quinta-feira, 8 de novembro de 2012

CAÇA AOS TESOUROS SUBMEWRSOS










ISSN 1807-1783 atualizado em 06 de outubro de 2004













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Nau da Companhia das Índias: Nossa Senhora dos Mártires



por Flávio Rizzi Calippo





S. Julião da Barra: sítio do naufrágio

Localização das subzonas



Portugal



Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática - CNANS



Coordenação



Arqueólogo Dr. Francisco Alves - CNANS, Portugal



Dr.Filipe Castro - Institute of Nautical Archaeology - INA, EUA







Em julho e agosto de 1997, o autor participou da segunda etapa da escavação subaquática nos restos da nau da Companhia das Índias, Nossa Senhora dos Mártires, no âmbito do Projeto São Julião da Barra.







A motivação para a realização dessa participação surgiu da preocupante situação em que se encontrava, e ainda se encontra, a arqueologia subaquática no Brasil. Com exceção de trabalhos realizados por Rambelli (1994, 1996, 1998 e 2003), Bava de Camargo (2002) e Calippo (2004), nenhum trabalho arqueológico subaquático havia sido executado com fins claramente científicos. No Brasil, ainda se confunde a simples busca e recuperação de artefatos com arqueologia subaquática. Rambelli foi o primeiro a tratar estes vestígios arqueológicos como documentos materiais dos eventos e dos processos históricos. Analisou os vestígios de forma sistemática, buscando a reconstituição da informação histórica contextualizada e não o valor monetário dos espólios.







Foi procurando colaborar com essa linha de pesquisa científica que o autor buscou se aprimorar. A escolha do CNANS – recomendado por Rambelli – se deu em função de sua idoneidade institucional, da experiência científica de seus integrantes e, principalmente, por sua participação no desenvolvimento e promulgação de uma das mais avançadas legislações sobre o patrimônio arqueológico submerso.



O naufrágio da Nossa Senhora dos Mártires







A Nossa Senhora dos Mártires era uma das naus da armada de Brás Teles de Menezes, que zarpou de Lisboa em direção as Índias, no dia 27 de março de 1605. As naus realizaram uma travessia calma, chegando a Goa por volta do dia 28 de setembro. Após rápido apresto e o carregamento dos navios, a armada, com exceção da Nossa Senhora dos Mártires e da Nossa Senhora da Salvação, iniciara a viagem de retorno a Lisboa no dia 30 de dezembro. A Nossa Senhora dos Mártires, carregada com volumosa carga de pimenta, junto com a Nossa Senhora da Salvação, partiram quinze dias depois, em 16 de janeiro de 1606 (D’Intino, 1998).







Apesar de não haver documentação sobre a viagem de regresso das duas naus, não parece que o atraso tenha sido a causa de seus naufrágios. A nau Salvação chegou à vista de Cascais na tarde do dia 12 de setembro de 1606. Devido ao vento sul, foi lançada em direção à costa, encalhando no fundo arenoso e naufragando na baia de Cascais a 13 setembro de 1606. Na tarde desta mesma data a Nossa Senhora dos Mártires fundearia em Cascais (D’Intino, 1998).







O naufrágio da Nossa Senhora dos Mártires ocorrera na entrada da barra do Tejo. Existe uma quase unanimidade das fontes históricas quanto a data do naufrágio. Com exceção do Memorial de Pero Roiz Soares, que aponta para o dia 14 de setembro de 1606, todas as outras fontes indicam como data mais provável o dia 15. Apesar disto, o naufrágio pode ter realmente ocorrido no dia 14, visto que a Nossa Senhora dos Mártires esteve fundeada em Cascais no dia 13. Levando-se em conta que poucas horas separam Cascais de São Julião da Barra, parece duvidoso que a nau tenha esperado quase dois dias para levantar ferro (Alves et al., 1998).















O que tudo indica é que, com o porão alagado, fustigada pela chuva e pelo vento, a Nossa Senhora dos Mártires deva ter ultrapassado largamente o meridiano da Fortaleza de São Julião da Barra e, devido ao efeito cumulativo do vento sul, do mar de sudoeste e da corrente de maré vazante, tenha se desgovernado. A trajetória final teve provavelmente a direção sudeste-noroeste, levando a nau a colidir com um proeminente esporão rochoso, conhecido como Ponta da Laje (figura 01). A maré, as correntes e o vento teriam arrastado a nau em direção à fortaleza até que a quilha tenha se chocado contra o fundo rochoso, rompendo-se em vários pontos. Perdendo parte do fundo da carena do casco, ficaram depositados nesse local parte substancial da carga e das peças de artilharia (Alves et al., 1998).







