se lembra na miséria,

não califica a vontade;

lembrar na prosperidade,

essa lembrança é matéria

de toda a amiga verdade.



Aqui donde se injuria

a desgraça como o erro,

e a razão, presa à porfia,

tem por certo ser o ferro

o menos da tirania.



Que mereço em me lembrar

de ti, cidade a melhor,

pois, se a lembrança não for,

como poderei levar

nem a mi, nem minha dor?



Úa só hora daquelas

val por muitos padeceres.

Inda assi, tomara havê-las,

mas que um só dos seus prazeres

custara cem mil cautelas.



Ou que elas não foram tais,

ou, se o fossem, não passassem,

ou pelo menos tornassem

algúas suas iguais,

que as passadas consolassem.



Mas olhai, que vão desejo

pedir ao tempo a tornada!

Como se a vida que vejo

não fora já tão cansada,

que a passada é de sobejo!



Passa um dia, o outro vem,

tal como essoutro passado.

Não é o tempo o mudado:

um foi bom, e outro também;

o gosto, si, que é trocado.



Aquele Sol me aquentou,

e esse mesmo Sol me aquenta:

e a Lúa, que alumiou,

se se mingua, ou se acrecenta,

a mesma lúa ficou.



Passou um Janeiro frio,

voltou um Março amoroso,

chegou Maio, e foi ventoso,

veio Agosto, e fez Estio,

e entrou Novembro chuvoso.



Torna a vir outro Janeiro,

eis este como aquele ano,

na ordem por derradeiro;

porém no gosto ou no engano

nenhum dia tem praceiro.



O verão da mocidade

pouco e leve tempo dura ;

e aquela alegre verdura,

vista despois de outra idade,

já parece sombra escura.



Logo, se é nossa a mudança,

não jogo do tempo vão,

quem se mata ou quem se cansa

pela Desesperação,

por se vingar da Esperança?



Calidade atroz da vida

não ter hora de firmeza;

e tendo tal natureza,

ser tão buscada e tão crida

da nossa forte frequeza!



Pois quem no mesmo perigo

quis fazer seu certo assento,

que se queixa do castigo?

Leve consigo o tormento,

pois traz o engano consigo.



Um só modo descobriu,

contra o tempo e a mudança,

Amor, que à leve balança

das gentes não consentiu

Desejo nem Esperança.



Esta só virtude rara,

mal usada dos humanos,

de sorte o bem nos depara,

que, detendo o pé dos anos,

para imortais nos prepara.



Ditoso seja e louvado

justamente o pensamento

que, na glória e no tormento,

se deixa ser governado

pelas mãos do entendimento.



Ame-se o que é para amar;

veja-se o que é para ver;

ver só para venerar,

venerar para entender,

entender para louvar.



Se conheces no alto objeito

o valor e a perfeição,

não temas a sujeição,

porque do culto e respeito

nace a justa adoração.



Transportar no amado espírito,

unindo à pura vontade,

e lá por modo esquisito,

enxirir na eternidade

como infinito o finito;



Cativar o fero bruto

da liberdade atrevida,

e a razão, sempre subida

sôbolo desejo astuto,

viver triunfante e temida.



Quem nos diz que o mundo é

injusto? Quem nos diz tal,

contra o que nele se vê,

nem crê nos males do Mal,

nem nos bens do Bem tem fé.



Amar o bem da Virtude

é virtude e reverência,

Agora gema a insolência,

que eu fico que ao bem não mude

da fé para a contingência.



Nem as duras confusões,

nem os casos, nem os erros,

nem cadeias, nem grilhões,

nem ausências, nem desterros,

mudam do peito as razões.



Pois quem no deserto escuro

viva luz lhe apareceu,

que o bom caminho lhe deu,

porque suspira o seguro,

se ele próprio a luz perdeu?



Mas, se a segue, se conjura

a noite contra ele em vão,

pois, por mais que cerre escura,

firme passa o coração

e a vontade vai segura.



Contra o pinheiro do monte

forceje o Sul indinado,

que, quando muito forçado,

se a rama lhe muda a fronte,

o tronco nunca é mudado.



Os tristes bens da riqueza

ramos são, podem dobrar

c'o peso; mas a firmeza

sempre no home há-de estar

de úa própria natureza.



Os braços da adversidade

quando lutam c'o varão,

fortes e destros serão;

porém a contrariedade

faz-se ao corpo, à alma não.



Que era o que dizer queria

com tão valentes razões

Epicteto (entre aflições),

quando a Júpiter pedia

nova chuva de paixões?



Quando Anaxarco ante o povo

pisado foi duramente

que bradava ao Rei e à gente,

senão: Pisa-me de novo,

porque Anaxarco não sente?



Que era Comédia e grão festa

dos Deuses, disse o gentil,

a mais justa e mais honesta,

ver um peito varonil

lutar co'a sorte molesta.



Cruel condição que pôs

a Fortuna em seu morgado,

que não possa ser herdado

jamais, acerca de nós,

sem mudança e sem cuidado!



Quem se chama venturoso,

sem contenda e sem perigo.

ele pode ser mimoso;

mas viver sem enemigo,

não é sinal de ditoso.



Eu persigo ao meu vezinho

ele ao seu, continuamente,

e ordenou o céu providente

que pelo próprio caminho

a mi me encontre o parente.



Conto o Pai, conto o Irmão.

Homem és? És enemigo.

Oh fruto da maldição!

Os dentes de Cadmo antigo

somos os filhos de Adão.



Senhor!, que forjaste logo

mais gládio que nos moleste,

se aos homens nos homens deste

dura fome, ingrato fogo,

guerra crua e mortal peste?