Todo o restante do que compunha a embarcação teria se espalhado pelas imediações e pelas praias que circundam São Julião da Barra. A parte mais substancial dos destroços teria se espalhado pela praia de Carcavelos, a oeste, e com a virada da maré, também em direção ao Tejo. As praias da região ficaram cobertas por inúmeros destroços da embarcação e pelos cadáveres das mais de duzentas pessoas que morreram no naufrágio. Segundo o relato de D. Luis Bravo de Acuña pode-se imaginar o Tejo coalhado de pimenta que, como um gigantesco manto preto, subia e descia ao sabor das marés, enegrecendo as praias a montante e a jusante da fortaleza (Alves et al., 1998).







A carga da nau, principalmente pimenta da Coroa e inúmeros fardos e barris, foi se espalhando por cinco léguas ao longo de toda a costa entre a barra do Tejo e Cascais. Oficias régios, soldados e alguns voluntários entre a população fizeram todas as diligências possíveis para recuperar a pimenta. Apesar da constante vigilância, inúmeros foram os roubos realizados (D’Intino, 1998).



A arqueologia do naufrágio







A participação do autor na escavação dos restos da Nossa Senhora dos Mártires ocorreu ao longo da segunda campanha de arqueologia subaquática nos arredores da fortaleza de São Julião da Barra. Nesta etapa, a estratégia de intervenção subaquática concentrou-se principalmente na zona de prospecção que recebera o nome de SJB2 (figura 02). Além de participar das atividades de escavação arqueológica subaquática, o autor também colaborou nos trabalhos de apoio de superfície e retaguarda, principalmente na gestão dos espólios, no registro arqueográfico e na organização e planejamento dos mergulhos.















A primeira etapa dos trabalhos, em 1994, apontou para a ocorrência de vestígios arqueológicos em todo o entorno da fortaleza, em especial, na pequena e bem protegida baía sul (SBJ1). Ao final desta primeira etapa, foram localizados em SBJ2, uma área com vários fragmentos de diversos tipos de cerâmica oriental e um conjunto de vestígios de madeira, muito deteriorados, de um casco de navio (figura 03). Estes achados, junto com um astrolábio encontrado entre a zonas SBJ1 e SBJ2, aconselhavam que os trabalhos deveriam se desenvolver em direção à fortaleza (Alves et al., 1998).















Com o início da segunda etapa, em outubro de 1996, verificou-se que a zona a leste do casco estava sulcada com buracos e fendas colmatados, cuja escavação metódica produziria resultados arqueológicos de grande interesse. Em função disto, os trabalhos de escavação passaram a ser desenvolvidos em SJB2, sobre duas frentes prioritárias: uma sobre os vestígios do casco e a outra sobre a região imediatamente envolvente (Alves et al., 1998).















Os primeiros resultados das escavações arqueológicas realizadas em 1996-97 levaram a conclusão de que os destroços, localizados nas imediações da Fortaleza de São Julião da Barra, pertenceriam a uma nau da carreira da Índia, perdida na porção final da viagem de retorno. Fato documentado principalmente pela quantidade de pimenta ainda presente entre os destroços e de cerâmicas extremo-orientais, típicas do reinado Wanli (1573-1620) (Alves et al., 1998).



















Progressivamente, emergiam múltiplas evidências arqueológicas que viriam a reforçar esta hipótese. Destacam-se, um conjunto representado por uma âncora de ferro (figura 04) que se encontrava praticamente encostada a uma colubrina típica do período do domínio filipino em Portugal (1580-1640). Mais tarde, descobriu-se que esta colubrina é atribuída a um fundidor belga chamado Remigy de Halut, responsável pela fundição de vários canhões para Filipe II no final do século XVI. Do mesmo modo, a pouco mais de uma dezena de metros foi encontrado um pequeno canhão de ferro (figura 05), que balizava uma área onde, posteriormente, seriam encontrados numerosos vestígios coerentes, nomeadamente pratos de porcelana empilhados (figura 06), instrumentos náuticos, etc. (Alves et al., 1998).















De todos estes indicadores, o mais significativo foi a descoberta do último dos três astrolábios recuperados (figura 07), o qual apresentava duas inscrições gravadas, a sigla do fundidor e a data de 1605. Este astrolábio constitui um argumento incontornável para a identificação da nau, tornando-se legítimo presumir que tenha sido fabricado no período imediatamente anterior à partida da Nossa Senhora dos Mártires para a Índia, no final de março de 1605 (Alves et al., 1998).

A descoberta de um tsuba de Wakisachi (figura 08) japonês veio a colaborar também com a identificação da nau. Sua descoberta vem a correlacionar-se com o fato de entre os passageiros constarem o padre Francisco Rodrigues, vindo do Japão, e de um jovem natural deste país (Alves et al., 1998).















O estudo arqueológico e arquitetônico do casco testemunha em todos os pormenores uma nau típica do final do século XVI e início do século XVII (figura 09). A começar pelas madeiras utilizadas: o sobro para o liame (quilha, cavernas, braços, etc.) e pinheiro manso para o tabuado do forro do casco. Além disso, através da descoberta de números de estaleiro ainda gravados nas cavernas subsistentes, puderam ser identificados entre os restos do casco, um conjunto seqüencial de três cavernas mestras (Alves et al., 1998). Segundo Filipe Castro (com. pess.), estas marcas de construção eram de três tipos: números romanos nas cavernas mestras, marcas verticais posicionando a quilha e marcas horizontais posicionando os cavados. Estas indicações permitiram uma reconstrução hipotética do fundo da nau, evidenciando que as dezoito cavernas tinham sido gabaritadas em cada lado da três cavernas mestras, ou seja, que os braços tinham sido pregados às cavernas antes de terem sido montados sobre as quilhas. Embora a caverna mestra seja mais estreita do que Fernando Oliveira preconiza em 1570-80 no Livro da Fabrica das Naus, exatamente um palmo de Goa (25,667 cm), tanto o levantamento como o recolhimento dos fundos seguem um graminho deste tratadista.







Em face desses padrões arquiteturais, pôde-se comprovar que se tratava de uma nau com pelo menos 18 rumos de quilha (27,72 metros), medida padrão de uma nau da Companhia das Índias dessa época. Este fato vem atestar a grande dimensão e a importante tonelagem da Nossa Senhora dos Mártires, pelo menos 40 metros de esloria, 13 de manga e 600 tonéis de arqueamento. Esta evidência também se expressa nas maioria dos seus pormenores arquiteturais de base, como são as espessuras do cavername e do tabuado do casco (Alves et al., 1998).







A proteção do patrimônio arqueológico subaquático







Além da oportunidade de aprimorar técnicas de mergulho e de aplicar novas metodologias de pesquisa e intervenção subaquática, o estágio no CNANS também permitiu um maior contato com uma das principais problemáticas quanto do patrimônio arqueológico submerso: a legislação.

Em 1993, foi promulgada em Portugal uma legislação que permitia a comercialização de artefatos arqueológicos subaquáticos. Esse lamentável quadro foi revertido graças aos esforços de vários profissionais, dentre eles, alguns integrantes do Centro de Estudos Arqueonáutica e do próprio CNANS. O contato com tais profissionais, além de propiciar um maior esclarecimento sobre as bases de uma legislação eficiente, permitiu um maior entendimento sobre os interesses, as estratégias e as justificativas usadas por aqueles que “pilham” o patrimônio arqueológico submerso, ou seja, os “caçadores de tesouros”.







Segundo o Livro Branco do Centro de Estudos Arqueonáutica (1995), a “caça ao tesouro” não tem nenhuma ligação com a ciência Arqueologia, sendo simplesmente a tradição do resgate de artefatos submersos. Com a finalidade de conseguirem autorizações que lhes permitam “pilhar” legalmente, os “caçadores de tesouro” apresentam como justificativa o propósito “filantrópico” de pretenderem apenas salvar o pouco que ainda há para se salvar. A verdade sobre a maioria desses projetos é que o patrimônio em questão não corre qualquer risco. Ou, corre um risco muito menor do que todo o restante do patrimônio sem valor financeiro, que na maioria dos casos não é recuperado.