Que fome tão desumana,

que fogo tão comedor,

ou que guerra tão tirana,

que peste, como o furor

desta vil fraqueza humana?!



Aquele Rei que lançou

Daniel aos leões úa hora,

(e qual se clemência fora)

com que mistério mandou

cerrar-lhe as portas por fora?



Que nos quis dizer então,

senão que, no lago escuro,

Daniel, se tem razão,

ele o dava por seguro

das feras, dos homens não?



O tálamo conjugal,

olhai por que o troca aquele:

pela vida e pela pele

do manso e pobre animal,

que as merece melhor que ele!



Essa alimária escondida

com que doesto o afrontou,

para lhe tirar a vida?

C'o trabalho que a buscou

entre a espinhosa guarida.



Contra a lebre sempre ousado,

do lobo foge que avoa;

grande pesca na alagoa,

e, em chegando ao Mar salgado,

treme do Mar, porque zoa.



Redes, laços, esparrelas,

que enganos e que falsia!

E metido o zelo entre elas...

Senhor, manda-nos um dia,

em que a luz mostre as cautelas!



Já com risos e brandura

assigura a paz da gente;

peçonha menos urgente

nas águas da fonte pura

deixa a fingida serpente.



Manda tu contra este mal

(pois és das verdades centro)

úa vista divinal;

ou, para nós vermos dentro,

faze os peitos de cristal.



Do crocodrilo do Nilo

exclamarn os naturais,

porque, chamando com ais,

mata como crocodrilo

quando criança o buscais.



Que dissera Plínio agora

à vista não do deserto,

quando täo certo lhe fora

que o crocodrilo mais certo

entre nós nas cortes mora?



Triste idade fraudulenta,

donde todo o mal respira

e a verdade se retira,

porque os campos que apascenta

lh'os vem pastando a mentira.



Foge tu, pelos presságios

do que vês lá nas areas,

gozando como sufrágios

pelos ecos das sereas

o escarmento dos naufrágios.



Deixa a doutrina do dano,

não fies da contingência,

e adora com reverência,

antes que o do Desengano,

o templo da Providência.



Se vês arder o casal

ou do parente ou do amigo,

teme-te da sorte igual;

que, se ele vira o perigo,

nunca o dano fora tal.



Mas tu, mas eu que faremos,

se nós mesmos fabricamos

o cavalo que adoramos

e dentro d'alma metemos

o fogo em que nos queimamos?



Qual Sínon nos fez o dano,

com que indústria ou que profia,

quem traçou, Grego ou Troiano,

senão nossa fantesia

a traça do nosso engano?



Quem te obriga a levantar

altas torres sobre o vento?

Quem lhe deu ao pensamento

as asas para voar,

senão teu próprio ardimento?



Então, se a cera oportuna

não saíu, e te desterra

a luz do Sol importuna,

quando caies sobre a terra

porque infamas a Fortuna?



Fortuna, não, providência

é da mão que o mundo rege,

por mais que o esprito forceje,

pôr-lhe tudo em contingência,

para que nada deseje.



Aquele sempre temer,

aquele nunca acertar,

aquele nada entender,

aquele tanto enganar,

que outra cousa quer dizer?



Quantas vezes, persuadido

da fé dos olhos, errei,

e quantas vezes busquei

rosas no campo florido,

onde só serpes achei!



E quantas, bem diferente,

temendo-me dos abrolhos,

caminhada impaciente,

e contra o voto dos olhos

fui parar ditosamente!



Ai de quem se persuade

da teima do pensamento,

e para julgar o intento

manda assentar a Vontade

no trono do Entendimento!



Tal o processo seria

qual do juiz a eleição:

a prova será profia,

as rezões, a sem-razão,

e a sentença, tirania.



Eis-me aqui, sem diferença:

doutro tal juiz que elejo

executado me vejo,

e por outro tal sentença

que foi dar o meu desejo.



Eu, carregado de ferros,

ele, de lástimas feas,

ambos pagamos os erros;

eu, arrastando as cadeas,

ele, chorando os desterros.



Cada dia exprimentada

nova dor, nova penúria;

e, entre os golpes desta fúria,

apenas úa é passada,

quando já chega outra injúria.



A Enveja, a Detracção,

a Fraude, o Engano, o Temor,

a Dúvida, a Confusão,

a Indignação, o Rigor,

sobretudo a Sem-razão.



Logo, com que confiança,

Sião amado e propício,

achar posso um leve indício

que me assigure a esperança

no fumo do sacrifício?



Pois é já força que viva

nesta escravidão incauta

e manda a Fortuna esquiva,

que enterrada fique a frauta

e a liberdade cativa.



Alto Senhor, sempiterno,

sem primeiro e sem segundo,

em cujo peito profundo

consiste o comum governo

deste mundo e desse mundo



Permita teu ser divino

mostrar-lhe a via e a verdade

àquele espírito indino

que vai à tua cidade,

miserável peregrino!



Põe-lhe diante a esperança;

acompanha-o c'o Temor;

acrecenta-lhe o Valor;

manda afastar a Lembrança:

caminhará vencedor.



Tu , que és fogo e que és coluna,

dá luz e dá fortaleza

contra essa força importuna

das trevas da Natureza

e dos braços da Fortuna.



Mas, pois que tenho acabado

quanto lá cantei ao vento,

fique a voz ao esquecimento,

e c'o canto sepultado,

fique também o instrumento.



E, se eu, por vida cruel,

idolatrar contra ti,

ó Jerusalém fiel,

dure eternamente em mi

a confusão de Babel!





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