Para realizarem estes projetos, os “caçadores de tesouro” camuflam suas atividades através de dois atributos principais: O da respeitabilidade social, através de um persistente lobbying junto aos mais destacados meios da cultura e da comunicação, da política, da economia e até mesmo das forças armadas. E o da respeitabilidade científica, quer através da invocação de prioritários pressupostos histórico-arqueológicos (de quem um dos aspectos crônicos é a mistificação sobre a qualidade das suas obras, em que se confunde sempre Ciência e Divulgação Científica com “entretenimento”); quer ainda recorrendo à contratação de arqueólogos de serviço (Centro de Estudos Arqueonáutica,1995).







Ora, os empreendimentos do tipo caça ao tesouro, mesmo na sua forma mais “civilizada”, têm na sua essência um elemento contraditório e mistificador, que é a pretensão de poderem obedecer simultaneamente a puros critérios científicos e à lógica da rentabilidade financeira. Com efeito, não se conhece um único exemplo de empreendimentos deste tipo em que a componente científica tenha prevalecido (Centro de Estudos Arqueonáutica,1995).







Acima de tudo, a experiência em Portugal reafirmou que existe a possibilidade de se realizar uma Arqueologia Subaquática séria, com bases metodológicas e científicas, e também a importância de uma legislação eficiente que proíba, combata e penalize a comercialização do patrimônio arqueológico submerso.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS

Alves, Francisco, Castro, L. Filipe V., Rodrigues, Paulo, Garcia, Catarina e Aleluia, Miguel. “Arqueologia de um naufrágio”, in Nossa Senhora dos Mártires. A última viagem. Editora Verbo, Lisboa, 1998, pp. 182-215.

Arqueonáutica, Centro de Estudos. Livro Branco. Para um debate sobre a legislação do patrimônio arqueológico subaquático em Portugal. Lisboa, 1995.

Bava de Camargo, Paulo F. “Arqueologia das fortificações oitocentistas da planície costeira de Cananéia/Iguape, SP”. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, São Paulo, 2002.

Calippo, Flávio R. “Os sambaquis submersos de Cananéia, SP: um estudo de caso de Arqueologia Subaquática”. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, São Paulo, 2004.

D’Intino, Raffaela. “História de uma viagem”, in Nossa Senhora dos Mártires. A última viagem. Editora Verbo, Lisboa, 1998, pp. 157-163.

Rambelli, Gilson. “A Prática da Arqueologia Subaquática no Brasil”. Revista de Arqueologia. Anais da VII Reunião Científica da Sociedade de Arqueologia Brasileira, vol. 8, n2, 1994/95, pp 435-437.

Rambelli, Gilson. “A Arqueologia Subaquática e sua Aplicação ao Projeto Arqueológico do Baixo Vale do Ribeira de Iguape (litoral sul paulista)”. Revista de Arqueologia. Anais da VIII Reunião Científica da Sociedade de Arqueologia Brasileira . EDIPUCRS, Porto Alegre, RS., 1996, pp. 542-561.

Rambelli, Gilson. “Usos nos Sítios Arqueológicos: Arqueologia Subaquática - O Patrimônio Cultural Subaquático no Brasil” (resumo). Anais ICOMOS - BRASIL (Seminário Internacional: “Caminhos da Preservação II: Usos do Patrimônio” 1997). Série Cadernos do ICOMOS/BRASIL, vol. 2, 1998, pp. 57-58.

Rambelli, Gilson. “A Arqueologia Subaquática e sua aplicação à Arqueologia Brasileira: o exemplo do Baixo Ribeira de Iguape”. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Departamento de Arqueologia / SP, 1998.

Rambelli, Gilson. “Arqueologia Subaquática do baixo vale do Ribeira, SP”. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, São Paulo, 2003.



AGRADECIMENTOS



Gostaria de agradecer primeiramente a Francisco Alves e a Filipe Castro, pela oportunidade de participar dos trabalhos na Nossa Senhora de Mártires, e a Gilson Rambelli pelos contatos e por todo o apoio. Agradeço também aos amigos e companheiros de trabalho, Filipe, Catarina, Miguel, Armando, Gustavo, Paulo Jorge, Ana, Tiago e aos demais integrantes e colaboradores do CNANS, por terem tornado minha estadia em Portugal tão proveitosa.

Agradecimentos especiais a Glória, Francisco, Rosa, Fúlvio, Siaska, Filipe e aos “miúdo"!





















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